AS VISAGENS DA PEDRA DO TANQUE FORRADO E O CARRO FANTASMA

Adrião Neto

Preâmbulo

A Pedra do Tanque Forrado é um monólito em formato de cone com cerca de quinze metros de altura, em cujo pico achatado encontra-se uma cavidade em forma de tanque, onde acumula água das chuvas e que transborda umedecendo o paredão criando as condições ideais para posterior florescimento de um forro de limo, daí a origem do nome.

Contextualização geo-histórica

Antes da construção da rodovia que liga o norte do Piauí com o Ceará, a conexão do povoado Lagoa do Camelo e de outras comunidades interioranas do município piauiense de Luís Correia com a cidade cearense de Chaval, era feita através de uma estrada carroçável, que ia daquela comunidade até a fronteira cearense, delimitada pelo rio Timonha, passando pela fazenda São Lino, pertencente ao território do atual município de Cajueiro da Praia (PI).

A passagem para o lado de Chaval, ocorria pelo leito pedregoso do rio durante o fluxo de maré baixa, dando condição de travessia para carros, animais de montaria e pedestres, mas durante o fluxo de maré alta, a única maneira de chegar àquela cidade cearense era de canoa na travessia conhecida como Porto do Delbão, que ficava a meia distância entre a fazenda São Lino, de propriedade da família Sales e da Praia Branca, de propriedade da família Cajubá.

As pessoas chegavam naquele ponto de travessia a cavalo ou de bicicleta. Os cavalos ficavam amarrados nos mangues sob a responsabilidade do atravessador e as bicicletas seguiam juntas com os passageiros, que ao descerem da embarcação já estavam na zona urbana de Chaval.

No final daquele percurso, atualmente desativado para o tráfego de carros, avistavam-se no lado cearense, vários monólitos de diferentes formatos e tamanhos, como a célebre Pedra da Santa, assim denominada por conta da aparição de uma santa, onde construíram uma capela e colocaram a imagem de Nossa Senhora da Conceição, bastante visitada por peregrinos.

A estrada não era muito movimentada por veículos. Raramente passava um “Jeep”, uma “Rural” ou um “Pau de Arara” carregado de passageiros, mas havia um “ônibus-gaiola”, que fazia o percurso Parnaíba / Camocim, passando obrigatoriamente pelo trecho Lagoa do Camelo, São Lino, Chaval.

O meio de transporte mais frequente naquela estrada era um ônibus de propriedade do empresário Cândido Linhares, conhecido como “Horário”, que era dirigido pelo “Seu Sales” e tinha um ajudante de nome Chico Pita, que ficava “p” da vida ao ser apelidado de Balaio de Gato.

Relatos sobre os fantasmas

Do lado direito da estrada de quem vai de Lagoa do Camelo para Chaval, já nas proximidades de São Lino, encontra-se a famosa Pedra do Tanque Forrado, onde, segundo muitas pessoas, volta e meia aparecia um fantasma, que se apresentava de várias formas, de maneira visível e invisível, dependendo de quem o visse ou sentisse a sua presença.

A “visagem”, que na maioria das vezes aparecia no exato momento em que se cruzava um portal formado de um lado pela Pedra do Tanque Forrado e do outro pelo caule e galhos pendentes de uma imensa árvore situada no lado oposto, era horripilante. Muitas pessoas viviam assombradas com tanto fantasma. Para alguns, a entidade chamada de “coisa do outro mundo” se manifestava em forma de caipora ou de saci-pererê. Para outros, em forma de animais da fauna local, que no momento em que eram avistados, aumentavam de tamanho e para outros, em forma de alma penada, mas também havia quem jurasse de pé junto, que ela se manifestava em forma de ventania e redemoinho. Muitos afirmavam que quando passavam por lá, a cavalo ou de bicicleta, sentiam que um espírito do mal montava na garupa do seu transporte e seguiam de carona por grande parte do percurso.

O certo é que são muitos os relatos sobre as “visagens” da Pedra do Tanque Forrado. Não posso afirmar se são fantasiosos ou verdadeiros. Eu mesmo nunca vi nada, mas toda vez que passava por aquela pedra misteriosa, sentia muito medo e uma energia arrepiante, que percorria a minha coluna e deixava todos os meus pelos ouriçados. Por conta da minha falta de coragem, nunca passei por lá de bicicleta, só passava a cavalo e a toda velocidade. Confesso que em uma vez cheguei a ter a sensação de que algo havia montado na garupa do meu cavalo.

Além do meu relato pessoal, trago também o relato de conhecidos e de pessoas de minha família.

Provocada por mim para falar sobre suas lembranças em relação a esses eventos, a minha irmã Teresinha, relatou o seguinte:

“Eu lembro muito bem dessas histórias que as pessoas contavam que quando passavam em frente dessa pedra, viam todo tipo de assombração”.

“Eu lembro perfeitamente que na véspera de uma das muitas celebrações religiosas realizadas na igrejinha de São Gonçalo, eu, a Fátima e a comadre Maria Angélica fizemos uma viagem a pé de Lagoa do Camelo para São Lino. No meio do percurso encontramos a Diquinha, que vinha a cavalo voltando de Chaval, onde tinha ido buscar o vestido que a Sensata estava fazendo para a Fátima usar na sua Primeira Comunhão”.

“Lembro que a Diquinha vinha em companhia de uma das filhas da comadre e que ela falou: Fátima você tem que voltar comigo para experimentar o seu vestido pra ver se ficou bom ou se tem que mandar de volta para a Sensata fazer algum ajuste. Eu lembro muito bem dessa conversa. Lembro também que a comadre falou: Eu não posso voltar com vocês porque a madrinha Sinhá tá me esperando em São Lino. Aí então eu disse: Eu vou com você. Ela perguntou: Você tem coragem? E falei para ela: Eu tenho!”.

“Enquanto a Fátima voltava com a Diquinha, nós seguimos em frente. Quando passamos por essa pedra, escutamos uma voz horrorosa dizendo assim: ‘Espera que eu vou também’. Morrendo de medo a comadre pegou na minha mão e saímos correndo desesperadamente. Não sei como conseguimos correr tanto com o corpo todo gelado e as pernas tremendo”.

“A comadre sempre contava essa história que aconteceu comigo e com ela. Não sei se foi uma visagem ou se foi alguém escondido no mato querendo nos assustar, só sei que ouvimos essa voz horrorosa”.

Confrontando minha irmã Dica para se manifestar sobre o relato da minha outra irmã Teresinha, ela respondeu: “Isso tudo foi verdade. A menina da comadre que estava comigo era a Margarida. O padre que fez a Primeira Comunhão da Fátima foi o Monsenhor Carneiro. Naquela época era só ele que fazia tudo ali na Lagoa. Não era como agora que tem um padre em cada Paróquia. Eu lembro até que a Maria Sales não estava na Lagoa. Ela estava em Teresina na casa da Geni. Ela ficou aborrecida porque fizemos a Primeira Comunhão da Fátima sem a presença dela, mas tinha uma turma de Primeira Comunhão aí nós aproveitamos para fazer também a de Fátima”.

São muitas as histórias sobre esses fantasmas. Eu lembro que ouvi um relato de um vaqueiro da fazenda São Lino, dizendo que um caipora surrou seu cachorro e espantou o gado que ele ia conduzindo e dando uma gargalhada sumiu misteriosamente. E para completar quando ele entrou no matagal para atalhar uma vaca desgarrada, teve o azar de ser atingido por um galho de catingueira que o derrubou ao chão.

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Para quem conhece essa lenda bastante difundida na crença popular, sabe que a figura fantástica do Caipora está associada à defesa da floresta e dos animais; sabe que ele tem a fama de aterrorizar os caçadores, de açoitar seus cães e de trazer má sorte para quem maltrata os seres vivos da natureza; sabe também que ele aparece e desaparece misteriosamente e que toda vez que apronta as suas traquinagens, dá uma gargalhada e sai assoviando.

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Continuando o seu relato, o vaqueiro afirmou que ao se recuperar da queda e ao voltar a montar no seu cavalo, sentiu um calafrio correr pela espinha dorsal e a sensação de que “uma coisa do outro mundo” havia montado na sua garupa, assustando o cavalo, que após relinchar, deu três pulos e saiu em disparada no rumo de São Lino.

Ao chegar em casa, ainda um tanto quanto assombrado, encontrou a sua mulher aterrorizada, dizendo que uma alma penada soltou os bichos do chiqueiro, mexeu nas suas panelas, apagou o fogo e depois transformando-se numa nuvem de fumaça, sumiu misteriosamente.

O Carro Fantasma

Além dos relatos dos vaqueiros, dos caçadores e dos transeuntes sobre as visagens da Pedra do Tanque Forrado, vale ressaltar que muitas pessoas juraram pela própria alma, ter ouvido o barulho do motor e visto a luz do farol de um Carro Fantasma que transitava por aquela estrada. Os relatos eram muitos e os mais variados, que tinha em comum apenas a história do carro que desaparecia misteriosamente.

Puxando por suas lembranças, a minha irmã Teresinha, afirmou: “Eu lembro muito bem dessas histórias que as pessoas contavam que quando passavam em frente dessa pedra, viam uma tocha que era como se fosse a luz do farol e ouviam o barulho como se fosse o ronco do motor de um carro e que aquela luz focava bem em cima dos animais que os encandeavam. Eu acho que foi o Tião quem contou que o cavalo em que andava ficou só em duas patas e muito nervoso, não parava de rodar e que ele quase não conseguiu controlar o animal”.

Um motorista de Chaval chamado Zé Gouveia, que trafegava num “jeep” no sentido Lagoa do Camelo / Chaval, afirmou que no início de uma noite enluarada de sexta-feira, ao se aproximar da Pedra do Tanque Forrado, viu um negrinho correndo por dentro do mato e logo depois ouviu o ronco do motor e viu as luzes de um carro que vinha em sentido oposto. Como a estrada era muito estreita, ele parou na beira do mato para dá passagem para o outro veículo, que ao se aproximar apagou as luzes e parou de funcionar. Achando que havia acontecido algo de errado com o carro, seguiu em frente para prestar socorro, mas não encontrou nada.

Outras pessoas que trafegavam a cavalo e de bicicleta fizeram relatos semelhantes. Um deles ouviu da boca do meu próprio pai, que retornava de Chaval pela travessia do Porto do Delbão e que ao chegar do lado piauiense encontrou um rapaz apelidado de Gatim, que foi lhe esperar com duas montarias, um cavalo para cada. Mesmo com medo das visagens os dois seguiram trotando para Lagoa do Camelo, quando de repente já nas proximidades da Pedra do Tanque Forrado, surgiram na estrada as luzes dos faróis de um carro. Meu pai desceu do cavalo, chegando a retirar as esporas, no intuito de pedir carona, mas mesmo depois de bom tempo de espera, o veículo não chegou até eles. Os faróis apagaram e o ronco do motor silenciou misteriosamente. Assustados, os dois, montaram nos seus cavalos e seguiram em disparada até chegarem ao seu destino.

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Para quem não sabe, os Carros Fantasmas são veículos assombrados muito comuns no folclore americano e português, mas também existem muitos relatos de aparições de carro fantasma nas estradas desertas das comunidades interioranas, situadas nas proximidades do litoral piauiense.

Dizem que esse tipo de fenômeno ocorre quando o espírito de uma vítima fatal de algum acidente de trânsito, transforma-se num fantasma de aspecto semelhante ao veículo em que se encontrava por ocasião de sua morte.

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Como escritor nativo da região eu estava devendo para mim mesmo e para todas as pessoas da circunvizinhança o resgate dessas histórias, que só cessaram de ser contadas depois da construção da nova rodovia (atual BR 402) ligando o norte do Piauí ao Ceará através do povoado Retiro, que teve como principal consequência o abandono da estrada do Tanque Forrado, onde ocorriam as aparições.

Embora grande parte dos relatos descritos de maneira fantasiosa, possam ter sido produto da imaginação de quem garantiu ter visto algum tipo de visagem ou de ter tido alguma experiência com o sobrenatural, o meu texto não tem o propósito de referendar ou desmistificar as narrativas. O meu principal objetivo é resgatar algumas dessas histórias contadas para que não caiam em completo esquecimento.

O renomado escritor Fontes Ibiapina, um dos mais conceituados folcloristas do Brasil, autor do livro “Crendices, Superstições e Curiosidades Verídicas no Piauí”, certamente diria que tudo isso faz parte do rol de curiosidades verídicas do nosso Estado, inclusive o que aconteceu comigo e com os meus parentes.

Sei que muitos não acreditam na existência dessas coisas, mas invariavelmente terminam concordando com o provérbio espanhol que diz: “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

Adrião Neto – Dicionarista biográfico, historiador, poeta e romancista com vários livros publicados. É o autor da ideia da inclusão da data histórica da Batalha do Jenipapo na Bandeira do Piauí e da proposta exitosa para homenagear, com estátuas, os vaqueiros e roceiros no Monumento Nacional do Jenipapo em Campo Maior, PI.

ADRIÃO NETO
Enviado por ADRIÃO NETO em 20/10/2021
Reeditado em 20/10/2021
Código do texto: T7367521
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