Os amores do eu adulto

Introdução

Este capítulo objetiva discutir os amores do eu adulto. Esses amores se referem aos objetos secundários nos quais o adulto se apoia, com base na relação com seus objetos primários/pais, quando criança. Seus objetos secundários podem ser: humanos - pares amorosos e idealizados - e (i)material-simbólicos - arte, literatura, ciência, esporte, entre outros. A relação do sujeito com eles pode ser saudável ou patológica.

Para investigá-los, inicia-se com as concepções do mestre sobre o assunto, envereda-se por conceitos de outros psicanalistas e se chega aos operadores teóricos da autora. Além disso, citações e exemplos de artistas em sua relação com esses objetos, bem como um caso clínico permite apreciar outros ângulos desse tema.

A étayage ou o apoio do eu em um objeto de amor é estudado a partir de 1905. Todavia, tendo em vista o foco desse trabalho, destacam-se duas produções do autor.

Freud (1914) pontua que os primeiros objetos da criança são aqueles que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: sua mãe ou sua substituta. Em sua estruturação inicial, o eu se apoia e depende dos cuidados de seus objetos. E, mais, Freud (1926) propõe que o desamparo designa o estado do bebê que depende completamente de outrem para a satisfação de suas necessidades. Ele exerce uma influência substantiva na formação do psiquismo, que se estrutura graças à relação com o outro. No adulto, o desamparo constitui o paradigma das situações traumáticas. Situações de perda e de separação aumentam a excitação psíquica, que podem levar o sujeito a ficar engolfado por elas.

Pensando a transmissão da vida psíquica na família, Kaës (2005) declara que o sujeito é nomeado, representado e situado segundo o desejo dos porta-vozes do desejo, interditos e ideais desse grupo. Seus membros transmitem configurações de objetos psíquicos - representações, afetos e fantasias - seus vínculos e relações de objeto. O sujeito da herança fica dividido entre ser um fim em si mesmo e, ainda, ser o elo da cadeia intersubjetiva à qual está assujeitado.

Dada a condição de desamparo, vulnerabilidade e dependência intrínseca à criança, seu apoio nos objetos primários é essencial para sua sobrevivência. Sob essas circunstâncias, ela se assujeita à cadeia intersubjetiva de sua família. Assim, a criança recebe representações, afetos, fantasias, vínculos e relações de objeto.

Os amores do eu adulto

Os amores do eu adulto são compreendidos como os objetos de seu desejo. Para a criança, os objetos primários constituem o apoio axial de seu eu, em situações saudáveis ou patológicas. No adulto, os objetos secundários fornecem um modo capital de suporte do eu, na saúde e no caos mental. No caos mental, diante de sua incomensurável dor d’alma, o sujeito pode romper sua relação com objetos humanos e com o mundo. Assim, seu eu fragmentado - na relação com os objetos primários e secundários humanos - tende a recorrer aos objetos secundários (i)material-simbólicos.

Esses objetos (i)material-simbólicos podem ser relacionados à sublimação.

Freud (1926) afirma que a sublimação é o mecanismo de defesa mais sofisticado da psique. Ela canaliza as pulsões sexuais para um alvo não sexual, que faculta atividades socialmente valorizadas: a arte, a ciência e o esporte. Ela se liga ao desejo - que impulsiona as criações humanas - e ao humor - que suprime o sofrimento psíquico. Ela libera as pulsões agressivas do superego, em oposição às pulsões libidinais. A sublimação opera transformando as pulsões em criações culturais.

Apesar de sua relevância na psique e na cultura, há limites da sublimação na criação artística. Assim, Carvalho (2006) propõe que o artista, para criar, tem de manter contato com as pulsões perigosas e destrutivas do eu. Sua maior ou menor distância dessas fontes pulsionais destrutivas favorece ou prejudica seu equilíbrio psíquico.

Faz-se mister considerar outras perspectivas psicanalíticas acerca da arte, abrangendo aspectos obscuros da mente.

Kaës (2002) advoga que a arte bruta - a arte das pessoas singulares, das invulgares e dos autodidatas - renova as questões acerca da relação da arte com suas fontes, suas fronteiras e seus criadores. Na brecha aberta pela loucura, pela rebelião e pela poesia, a figuração do insólito pode apoderar-se do enigma da origem, do desejo e dos sonhos perdidos. A relação vital desses artistas é com o estranho, o estrangeiro íntimo, com a violência do mundo interno e a crueza do mundo externo - não com o belo. E, mais, Frayse- Pereira (2011) discute a arte enquanto expressão do amor e manifestação da pulsão de vida - campo de tensão com a inveja - expressão do ódio e vertente da pulsão de morte. A inveja esteriliza a curiosidade e a criatividade humanas.

Junto com essas contribuições específicas sobre a arte, cabe refletir sobre o recurso aos objetos (i)material-simbólicos frente ao ódio na psique. A esse respeito:

Klein (1996) assinala que o objeto idealizado é construído como defesa contra a ansiedade gerada pelos objetos persecutórios, em virtude da ação da pulsão de morte Por sua vez, Racamier (1991) define o paradoxo como uma formação psíquica, que liga duas proposições inconciliáveis, de forma indissociável. O paradoxo deriva da agressão ao eu, suscitando um ódio intenso e paralisante em sua vítima.

Na clínica psicanalítica contemporânea, os pacientes apresentam neuroses traumáticas, adições, transtornos alimentares, promiscuidade e outras patologias. Falta-lhes uma vida simbólica, sendo que vivenciam forte desamparo e ódio, quando lhes falta o apoio de cuidadores empáticos (Costa, 2008). Na subjetividade contemporânea, a pulsão de morte e seus efeitos destrutivos permeiam patologias, radicadas além do princípio de prazer. São pacientes com sérias falhas de simbolização, cujo vazio irrompe no lugar da representação. Imperam, neles, transtornos obsessivo-compulsivos, síndrome do pânico, adições às drogas, compulsão sexual (Vilutis, 2003).

No que se refere a isso, a compulsão por poder, dinheiro, comida, bebida, drogas, jogo, jogos eletrônicos, sexo, trabalho, consumo e exercício físico posiciona esses objetos secundários (i)materiais-simbólicos, como deletérios. Funcionam como próteses narcísicas do sujeito, que visam fornecer uma ilusória armadura em face de seu eu dilacerado. Portanto, o uso dos objetos (i)material-simbólicos se desdobra no tempo, no sentido retrospectivo e prospectivo da vida psíquica humana.

O eu e seu suporte nos objetos (i)materiais-simbólicos

Na família - grupo matricial do sujeito - a étayage do eu da criança no eu dos objetos primários e destes sobre o eu dos antecessores tem impactos psíquicos mais saudáveis ou mais patológicos. Assim sendo, seus pais e seus antepassados influenciam o psiquismo da criança. Esta, à medida que se torna adulta elege objetos secundários, que podem ser: humanos ou (i)material-simbólicos - a literatura, o cinema, o teatro, a pintura, a música, a escultura, o dinheiro, bem como o esporte e a ciência. Os objetos secundários humanos podem ser seus pares amorosos em sua vida adulta: namorados/namoradas e maridos/esposas e, até mesmo, seus amigos e amigas. Podem ser, ainda, objetos humanos idealizados por ela. Sua relação com esses objetos revela-se mais construtiva ou mais destrutiva, segundo suas vivências em sua família original.

Na espiral das gerações da família, o eu rudimentar da criança se organiza a partir de seu suporte no eu melhor organizado dos objetos primários, que cuidam dela em seu desamparo. Este desamparo originário se acentua, quando esse cuidado e esse suporte falham. Logo, seu desamparo se torna patológico dadas as ‘falhas’ dos objetos primários, no sentido de não ajudarem a criança a construir um eu diferenciado do deles.

No adulto, esse desamparo patológico se apresenta como falta de cuidado para consigo mesmo e reduzida força psíquica para ele ser no presente o que ele pode ser. Nesse caso, ele não diferencia seu desejo do desejo dos objetos primários e secundários, não se apropria da singularidade de seu desejo e, tampouco, sustenta seu desejo em si. Com isso, ele tende a buscar um objeto secundário humano para suprir essas faltas de seu eu. Todavia, seu desejo de ser suprido pelo objeto secundário pode se tornar insaciável, dadas suas frustrações e conflitos com os objetos primários/pais e secundários/humanos anteriores. Em vista disso, ele busca apoiar-se no objeto (i)material-simbólico, de forma defensiva. Porém, esse suporte ilusório no objeto (i)material-simbólico está fadado ao insucesso.

O fracasso do suporte no objeto (i)material-simbólico

Para ilustrar o suporte ilusório do adulto num objeto (i)material-simbólico, examina-se a relação entre o sujeito/ventríloquo, seu objeto imaterial-simbólico/teatro, seu objeto material-simbólico/boneco e seu objeto humano idealizado-persecutório Sylvester. Ao que parece, a dinâmica da interação de um ventríloquo com seu boneco não tem sido estudada em psicanálise e em psicologia.

Quanto a isso, um quadro do filme Dead of night/Solidão da noite (1945) aborda a relação patológica entre o ventríloquo Max e seu boneco Hugo. O eu dissociado desse ventríloquo esquizofrênico encontra - no boneco - um pretenso sustentáculo para sua vida psíquica. Assim, ele projeta, em Hugo, representações, afetos e fantasias - alienados de si mesmo. Nesse contexto, ele aparece como Max, o grande, num cartaz de teatro. Todavia, sua suposta grandeza na ribalta, esconde um eu dividido na intimidade. Pois, Max vive com Hugo, uma relação caótica no domínio privado - oposta a seu sucesso profissional no âmbito público. Essa problemática envolve Sylvester, um ventríloquo rival de Max, mas que tenta ajudá-lo num momento psíquico deveras crítico. Na visão de Sylvester, essa ajuda implica separá-los, de modo que ele esconde Hugo. Todavia, essa fatídica separação aumenta o caos mental de Max.

Comparando-se a Sylvester, Max implora a Hugo: ‘Eu sei que ele é melhor, mais forte e mais equilibrado do que eu, mas não me abandone’. Noutro momento de fragilidade de Max, Hugo lhe diz: ‘Ele não vai machucar você’. Nessas situações, Hugo parece funcionar como objeto de apoio para o eu de Max. Contudo, noutro momento, Hugo diz a Max que ele é ‘louco de hospício’ e que vai ficar com Sylvester. Nesse caso, Hugo aponta a ‘loucura’ de Max, exacerba seu medo de ser abandonado por ele/ Hugo e provoca-lhe repulsa e ódio. Então, Max estapeia Hugo e a seguir, o desmembra. Possivelmente, a cena representa o despedaçamento terminal de seu eu. No final, Max aparece caracterizado com o rosto de Hugo. Teria se tornado o boneco, perdendo os últimos vestígios de seu eu diferenciado de Hugo.

Nessa relação, há a cisão do sujeito Max e a cisão do objeto Hugo em bom e mau; o conflito entre amor e ódio em Max, bem como sua atração e sua repulsa por Hugo. Destaca-se, além do mais, a proteção e a ameaça ao eu de Max por meio de Hugo; a superioridade e a inferioridade de Max frente a Sylvester. Ainda na relação entre Max e Hugo, há uma espécie de autotraição de Max a si mesmo, falhas nos limites entre o ser animado/Max e inanimado/Hugo, bem como o tema do duplo.

Fundamentando essas ideias, Freud (1919) informa que o fenômeno do duplo se revela mediante personagens considerados idênticos, pois parecem semelhantes. Nessa relação, um personagem possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Nessa identificação do sujeito com outra pessoa, ele fica em dúvida acerca de seu eu ou o substitui por um estranho. Assim, há a duplicação, a cisão e o intercâmbio do eu. Complementando esses conceitos, Klein (1996) pontua que a cisão do objeto é um meca¬nismo do ego que cons¬titui a defesa mais primitiva contra a ansiedade. A partir disso, o objeto é cindido em objeto bom e objeto mau.

Em se tratando da esquizofrenia do ventríloquo, a divisão de seu eu se torna muito crítica, grave e violenta. Portanto, o apoio patológico de seu eu - violentamente cindido - no objeto material-simbólico/boneco traduz uma dinâmica psíquica caótica. Além disso, o objeto idealizado/Sylvester é o continente das projeções das representações valorizadas por Max: melhor, mais forte, mais equilibrado, mais saudável, mais corajoso e mais confiante - para ser o escolhido de Hugo, em oposição a seu medo de ser abandonado por ele. Essas representações se misturam com o suposto desejo e poder de Sylvester de machucá-lo.

Ao lado da relação entre Max, Hugo e Sylvester, outros exemplos permitem refletir sobre as forças mentais destrutivas, a violência do mundo interno e a luta por equilíbrio mental em artistas de diferentes períodos histórico-culturais da humanidade.

A relação caótica de grandes artistas com os objetos (i)material-simbólicos

A relação entre a genialidade e o sofrimento mental do artista é longínqua, de modo que o ‘gênio’ - e o homem comum - de outras épocas pareciam fadados a sofrer. Porquanto, o conhecimento do cérebro e a produção de remédios psiquiátricos potentes diante da dor psíquica são muito recentes na história da humanidade (Dalgalarrondo, 2008). Ademais, sem a possibilidade de uma terapia, o sofrimento psíquico de artistas não podia ser amenizado. A despeito disso, eles talvez pudessem encontrar certa estabilidade emocional, certo prazer e certo alívio para seu sofrimento mental, junto aos objetos (i)material-simbólicos, eleitos por eles.

Em se retratando a relação entre caos mental e objetos (i)material-simbólicos empregados de forma defensiva na arte, encontram-se inúmeras citações e exemplos.

No setor da escultura, Camile Claudel escreve: ‘Só a Arte e a Poesia contam na vida. Todas as convenções da família, da sociedade e da religiāo nāo sāo mais que enganos’ e, ainda, ‘Há sempre algo de uma ausência que me atormenta’. No terreno da literatura, Rubem Fonseca registra: ‘A literatura é uma forma socialmente aceita de loucura’. No campo da música clássica, Tchaikovsky alega que: ‘Se não fosse pela música, haveria mais razões para se ficar louco’. No plano da pintura, Frida Kahlo assinala: ‘Não me permitiram preencher os desejos que a maioria das pessoas considera normais e nada me pareceu mais natural do que pintar o que não foi preenchido’ e ‘Emparedar o próprio sofrimento é arriscar que ele te devore por dentro’. Certo pintor anônimo diz: ‘a pintura me ajuda a lidar com os buracos incomensuráveis do meu ser’. Com relação a Guernica, Picasso (1937) afirma: ‘Não, a pintura não é feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo’ (Fonseca, 2008). Assim, essa obra parece apontar o ódio e o horror de Picasso diante da guerra civil espanhola. E, ainda, a fala de Kahlo e a do pintor anônimo evocam a vivência do vazio.

As pulsões destrutivas da mente se fizeram valer em artistas desde sempre. A despeito de muitos serem talentosos, famosos e ricos, podem vivenciar inadequação social e tragédias pessoais - em diversas épocas e gerações.

Nesse vértice, os poetas ‘malditos’ do século XIX - Lautréamont, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud e Byron - trilharam os caminhos da arte, romperam as regras sociais de sua época e enveredaram pela senda da autodestruição. Álcool, drogas, descaso com dinheiro, sexo sem limites e sem cuidados adequados - Verlaine e Rimbaud - favoreceram sua evasão da realidade. Em sua história familiar fatoram-se conflitos: abandono do pai, ódio à mãe e ao padrasto, choques com a sociedade da época (Steinmetz, 1982). Hirt (2005) examina a vida psíquica de Baudelaire, inclusive sua concepção de que a volúpia suprema do amor reside na certeza de fazer o mal. Além disso, a força do ódio, da crueldade e do sadismo ficam evidentes nos Cantos de Maldoror de Lautréamont e nos comportamentos violentos de Verlaine, Rimbaud e Byron. Por sua vez, o sofrimento psíquico de natureza ancestral de Rimbaud foi abordado por Mijolla (1985). Para o diagnóstico de Byron como psicopata, a herança psíquica destrutiva de sua família contribuiu muito (Fitzgerald, 2015).

Ainda no campo da literatura, a ‘geração perdida’ nomeia o grupo de celebridades americanas, que viveu em Paris entre o fim da primeira guerra mundial e o começo da grande depressão. Seus representantes mais significativos são: Ezra Pound, T. S. Eliot, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Tennessee Williams. Sua imensa criatividade não impediu que T. Williams e S. Fitzgerald morressem devido às sequelas do alcoolismo e que E. Hemingway se suicidasse (Laing, 2016). Mais recentemente, a vida caótica e o fim trágico de grandes músicos como Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Winehouse envolveram essas questões. Com isso, ressalta-se que o mero recurso aos objetos (i)material-simbólicos de per si - face a seus conflitos - não lhes assegura saúde mental e, tampouco, formas construtivas de lidarem com suas vidas.

Dentre outras formas de sustentação do eu ao longo da civilização humana, a família, a religião, a educação e o trabalho se prestaram e se prestam a organizar o eu, em face do desejo e dos impulsos construtivos e destrutivos. Apesar de suas limitações, funcionaram como eixos tradicionais de esteio do eu, como instituições sociais. Consoante Durkheim (1969), a instituição social é uma forma de organização da sociedade, com base em um conjunto de regras e procedimentos padronizados, reconhecidos e sancionados por ela. Sua importância é manter a organização do grupo e satisfazer as necessidades das pessoas que o compõem.

Não obstante sua considerável relevância para a civilização, os recursos que a família, a religião, a educação e o trabalho fornecem para a saúde mental do sujeito podem ser limitados. Dada a importância dos objetos primários na formação do eu, essas relações favorecem ou prejudicam sua saúde mental. Sua relação mais salutar ou mais caótica com os objetos (i)material-simbólicos deriva dessa trama familiar.

A relação sublime de grandes artistas com objetos (i)material-simbólicos

Frente a primazia de citações e exemplos do pathos/sofrimento dos artistas -envolvendo os objetos (i)material-simbólicos - cabe fazer um aparte quanto a isso.

Primeiramente, se esclarece a noção de sublime - referida no titulo dessa seção. Assim, ainda que os dicionários de arte contenham definições desse termo, trabalha-se com seu significado no dicionário de português, por se coadunar com o enfoque conferido a ele, pela autora. O conceito de sublime designa o estilo nobre nas produções literárias e artísticas de relevo e brilho incomuns; a mais elevada expressão da perfeição estética; os conteúdos mais elevados nos sentimentos, nas palavras e nas ações humanas (Michaelis online, 2021).

Assim, a arte pode visar o sublime, além de retratar o belo e o estranho. Considerem-se as obras: ‘Lírios aquáticos em Giverny’ de Monet, ‘Beleza russa em uma paisagem’ de Kandinsky, ‘O Juízo final’ de Hieronymus Bosch e ‘Saturno devorando um filho’ de Goya. Do ponto de vista tradicional, os quadros de Monet e Kandinsky podem ser vistos como belos, enquanto os outros revelam o estrangeiro íntimo da mente humana. Entretanto, a qualidade do sublime é intrínseca a todos eles, posto que o sublime remete ao apogeu da criatividade e da inovação da obra, com sua ruptura de paradigmas artísticos - evidentes nesses grandes mestres (Achlei, 2020).

O desejo, o sistema representacional e o trauma do absoluto

Para se estudar a relação do sujeito com seus objetos, vale resumir os três operadores teóricos - ligados à clínica psicanalítica.

O desejo orienta os movimentos psíquicos do sujeito em direção aos seus objetos de satisfação, de modo a se consolidar no mundo. Em sua vida adulta, seu desejo se realiza de modo fluido ou fica bloqueado, com base no material psíquico herdado de seus antecessores. Portanto, a étayage do eu do sujeito no eu de seus pais e ancestrais aciona diferentes gerações. Sob esse background, o potencial representativo do sistema das representações é alterado sob a influência dos traumas. O trauma do absoluto inibe a efetivação do desejo do sujeito (Almeida, 2003; 2016). O desejo, o sistema das representações e o trauma do absoluto estão diretamente ligados aos amores do eu adulto.

A clínica dos amores do eu adulto

O presente caso clínico visa exemplificar o apoio ilusório do sujeito nos objetos (i)material-simbólicos. Deriva do uso do método clínico psicanalítico.

A paciente é filha de imigrantes, que sofreram inúmeras perdas afetivas e financeiras - no plano pessoal e familiar - com a segunda guerra mundial. Seu pai perdeu a oportunidade de tornar-se diplomata e viajar ao redor do mundo. Além disso, seu pai/avô da paciente reprimiu seu desejo de ser um artista famoso e o direcionou ao casamento. Seu ódio tornou-se intenso. No que se refere à sua mãe, a gravidez da irmã mais velha numa aldeia de um país ultraconservador, as traições do pai, a descoberta de sua segunda família, a perda do patrimônio da família e a mudança para dois novos países geraram, nela, intensos ódio, horror e vergonha. Assim sendo, a paciente é a depositária dos intensos ódios, horror e vergonha de seus pais, com base na infância de ambos e em seu casamento conturbado.

Na paciente, o trauma do absoluto se apresenta de forma exemplar. Dada sua herança psíquica, ela vivencia sua afetividade como extremamente caótica, visto que envolve suas figuras parentais agressivo-destrutivas. Dessa forma, seu intenso ódio a si e aos objetos primários favoreceu seu horror às demais pessoas e sua especial distância afetiva da figura masculina. Em consequência disso, seu amor é investido nos objetos secundários: (i)materiais-simbólicos - leitura e escrita - e humano idealizado - escritor famoso. Ela odeia, ainda, seus aspectos masculinos e femininos, cindidos e projetados nos objetos (i)material-simbólicos. A literatura representa sua faceta masculina, tendo como função defendê-la de sua afetividade - que representa sua faceta feminina. Como defesa, o exercício passivo da leitura, bem como o exercício ativo da escrita visa excluí-la de sua família e do mundo.

Ela se retirou do mundo dos vivos, em especial, quanto ao amor e ao sexo. Pois, ela introjetou o ódio e o horror maternos, quanto a eles. A morte do vínculo com seu desejo e com o mundo fez com que, tão somente, a leitura a ligasse ao mundo dos vivos. Assim, usava a literatura como defesa e ataque contra os objetos e o mundo. Então, paralisou-se num paradoxo de relação: afastando-se do amor e dos vivos, aboliria sua dor com eles, mas isso a fixou no tempo infinito do ódio e da morte de seu desejo.

Sob tal tessitura, seu voto de ódio perpétuo às figuras parentais e à figura masculina consistia num decreto irrevogável - para extirpar, de si, a loucura familiar. Junto com isso, seu sucesso dependeria do fracasso, da derrota e do massacre absoluto das figuras parentais. Nesse entremeio, torturava-se por ser fracassada no mundo.

Com a análise, sua sexualidade adquire um tom menos caótico, mas ser olhada por muitas pessoas a fragiliza. Para ela, o mundo é o espaço dos homens: grandes, poderosos e sádicos. Em meio a isso, vive o pavor de enlouquecer, caso desista do voto de nunca amar um homem. O auge da ruptura de suas defesas se dá, quando ela se apaixona pelo escritor famoso/objeto idealizado. Ele é considerado fera, em literatura. Paradoxalmente, ela deposita, nele, seu ideal de ser invulnerável ao amor, mas busca refúgio para o amor - dado seu ódio ao amor. Ser fera remete-a ser sádica, ser cruel e ser insensível como o pai poderoso. Todavia, fera remete a ser excelente na profissão. Para tanto, ela deve ser firme, determinada e persistente. Contudo, exercitar seu desejo com vigor no mundo seria ser sádica, dado seu pavor de ser cruel como seu pai.

Nessa trama, seu talento para escrever constitui um objeto (i)material absoluto: forma de proteção de seu eu. Contudo, ela representa sua capacidade de criação literária como parte da herança parental odiada. Assim, ela a investe de ódio e não consegue escrever. Além do mais, ela representa sua criação como garantia de ser invulnerável ao amor. Paradoxalmente, sua criação é sobrevalorizada por ela, mas amaldiçoada e perdida para sempre. Ela derivaria da degeneração de sua família, sendo sintoma de ela ser mórbida e ser louca. Logo, sua criação deve ser proibida e ser escondida do mundo. Assim sendo, ela se paralisa diante de seu desejo de lançar sua própria obra no mundo. Para fazê-lo, requer uma garantia de sua obra ser amada por todos, de modo absoluto.

Esse processo caótico resvala para o objeto humano absoluto/escritor famoso. O monopólio da escrita por esse objeto idealizado se deveria a sua genealogia familiar privilegiada. Portanto, sua criação deve ser exibida no mundo como signo de saúde. De modo paradoxal, ela subtrai o poder projetado nesse objeto, visto que seu talento para escrever adviria de mera herança genética. Porém, ela representa esse objeto idealizado como: ser tudo, ser perfeito, ser majestoso, ser magnífico, ser brilhante, ser detentor absoluto da arte de escrever e ser invulnerável ao amor.

Discussão

Em se pensando a relação ficcional entre Max, Hugo e Sylvester, bem como as citações de grandes escritores, escultores, músicos e pintores torna-se patente a relação entre a arte e o sofrimento psíquico do artista. A esse respeito, Carvalho (2006) propõe que o artista, para criar, tem de manter contato com as pulsões perigosas e destrutivas do eu. Sua maior ou menor distância dessas fontes pulsionais destrutivas favorece ou prejudica seu equilíbrio psíquico.

No que tange aos poetas ‘malditos’ do século XIX - Lautréamont, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud e Byron - sua história familiar manifesta intensos conflitos: abandono do pai, ódio à mãe e ao padrasto, choques com a sociedade da época (Steinmetz, 1982). Hirt (2005) examinou a vida psíquica de Baudelaire e sua concepção de que a volúpia suprema do amor reside na certeza de fazer o mal. Além disso, o ódio, a crueldade e o sadismo ficam evidentes nos Cantos de Maldoror de Lautréamont e nos comportamentos violentos de Verlaine, Rimbaud e Byron. Por sua vez, Mijolla (1985) analisou o sofrimento psíquico de natureza ancestral de Rimbaud. No diagnóstico de Byron como psicopata entrou a herança psíquica destrutiva de sua família (Fitzgerald, 2015). Dentre os grandes representantes da ‘geração perdida’, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e Tennessee Williams tiveram vidas caóticas. Mais recentemente, a vida caótica e o fim trágico de grandes músicos parecem denunciar, igualmente, conflitos relativos às pulsões destrutivas.

No tocante a esses artistas, as concepções de Kaës (2002) fazem sentido. Na brecha aberta pela loucura, pela rebelião e pela poesia, a figuração do insólito pode apoderar-se do enigma da origem, do desejo e dos sonhos perdidos. A relação vital desses artistas é com o estranho, o estrangeiro e o estrangeiro íntimo, a violência do mundo interno e a crueza do mundo externo - não com o belo.

O caso clínico em pauta demonstra a relação caótica da paciente com objetos. A história de vida de seus pais, igualmente, se encontra marcada pelo caos do desamparo, perdas, separações, frustrações e conflitos. No que concerne a isso, Freud (1926) propõe que o desamparo exerce uma influência substantiva na formação do psiquismo, que se estrutura graças à relação com o outro. No adulto, o desamparo constitui o paradigma das situações traumáticas. Situações de perda e de separação podem levar o sujeito a ficar engolfado por elas.

A paciente sustenta seu eu em representações do trauma do absoluto: ser um nada, ser um zero e ser invulnerável ao amor.

Outras representações da insignificância de seu eu aparecem: ser incompetente para escrever, ser débil mental e ser doente mental. Ela está paralisada, ainda, sob as representações de ser impossível amar, ser amada e ser uma grande escritora. Logo, seu fascínio pelo objeto idealizado envolve intensas idealização e perseguição, ligadas a seus impulsos eróticos e agressivos. Fratura em seu sistema representacional, essa idealização-perseguição gera, nela, tanto caos mental quanto potencial crescimento psíquico. Enfim, a reconstrução de seu eu depende de ela conseguir amar esse objeto idealizado (Almeida, 2003). Quanto a isso, Klein (1996) diz que o objeto idealizado consiste numa defesa contra a ansiedade ligada aos objetos persecutórios. A isso se entrelaçam os paradoxos (Racamier, 1991).

Logo, seus paradoxos envolvem o objeto primário idealizado-persecutório/pai, o objeto secundário idealizado-persecutório/escritor famoso e os objetos secundários (i)materiais-simbólicos/leitura e escrita. Pois, há profundas conexões entre os objetos humanos primários e secundários e o objeto secundário imaterial-simbólico - escrita- investidos por amor e por ódio. A malha de suas representações e seu ódio a esses objetos faz parte do ódio ao seu desejo, visando manter seu ódio aos pais internos. Acerca dessa transmissão da vida psíquica na família, Kaës (2005) declara que o sujeito é nomeado, representado e situado segundo o desejo dos porta-vozes do desejo, interditos e ideais desse grupo. Seus membros transmitem representações, afetos e fantasias, seus vínculos e relações de objeto.

Visto que as representações do absoluto estavam fortemente fixadas no sistema das representações, ela não podia integrar as representações de seu dom para a escrita. Para integrar - como suas - as representações sobrevalorizadas projetadas no objeto idealizado, ela devia reconhecer os aspectos positivos de seu legado psíquico. Todavia, ela se recusava a fazê-lo. Ela representava perdoar e amar seus pais como absolutamente impossível, pois seu ódio a eles era incomensurável e insaciável. Suas representações eram: ser invulnerável ao amor e ser vitoriosa ao odiar seus pais, opostas a ser vulnerável ao amor e ser derrotada - ao amá-los e perdoá-los. Não haveria vingança proporcional a sua dor psíquica: a morte de seus pais reais e uma indescritível tortura com eles - que durasse para sempre - seriam insuficientes para aplacá-la. O tempo absoluto do ad aeternum - para curar suas feridas narcísicas - a aprisionava: ser impossível realizar seu desejo de ser uma grande escritora e viver um grande e sublime amor (Almeida, 2003).

A mera possibilidade de ela se descolar de seu ódio aumentava-o, como reação de sobrevivência de seu frágil eu. Por conseguinte, o mundo da escrita e dos grandes escritores era representado como um não-lugar. Seu maior paradoxo envolvia o horror de ela ter que amar o objeto idealizado/escritor famoso, para ter acesso a seu dom da escrita. Além do mais, descolar-se da fusão com esse objeto, enchia-a de pavor e paralisia. Esse descolamento era vivido como ameaça de lançá-la a assumir seu desejo no mundo. Em síntese, seu próprio desejo era apavorante para ela.

Essa trama remetia às falhas da representação do sistema das representações, devido ao ódio e ao horror. Nesse sistema, um longo trabalho com as representações e seus afetos fez-se necessário para sua mudança psíquica. No plano dos afetos, o ódio e seus derivados - horror e pavor - junto com a paralisia psíquica causada por eles, foram elaborados em análise. Além disso, a assunção de seu talento demandou desemaranhar os paradoxos acerca de seus objetos (Almeida, 2003).

Para tanto, fez-se necessário transformar a idealização do objeto em amor a ele, bem como transformar seu ódio às figuras parentais em gratidão e reconhecimento a elas. Sua potência afetiva e artística viabilizou-se a partir desses investimentos e desinvestimentos, reorganizado suas defesas. Para ser bem sucedida ao ser a si mesma, houve o rearranjo desta malha de conteúdos no sistema. Permitiu-lhe ser amorosa e ser competente como escritora: modos sublimes de seu eu, segundo ela.

Considerações finais

Ao se atentar à relevância dos objetos humanos e (i)materiais-simbólicos na vida psíquica, o bem-estar e o conforto psíquico - assegurado por eles - é limitado. Quando o sujeito vive a ameaça de grave desestruturação do eu, um objeto (i)material-simbólico pode preservar seu eu - de modo parcial, precário e limitado no tempo. Logo, eles não asseguram, de per si, saídas salutares, construtivas e organizadoras do eu.

Desse modo, a obra de arte parece constituir um recorte do psiquismo do autor, podendo expressar seus estados mentais e afetos: ódio, medo, horror, tristeza, desespero, desamparo. Estes se apresentam para além do amor e da criatividade sublimes. A partir de sua herança psíquica, quiçá, o artista precise encontrar o sublime em sua obra e em sua vida. Parece ser esse o diferencial entre o artista - que conjuga o sublime em sua obra com uma vida interior saudável e construtiva - e outro artista que sucumbe ao caos mental - a despeito do sublime em sua obra. A arte como objeto (i)material-simbólico de étayage do eu destaca o valor de os artistas trabalharem seu desejo, diferenciando-o dos seus pais.

Outros objetos (i)material-simbólicos se deram a conhecer nessa investigação. No caso da paciente marcada pelo trauma do absoluto, seu funcionamento mental estava paralisado sob um circuito fechado de representações e de afetos inconscientes. Seus objetos idealizado e (i)material-simbólico - escrita - se articulavam às representações patológicas inconscientes, que paralisavam seu desejo. Com a análise, deram lugar a outros sentidos saudáveis e conscientes, de modo que seu desejo mais sublime pode se realizar: amar-se, ser amada e ser uma ótima escritora.

Na vida psíquica do sujeito, os amores do eu assumem papel fundamental. Assim, encontrar um objeto humano especial - digno de admiração e capaz de prover certo suporte ao sujeito e este ao objeto - tende a ser salutar para ambos, na vida adulta. Esse objeto secundário salutar se diferencia daquele idealizado pelo sujeito, por meio do qual ele se priva de seus talentos. Os excessos de amor e de valor quanto ao objeto no sistema das representações, portanto, são nocivos para o sujeito. Por seu turno, o objeto (i)material-simbólico pode fazer parte de sua herança genética. Influenciado pela herança psíquica da família, seus significados e sua utilização podem ser mais construtivos/saudáveis ou mais destrutivos/patológicos. Em geral, adquirem grande magnitude na vida psíquica do sujeito.

Em síntese, o mero recurso aos objetos secundários não proporciona saúde psíquica ao sujeito. Em contraste com isso, a análise a favorece - ao trabalhar seus traumas. Ele pode descobrir formas mais salutares de ser e de viver, ao interrogar seu desejo. Para realizá-lo no mundo, sua trama - sofrimento psíquico, ódio, horror e paradoxos mentais - tecida junto aos objetos primários, precisa ser elaborada. Por fim, a vivência psíquica do sublime aparece em relevo, quando da elaboração do ódio e do horror no trauma do absoluto. Em vista disso, vale fazer uma análise para produzir mudanças psíquicas nos significados dos objetos/amores do eu.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 29/09/2023
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