Vínculos da cultura contemporânea

Introdução

O presente trabalho almeja debater determinados aspectos dos vínculos na cultura contemporânea e sua relação com aportes da sociologia, da filosofia grega e contemporânea, bem como da literatura europeia e brasileira do século XIX. Por vínculo, entende-se a ligação do sujeito com certos aspectos de si mesmo, do outro e da cultura em que ele vive. Ao lado daqueles aportes, conceitos psicanalíticos e constructos hipotéticos psicanalíticos da autora – desejo e sistema representacional – visam pensar essas questões.

O ser humano ficou muito pior...

Esta frase proferida por muitas pessoas, na atualidade, revela sua visão pessimista e amedrontada acerca do ser humano em seus novos rumos pelo mundo.Tal visão fornece o mote para esta reflexão sobre os vínculos das pessoas consigo mesmas e com as outras, em meio à cultura contemporânea.

Um extrato clínico acerca de um paciente – que explicita algumas questões de nossa época – propicia mais elementos para essa pesquisa.

A cultura contemporânea: subsídios da sociologia, da psicanálise, da filosofia e da literatura

Algumas questões da vida contemporânea são investigadas mediante o diálogo com pensadores de vários domínios do conhecimento. Começa-se com a sociologia.

Baudrillard (1991) destaca a força da imagem na construção da identidade, no pós-modernismo. À medida que a verdade é substituída pelo simulacro – imagem que inventa a realidade – a identidade se desfaz face ao poder das imagens, perde-se o sentido das coisas e sobra um sujeito descentrado. E, mais, Bauman (2005) adiciona que a identidade não é definitiva, tampouco sólida no atual mundo líquido. Há muitas referências de identidade em movimento e grupos móveis, velozes e fugazes. A exposição do sujeito às várias comunidades leva à flutuação de sua identidade. Sua mudança se foca em seu arbítrio ou em sua submissão ao outro. Ressente-se dessas identidades estereotipadas e estigmatizadas, sem conseguir abandoná-las.

Faz-se mister adicionar a essas concepções, algumas ideias da psicanálise e da filosofia contemporânea.

Freire-Costa (2005) adverte que, anteriormente, o trabalho, a religião, a família e o amor à pátria norteavam a vida. Com a mudança de valores, há ausência de utopias, os líderes políticos, espirituais e científicos perderam força e a celebridade substituiu a autoridade. Assim, a quebra de continuidade entre valores tradicionais e os da ascensão social faz vigorar a busca de sensações corporais, que levam ao êxtase e à destruição. Além disso, a inscrição do sexo no circuito das mercadorias e do consumo articula o prazer sexual à lógica do mercado. O sexo, no comércio da excitação, se tornou um emblema dos indivíduos considerados bem-sucedidos econômica e socialmente. O sexo é a mercadoria e vende tipos humanos ‘vencedores’, que mantêm o modo de vida das sociedades ocidentais contemporâneas e da sociedade brasileira.

Por sua vez, Pondé (2021) afirma que a sociedade precisa acordar do surto psicótico que está vivendo desde o século XIX. A modernização e seus avanços técnicos pôs em curso um surto psicótico funcional bem-sucedido, até então: a era do niilismo. Esta produziu a experiência do nada e do vazio, junto com a angústia e a desesperança, que incidem sobre os diversos setores da vida e da humanidade. Trata-se do espírito de uma época – não uma sensação.

Portanto, o primeiro autor critica a distorção de valores, que caracteriza o momento atual. O segundo autor aponta as questões emocionais ligadas à nossa era. Conjuntamente com essas ideias, outras reflexões sobre essas temáticas no âmbito da filosofia e da literatura fazem com que novas perspectivas acerca dessas questões se ofereçam ao leitor.

O império e o êxtase das sensações − ditames de cultura atual − já se encontrava em discussão entre os filósofos gregos: cirenaicos (séc. IV - III a.c.) e cínicos (séc. V a.c.) e, a seguir, entre estóicos (séc. IV a.c.) e epicuristas (séc. IV a.c.). Os cínicos propunham o total desprezo pelos bens materiais e que o prazer dos sentidos fosse abolido, pois a busca pelo prazer afasta os indivíduos da verdadeira felicidade. Os cirenaicos consideravam que o prazer é o bem supremo e que a virtude é um meio de obter prazer, de modo que o homem bom luta por obter o máximo de prazer e o mínimo de dor. Contudo, não se trata da mera entrega a todo e qualquer prazer. Segundo o princípio de dominação dos prazeres, deve-se torná-los úteis, sem ser subjugado por eles. A pessoa que domina o prazer não se abstém de experimentá-lo, mas sabe administrá-lo (Abbagnano, 2012).

Os epicuristas defendiam o prazer como o bem soberano, obtido pela prática da virtude e da cultura do espírito. A felicidade consiste em assegurar-se o máximo de prazer e o mínimo de dor, por meio da saúde do corpo e do espírito. Os estoicos recusavam as paixões ou prazeres como fontes de felicidade e consideraram que eles produziam agitações, que perturbavam a alma humana (Abbagnano, 2012).

Compreende-se que os antigos filósofos gregos propunham limites para o desfrute dos prazeres da vida. Posto isso, cabe pensar as consequências da liberdade humana em face dos prazeres dos sentidos.

Na literatura europeia do século XIX, o êxtase das sensações seduz Fausto de Goethe (1808) e arrebata Dorian em O retrato de Dorian Gray de Wilde (1891).

Fausto trata do conflito de um homem dilacerado entre o desejo de se elevar espiritualmente e sua atração pelos prazeres e bens terrenos. Ele não se contentava com os prazeres no presente, mas ansiava por prazeres novos e melhores do que os anteriormente experimentados.

Fausto e Mefistófeles se encontraram num domingo de Páscoa. O diabo ofereceu a ele uma vida eterna, rica em prazeres. Fausto recusou, pois os deleites da terra não eram suficientes para contentá-lo. Ele buscava o poder por meio do conhecimento e fez um pacto com o diabo. Fausto se apaixonou por Gretchen, que recusou suas investidas. Para conquistá-la, Fausto recorreu a Mefistófeles. Gretchen cedeu e ele a deixou na manhã seguinte. Ele sucumbiu ao desejo pelo objeto de sua paixão, porém se arrependeu. Por fim, ele encontrou a salvação.

Dorian Gray era um rapaz muito bonito, mas sua inocência impedia que ele compreendesse a dimensão de sua beleza. Dorian conhece Lord Wotton, que corrompe sua alma. Logo, sua vida de prazeres não conhece limites e o império dos sentidos se faz valer. Consegue seduzir homens e mulheres, a quem logo abandona. Ao se apaixonar por si mesmo numa pintura, oferece sua alma para continuar jovem. Assim, o retrato envelhece, carregando as marcas da corrupção da alma de Dorian. Ele parece inatingível em face do tempo e de suas ações. Todavia, sua consciência acaba se impondo a ele.

Ao se enfocar a literatura brasileira do século XIX, os problemas nos vínculos familiares, a desestruturação familiar e a corrupção da sociedade contemporânea – vistos no relato sobre o paciente descrito adiante – ficam relativizados ao se ler dois contos de Machado de Assis.

Em O segredo de Augusta de 1870, o senhor Vasconcelos tem quarenta anos, é muito ocupado e sem tempo para sua esposa Augusta e sua filha Adelaide. Augusta tem trinta anos e Adelaide quinze; mas a mãe parece mais moça que a filha. Com o mesmo frescor dos quinze anos, ela tinha consciência de sua beleza, uma profunda vaidade e forte atração pela opulência da vida burguesa. Não há intimidade e sintonia entre mãe e filha. Certo dia, Vasconcelos recebe uma proposta de casamento para sua filha de seu amigo Gomes, supostamente muito apaixonado por ela. Porém, Adelaide não quer casar com ele. Sem dinheiro para pagar uma dívida, ele vê o casamento da filha como meio de pedir dinheiro ao genro. O marido conta à Augusta sua precária situação financeira e a proposta de Gomes, mas ela se opõe ao casamento. Egoísta, ela não quer ser avó e, portanto, não quer que Adelaide se case tão cedo. Tão logo Gomes – também falido – sabe que o casamento não vai ocorrer, imediatamente busca outra herdeira rica para se casar (Assis, 2005).

Em Galeria Póstuma de 1884, Fidélis era um homem encantador, amigo solícito, querido por todos e tio dedicado, cujos parentes e compadres ficaram condoídos com sua morte repentina. Benjamim – sobrinho que dependia dele – descobriu seu diário, no qual surgem retratos pouco amáveis das pessoas que o cercavam. Guardião da bela imagem pública do tio, ele resguarda seus segredos contidos no diário – verdade chocante transformada em silêncio – sendo mal interpretado pelos familiares próximos do tio, que a este exaltam (Assis, 2015).

Ao ser examinada num horizonte mais amplo, a violência na sociedade contemporânea – evidenciada no caso do paciente retratado adiante – aparece como fator constitutivo do ser humano em todos os tempos e lugares, ocupados pela civilização humana.

Nos primórdios da historia, os egípcios (séc IV a.c.) ostentavam o rastro de destruição deixado por seus exércitos nos territórios inimigos. Nos séculos IX-VII a.c., os assírios ficaram conhecidos por serem guerreiros temidos, que recorriam a técnicas violentas em combate e que tratavam seus prisioneiros com extrema brutalidade. No séc. V, os vândalos constituíram um povo bárbaro célebre na história por sua violência e destruição. Por volta do séc. XVI, os astecas construíram e mantiveram seu império fazendo uso de extrema violência. Seus prisioneiros de guerra eram sacrificados nos templos astecas. Entre os maias, uma guerra total, com combates violentos e destrutivos, aconteceu antes de as mudanças climáticas atingirem sua agricultura. Na atualidade, guerras entre judeus e palestinos, iranianos e sauditas, entre outras, revelam nosso perene ímpeto belicoso (Black, 2020).

Ampliando essa vertente de ideias, Pinker (2018) considera que, em termos históricos, as pessoas estão mais inteligentes e menos violentas. A alfabetização e o cosmopolitismo, com a troca de informações e os acordos entre as várias sociedades, contribuíram para o declínio da barbárie nos últimos séculos.

A despeito das críticas específicas acerca da sociedade contemporânea serem bastante relevantes, em parte, descrevem certos aspectos psíquicos atemporais do homem em sua convivência social.

Nessa medida, outros pensadores trazem alguma luz em meio aos longínquos problemas humanos. Ghandi dizia: ‘Seja você a mudança que você quer no mundo’. Madre Tereza propunha: ‘Dê ao mundo o melhor de você. Mas isso pode não ser o bastante. Dê o melhor de você assim mesmo. Veja você que, no final das contas, é tudo entre você e Deus. Nunca foi entre você e os outros’. Santo Agostinho afirmou: ‘Não saias de ti, mas volta para dentro de ti, a verdade habita no coração do homem’.

Ainda que tais frases tenham emanado de pensadores religiosos, a religião não é a única saída para conflitos humanos imemoriais. Também a antropologia, a sociologia, a história, a filosofia e a literatura confrontam o homem consigo mesmo, em alguma medida. Nesse embate, encontram-se inclusive as forças da natureza e as atuais mudanças climáticas em virtude da ação humana no planeta. Ao ativar o instinto de sobrevivência do homem, a iminência da destruição do planeta demanda novas tomadas de posição da espécie humana. Em face dessas forças, cada vez mais, somos convidados a mudar e melhorar, inclusive por nos considerarmos a espécie mais inteligente do nosso planeta.

A essas ideias, juntam-se outras duas concepções.

O desejo e o sistema das representações

Com o intuito de discutir temas do extrato clínico apresentado a seguir, dois constructos hipotéticos da autora de base psicanalítica são utilizados: o desejo e o sistema das representações.

O desejo consiste em um conjunto de representações e de afetos, que ordena as forças psíquicas. Por sua natureza, ele gera movimentos psíquicos voltados para seus alvos de satisfação até se realizar no mundo. Em contrapartida, os bloqueios na satisfação do desejo residem em sua fixação em certas representações e afetos, que limitam sua realização no mundo. As representações e os afetos ligados às suas vivências junto às figuras primárias formam seu sistema representacional (Almeida, 2005; 2016).

O sistema das representações constitui um aparato psíquico do sujeito com a função de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Esse sistema se interliga aos sistemas representacionais dos objetos primários e se submete ao seu desejo. A partir disso, a criança pode ser designada por seus pais como: esperta ou retardada, campeã ou fracassada, fofa ou monstrenga. Estas representações se juntam às projeções inconscientes deles sobre ela. Assim, ainda que a criança seja habilidosa e criativa – em habilidades manuais – ela pode se sentir, se representar e se comportar aquém de suas capacidades, dadas suas representações inconscientes – pateta e mão furada – com sua carga de ódio (Almeida, 2005; 2016).

Um extrato clínico

Um extrato clínico acerca da vida psíquica de um bad boy fascinado pela vida bandida revela questões da cultura contemporânea: relação consigo mesmo, com o outro, com sua vida no presente e suas perspectivas de futuro, com prazer, com poder, com status e com a violência.

Segundo a ideologia desse jovem sobre curtir a vida e ser feliz, seu prazer liga-se às drogas, às bebidas, ao sexo, bem como às festas bombadas e movidas pela música eletrônica. Nos subterrâneos dessa ideologia, aparece seu desencanto consigo, com seus pares e com o mundo adulto. Esse desencanto se ressalta em sua expectativa de viver tão somente até os trinta e cinco anos de idade, pois mais vale ‘viver dez anos a mil do que mil anos a dez’. Suas gírias para o uso intenso de drogas – cocaína – vão de ‘arrebentar’, passam por ‘ficar lesado’ e chegam a ‘dar um tiro’. Além disso, ele curte ‘gostos fortes’ – vodka, rum, cigarros e energéticos misturados – visando ‘uma felicidade absoluta’, ‘poder tudo’ e ‘ter coragem para tudo’. Em seu avesso, essas frases denunciam seu sofrimento frente às frustrações, sua impotência para mudar aquilo que lhe traz dor e seu medo frente à vida, respectivamente.

No que tange às suas gírias para o uso de cocaína, ‘arrebentar’ significa sentir forte emoção ou forte sensação, explodir, estourar, destruir; ‘ficar lesado’ refere-se a ficar retardado, fora de si, descontrolado e ‘dar um tiro’ tem o sentido de fazer uso de cocaína, por via aérea. E, mais, essas expressões revelam as sensações que a cocaína produz nele, a violência de seus efeitos e sua autodestruição ao utilizá-la.

Nessa perspectiva, ele estampa o culto das sensações de prazer multiplicadas de forma explosiva. Esse jovem com comportamentos altamente destrutivos deseja ser macho em situações de perigo muito próximas da morte e com grande visibilidade social. Participa de brigas com grupos rivais, nas quais sobram ferimentos e, inclusive, morte. Sua ruptura das leis do estado no que tange à adição às drogas e ao transporte de armas para traficantes, bem como sua atração por festas regadas pelo êxtase dos sentidos consistem em fachadas para seus conflitos com seu pai. Guiado por intensas ideias de morte, ele submerge na ruptura do vínculo com seu pai poderoso, rico e perverso. Suas variadas tatuagens-imagens agressivas – com significados delicados e sutis – revelam um garoto à procura de sua identidade. Porquanto, pontos traumáticos de sua história de vida intensificaram seu ódio a si, a seu pai e à vida.

No sistema das representações do paciente, ser agressivo, ser arrogante, ser dominador, ser traidor com sua namorada e buscar prazer destrutivo formaram-se a partir de sua identificação com seu pai. Representava-se, ainda, como: ser macho, ser inferior, ser transgressor, ser extremista e com horror a ser desvalorizado e ser inferiorizado. Sua contra-identificação com seu pai fez com que representações coerentes com seu desejo mais autêntico fossem investidas de ódio: ser empreendedor e ser bem-sucedido. Apesar dessas representações de atributos paternos – associados a dinheiro, sexo e dor – estarem ligadas ao sofrimento anterior do paciente são vitais para realizar seu desejo atual (Almeida, 2021).

Quanto a isso, com a análise, ser homem, ser autônomo, ser autossustentado e ter valor são representações substitutivas para ser macho, ser inferior e ter horror a ser desvalorizado e ser inferiorizado. Deseja ser justo, ser bom, ser protetor, ser respeitado e não ser temido, mas preparado para a traição. Em meio a essas mudanças, ele deixa de ser transgressor e de ser extremista (Almeida, 2021).

De modo geral, sua análise ajudou-o a administrar melhor sua vida psíquica e a tomar consciência de seu desejo.

Discussão

Tendo-se partido de uma frase popular e abordado um extrato clínico ilustrativo quanto a aspectos da cultura contemporânea, buscou-se trabalhá-los à luz dos conhecimentos dos antigos filósofos gregos, da filosofia atual, da sociologia, da psicanálise e da literatura do século XIX.

Os antigos filósofos gregos – que examinavam as questões do mundo no plano das ideias – consideravam que o prazer e a força das sensações precisavam ser agregados a uma forma de limite quanto a elas: à virtude, à sua utilidade e às suas consequências na alma humana (Abbagnano, 2012).

Séculos mais tarde, quando se considera o plano da experiência humana com os prazeres e seus resultados psíquicos-sociais, dois livros da literatura europeia do século XIX são paradigmáticos. Fausto se entrega aos prazeres, mas como deseja se elevar espiritualmente e ama o conhecimento, se arrepende de seus arrebatamentos hedonísticos e encontra a salvação (Goethe, 2017). Em franca oposição a quaisquer limites a seus desejos, Dorian se torna completamente egocêntrico, hiperfocado em seus prazeres e sem a mínima consideração pelas pessoas, mas, no final, sua destrutividade psíquica se volta para ele mesmo (Wilde, 2011).

Na literatura brasileira do século XIX, encontram-se alguns subsídios para comparar as dificuldades nos vínculos familiares, a desestruturação familiar e a corrupção da época com aquelas da sociedade contemporânea. Em O segredo de Augusta, o casamento motivado por ambição e por interesses materiais se assenta numa sociedade de aparências corrompida pelo poder do dinheiro e do status. Por sua vez, Galeria Póstuma retrata a ambição por dinheiro e por poder, a máscara social e a hipocrisia das relações sociais (Assis, 2005; 2015). Ao examinar os bastidores da sociedade brasileira segundo Machado de Assis, Albano (2006) aponta a teia de parasitas dependentes do sujeito poderoso, que lutavam para sair dos bastidores da sociedade e chegar ao palco da classe dominante, visando ser uma celebridade com dinheiro e poder. Destaca, ainda, a relatividade dos conceitos morais e a eterna contradição entre essência e aparência.

Dessa forma, a descrição da sociedade burguesa brasileira no século XIX – feita por Machado de Assis – apresenta algumas semelhanças com o retrato de nossa sociedade contemporânea, traçado por alguns pensadores como Freire-Costa (2005) e Pondé (2021).

Considerando-se as ideias de Baudrillard (1991) e Bauman (2005), a cultura pós-moderna favorece a adesão do sujeito às imagens-simulacros do eu, bem como às identidades estereotipadas e estigmatizadas. Elas dificultam sua consciência acerca de seu desejo. No caso do paciente, sua adesão à imagem do bad boy e sua inserção num grupo de jovens violentos – com suas identidades estereotipadas e estigmatizadas – ilustram essas questões. Mediante sua análise, ele passa a ter maior consciência de seu desejo mais autêntico e verdadeiro (Almeida, 2021). Além do mais, sua violência apresenta parentesco com a violência histórica das várias civilizações humanas anteriores à contemporaneidade (Black, 2020).

Entretanto, assim como Pinker (2018) aponta os fatores civilizatórios que têm abrandado a violência humana, o potencial da análise para lidar com ela e com as várias questões humanas pode ser acrescentado a este rol. Nesse quesito, o desejo pelo prazer dos sentidos se somado aos impulsos destrutivos humanos gera caos mental e autodestruição, como no caso do paciente e de Dorian Gray. Todavia, se o desejo de prazer for integrado a amor a si e ao outro, entre outros tópicos, a saúde mental do sujeito se faz valer.

Enfim, com suas diferentes escolas, a psicanálise propõe que o homem entre em contato com seu desejo mais essencial e verdadeiro, bem como com sua identidade emancipada das distorções sociais.

Considerações finais

Na contemporaneidade, vigora um excesso de informações, de ofertas de produtos e de consumo. Sendo assim, pode ocorrer uma adesão vazia do sujeito a formas de ser e viver preconizadas pela cultura. Esta favorece a acomodação quanto a construir projetos pessoais de base sublimatória e privilegia o êxtase dos sentidos e do prazer momentâneos conjugados à estase/paralisia dos sentidos únicos, que devem guiar a vida de cada sujeito. Nessa trama, as modalidades oferecidas para o sujeito lidar com sua vida destacam a fachada cultural para questões psíquicas individuais não elaboradas. Desde sempre, parece que suas identificações narcísicas alienantes com os imperativos culturais de cada época distanciaram-no de sua essência. Em quaisquer épocas e lugares, essa hipoteca de seu eu ao outro – família, igreja, Estado e cultura – precisa ser constantemente repensada.

Sob esse prisma, há que acreditar em algum nível de mudança da espécie para melhor, visto que o homem pode mudar suas formas de vínculo consigo e com o outro. Vínculos amorosos, saudáveis, produtivos e criativos, movidos por interesses vitais, por projetos de vida instigantes e pelos sentidos essenciais a cada vida, mobilizam as engrenagens psíquicas do que o ser humano traz de melhor.

Referências

Abbagnano, N. (2012). Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes.

Albano, S.A. (2006). Os bastidores da sociedade brasileira nos contos de Machado de Assis. https://repositório.ufsc.br

Almeida, M. E. S. (2005). A Clínica do Absoluto: Representações Sobre-investidas por Ódio e Horror. Pulsional Revista de Psicanálise, 182, 93-100.

Almeida, M.E.S. (2016). Constituição especular do desejo e sua atualização no adulto. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 9 (1), 17-31.

Almeida, M.E.S. (2021). O mundo interno de um bad boy.

Assis, M. (2005). Histórias sem Data. São Paulo: Martins Fontes.

Assis, M. (2015). Contos fluminenses. Rio de Janeiro: Martin Claret.

Baudrillard, J. (1991). A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70.

Bauman, Z. (2005). Identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar.

Black, J. (2020). A História do Mundo: da Pré-História ao Século 21. São Paulo: M.Books.

Dicionário Priberam de Português. https://dicion ario.priberam.org.

Freire-Costa, J. (2005). O vestígio e a aura: corpo e consumo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond.

Goethe, J.W. (2017). Fausto: uma tragédia. São Paulo: Editora 34.

Pinker, S. (2018). O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Cia das Letras.

Pondé, L.F. (2021). A era do niilismo: Notas de tristeza, ceticismo e ironia. Rio de Janeiro: Globo Livros.

Wilde, O. (2011). O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Companhia das Letras.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 22/04/2021
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