As representações e os ‘graus’ do sofrimento psíquico

Introdução

Este capítulo almeja examinar os ‘graus’ do sofrimento psíquico, ilustrados mediante sequências de representações mentais em sua relação com o desejo, os traumas e o sistema representacional do sujeito. Para tanto, as séries de representações do sofrimento psíquico presentes no cotidiano e na clínica são descritas adiante.

Esse material deriva da seleção aleatória desses grupos de representações, seguida de sua análise, visando descobrir seus sentidos, produzir novas ideias sobre eles e dialogar com o capítulo As representações do sofrimento psíquico. As seções desse capítulo - interligadas entre si - permitem obter uma melhor compreensão desse tema.

Para investigá-lo, os conceitos de clínica extensa e de pesquisa com o método psicanalítico são retomados. A seguir, as cadeias de representações são articuladas a outros conceitos psicanalíticos e às hipóteses de trabalho da autora - desejo, trauma do absoluto e sistema representacional (Almeida, 2003, 2005, 2016).

Levando em consideração que as representações mentais assomam à consciência em inúmeras situações, a clínica extensa permite aplicar o método psicanalítico a domínios além do consultório. Essa clínica compreende a psicanálise da cultura e da sociedade, sua relação com a literatura e as artes, bem como sua integração com as ciências. Além disso, ela estende o método psicanalítico para o mundo e para qualquer produção humana, nos planos individual e social (Herrmann, 2005).

A clínica extensa se alinha à investigação de fenômenos contemplados fora da situação analítica. Quanto a isso, Figueiredo e Minerbo (2006) pontuam que a pesquisa com o método psicanalítico requer um pesquisador atuante em psicanálise, de modo que o investigador, seus meios de investigação e o objeto são transformados nessa prática. O método psicanalítico viabiliza interpretar fenômenos do universo simbólico humano: fenômenos psíquicos, socioculturais e institucionais observados fora da análise.

As representações, o narcisismo e a herança psíquica na família

Os ‘graus’ do sofrimento psíquico - assinalados pelas representações e seus afetos - se interligam ao campo do narcisismo, em sua vertente saudável ou patológica. Esses conteúdos são forjados em meio à transmissão da vida psíquica na família, no mais das vezes, sendo que os autores ajudam a pensar essa questão.

Enquanto para Freud (1914) o narcisismo refere-se ao investimento de libido no ego, outros autores entrelaçam conceitualmente narcisismo e ódio, viabilizando pensar os graus do sofrimento psíquico. Dentre eles, vale considerar:

Green (1998a) pontua que o narcisismo de vida corresponde ao investimento da pulsão de vida nos objetos. A pulsão de vida cria uma relação com o objeto e o investe, ligando-se a investimento. O narcisismo negativo representa a pulsão de morte no eu, que realiza o desligamento e o desinvestimento do objeto. Sua expressão é o ódio. Na clínica dos sofrimentos narcísicos, a defusão pulsional é o modo de vinculação e desvinculação, empobrecedor do ego. Assim, a clínica remete às falhas da atividade representativa, à paralisia da análise e ao irrepresentável. A dimensão irrepresentável da pulsão de morte gera desligamentos na identificação e na simbolização (Green, 1998b).

Rosenfeld (1998) descreve o narcisismo libidinal e destrutivo. O narcisismo libidinal decorre da supervalorização do self - idealizado e onipotente - via identificação com os objetos ideais. No narcisismo destrutivo onipotente, a erotização da pulsão agressiva resulta da identificação com partes do self destrutivas idealizadas, nas relações de objeto indiferenciadas. Esse narcisismo nega a separação e a dependência do objeto, insuflando a onipotência narcísica. Os aspectos destrutivos nos vínculos libidinais minam a dependência do objeto - destituído de valor e tratado com indiferença. A primazia do narcisismo destrutivo sobre o narcisismo libidinal se deve à destrutividade, diante da frustração e da dependência do objeto.

Faimberg (1985) discute a telescopagem de gerações, na qual o filho é portador do material rejeitado da história dos pais. Nessa identificação narcisista alienante, os pais fazem - do filho - parte de si e ele não existe psiquicamente. O amor narcisista é a função de apropriação - amo, sou eu, o objeto bom sou eu - e o ódio narcisista é função de invasão- odeio, és tu, o objeto mau és tu. Logo, parte do psiquismo do filho é alienado e se torna estrangeiro a si mesmo, dado o ódio narcisista dos pais a ele. A seguir, a identidade negativa desse filho expulsa partes alienadas de si para o representante da geração seguinte, escravizando-o.

Eiguer (1998) acrescenta que a parte abençoada do legado transgeracional compreende a transmissão de valores, princípios de vida, que sustenta a riqueza e a força da família. Abençoada refere-se à bênção que um pai concede ao seu filho, durante as celebrações significativas como nascimento, batismo, casamento e morte. Por outro lado, a ‘maldição’ proferida por um antepassado causa medo na pessoa ‘amaldiçoada’ quanto a sua capacidade de tomar sua vida em suas mãos. Em ambos os casos, a fala do parente se torna fonte de identificação para esse herdeiro.

As representações mentais e seu investimento energético-afetivo

Levando-se em consideração que as representações do sofrimento psíquico recebem investimentos energético-afetivos, a concepção econômica deve ser retomada. Laplanche e Pontalis (2001) dizem que a hipótese econômica freudiana sobre o funcionamento psíquico qualifica a repartição da energia pulsional nos processos psíquicos: aumento, diminuição, variações de intensidade, investimentos, etc.

Há, igualmente, investimentos, sobreinvestimentos e subinvestimentos de afetos no sistema das representações. Esses quantums de amor, ódio e horror dirigidos ao sujeito, aos objetos primários e aos secundários/pares do adulto correspondem ao maior ou menor valor atribuído a eles e à pujança de seu desejo - no sentido de sua força de realização. Além do amor, do ódio e do horror, a tristeza, o medo e o desespero são investidos no caso de traumas (Almeida, 2003, 2005, 2016).

Nesse contexto, Cournut (1993) aborda os limiares de intensidade afetiva na psique, na qual maiores quantidades de excitação têm intensidade insuportável ligada às representações inconciliáveis e insuportáveis sob o foco da consciência. Articuladas à história do sujeito, essas quantidades de excitação precisam ser ligadas às novas representações e afetos, para que seu excesso se torne representável, dizível e pensável.

Quanto a esse ponto, Eiguer (1998) pontua que na clínica, o irrepresentável relativo é concebido na falta de uma representação, que pode ser conhecida posteriormente - mediante a análise. Duparc (2001) diferencia o conteúdo irrepresentável do irrepresentado. O irrepresentável aponta um conteúdo refratário à possibilidade de representação e o irrepresentado concerne ao material ainda não representado, com potencialidade representativa.

Posto isso, as representações do sofrimento psíquico se articulam aos traumas em geral e ao trauma do absoluto - cuja intensidade tende a ser insuportável e a dificultar sua representação. Das três hipóteses de trabalho articuladas a esse trauma, duas foram apresentadas no capitulo anterior.

O desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações

Face aos gradientes de sofrimento psíquico das representações presentes no cotidiano e na clínica psicanalítica, o trauma do absoluto e seu investimento por ódio - expressão da pulsão de morte - dialoga com os aportes teóricos acima mencionados.

O trauma do absoluto compreende as representações sobre-investidas por ódio e horror: ser desamparado, abandonado, rejeitado, fracassado, derrotado, não-amado, devedor, perdedor, invulnerável ao amor, impossível, intransponível, imutável, entre outras. Além disso, inclui: estar a anos-luz do rival, ser o melhor da história e ser o melhor do mundo no trabalho. Há, inclusive, ser o zero, ser um nada - numa absurda redução pontual do sujeito à total insignificância. Abrange ainda representações de tempo - para sempre, eterno, infinito; espaço - sem lugar no mundo; imagem de si - ter sete bilhões de cópias de si mesmo; paradoxos lógicos - estar cheio- estar vazio e estados de desorganização da matéria - ser morte, estar morto, ser inexistente. O sobreinvestimento refere-se ao intenso aporte de ódio e horror, ligado a elas. Essas representações e esses afetos - ódio e horror - são antagônicos à realização do desejo do sujeito. Contraponto a isso, ser amado, ser competente, ser inteligente, ser autossustentado, ser reconhecido, ser valorizado, ter méritos pessoais, entre outras - investidas por amor - constituem as representações e o afeto harmônicos com seu desejo, em seus fundamentos mais originais e autênticos (Almeida, 2003,2005, 2016).

Na constituição do desejo e na formação do sistema das representações da criança, detém importância central a nomeação de suas características pelos pais. No caso de sua nomeação ser depreciativa, ainda que ela detenha uma série de talentos, seu comportamento fica aquém de seu potencial, a partir dos conteúdos negativos advindos das figuras primárias. Em outras palavras, ela pode ser designada pelos pais como: anjo ou praga do inferno, flor ou verme, boneca ou monstrenga, abençoada ou amaldiçoada, cachinhos dourados do papai ou neguinha do cabelo de piaçaba, fada com cabelos dourados ou bruxa do cabelo desgrenhado. Essas representações conscientes se somam às projeções inconscientes dos pais sobre ela. Assim, conquanto ela possa ser habilidosa e caprichosa - quanto às habilidades manuais - ela pode se sentir, se representar e se comportar aquém de sua capacidade, devido às representações introjetadas por ela - estabanada e relaxada - com sua carga de ódio. E, por vezes, uma criança graciosa e delicada pode se apresentar como deselegante e grosseira, em razão dessas representações acompanhadas de ódio - projetadas pelos pais e internalizadas por ela (Almeida, 2003,2005, 2016).

Os traumas, o fluxo e a estase do desejo no sistema das representações

Em paralelo com os ideais do eu, os segredos, os interditos e as configurações de objetos psíquicos (Kaës, 2001), as representações e os afetos atuam sobre o desejo do herdeiro, ativando-o ou inibindo-o em termos de mobilização na vida adulta de relação.

No sistema representacional, os traumas produzem alterações econômicas e atingem as representações do sujeito e de seus objetos. Nos traumas, os objetos primários desvalorizam o filho segundo uma escala com diferentes gradações, desde um grau mais leve até graus maiores de invalidação. Quanto maior a desvalorização da criança pelos objetos primários, maior é sua idealização do objeto secundário/par em sua vida adulta. As representações que desvalorizam o sujeito são investidas de ódio: ser burro, ser incompetente, ser inábil. As representações que o desvalorizam em alto grau traumático são sobreinvestidas de ódio: ser abandonado, ser desamparado, ser um nada. As representações que valorizam o objeto são investidas de amor: ser inteligente, ser competente, ser habilidoso. Aquelas que o idealizam são sobreinvestidas de amor: ser brilhante, ser supercompetente, ser fantástico. Logo, as representações do sujeito e dos objetos registram as gradações de seu sofrimento psíquico e a distribuição diferencial de afetos nas representações.

Sendo assim, a força do desejo pode se apresentar como fluxo - potência de realização no mundo - ou como estase, paralisia e inibição na vida adulta, nos traumas. O fluxo do desejo ou sua paralisia articulam-se também à distribuição diferencial de afetos na sucessão das representações. Quanto a isso, ser habilidoso-ser inapto-ser desastrado- ser um desastre- ser um nada exemplificam essa diferença afetivo-energética na distribuição de afetos nas representações. Ser habilidoso é investida de amor, valoriza o sujeito e favorece a realização de seu desejo. Por outro lado, ser inapto- ser desastrado- ser um desastre- ser um nada recebem gradientes de ódio progressivamente maiores. Assim, ser desastrado é investido por uma cota de ódio menor do que ser um desastre, cujo montante de ódio é menor do que ser um nada. Esta representação intensamente investida de ódio inibe a realização do desejo, de modo mais severo do que as anteriores. Quanto a ser ativo- ser preguiçoso-ser frouxo- ser um nada, ser ativo é dotada de amor, ser preguiçoso é dotada de um quantum de ódio menor que ser frouxo. Ser frouxo é menos impregnado por ele do que ser um nada.

No que se refere à dupla ser preferido - ser preterido, ser preferido significa ser escolhido, ser o predileto e ser amado, acompanhadas por amor, enquanto ser preterido faz referência a ser rejeitado, ser desprezado e ser não-amado, acompanhadas por ódio. No tocante à escala ser morte-ser mortífero-ser mortal, ser morte detém uma intensidade insuportável de ódio, que diminui progressivamente quando passa de ser mortífero a ser mortal. Dentre as representações da desorganização da matéria, ser morte- estar morto- ser inexistente compõem outro traçado do sofrimento psíquico.

Considerando-se ser construtivo-ser destrutivo-ser a destruição, ser construtivo valoriza o sujeito, sendo investida por amor; ser destrutivo o desvaloriza, sendo acompanhada por ódio e ser a destruição o desvaloriza bastante, sendo sobreinvestida por ódio. Nas sucessões, ser abençoado- ser uma benção recebem cotas crescentes de amor, enquanto ser amaldiçoado- ser uma maldição recebem cotas crescentes de ódio. A série ser falho- ser fracassado pode ser distorcida, à medida que comportamentos são interpretados como fracasso e não como falha. Assim, uma garota sente ser fracassada por não passar num exame, desconsiderando que seu pai, sempre a desvalorizou em todas as áreas. Inclusive, ela entende ser fracassada no caso do mau funcionamento involuntário de um órgão - derrame em seu olho. Sob essa premissa, os melhores médicos nos melhores hospitais do mundo fracassam: dada a impossibilidade de evitar determinadas falhas no funcionamento do corpo e a morte dos pacientes.

Cumpre, ainda, pensar ser um anjo - ser endiabrado - ser o diabo atribuídos à criança. Sob um enfoque psicológico, as diferenças de temperamento mais calmo ou mais agitado dão margem a essas representações. Sob um prisma religioso, essas diferenças podem ser vistas como influência do demônio. Do ponto de vista da criança, a segunda e terceira representação são bastante prejudiciais para a autoestima.

Essas considerações constituem a parte teórica dessa investigação, enquanto as próximas seções consistem em sua parte vivencial.

As representações e os ‘graus’ do sofrimento psíquico no cotidiano e na clínica

No cotidiano, as séries de representações do sofrimento psíquico incluem: ser habilidoso- ser inapto-ser desastrado- ser um desastre - ser um nada; ser ativo- ser preguiçoso- ser frouxo- ser um nada; ser morte-ser mortífero-ser mortal, dentre outras.

Na clínica, um tipo de sequência deriva de mudanças nas representações e afetos efetivadas pela análise. Assim, ser abandonado e ser desamparado pelo pai transformaram-se em ser paternal e ser autossustentado. E ser invulnerável ao amor deu lugar a ser imune e a ser blindado, chegando a ser permeável ao lado sublime das relações, entre outras mudanças.

Expressões populares e os ‘graus’ de sofrimento psíquico no cotidiano

Ao lado das representações com seus graus de sofrimento psíquico, certas expressões cotidianas também o revelam.

A expressão ‘você sempre põe tudo a perder’ atribuída a certa pessoa significa que ela estraga as oportunidades de obter prazer, ganho e sucesso - de maneira contínua- e, mais, que arruína - de forma repetitiva - os bons resultados de empreendimentos, que demandaram grande esforço. Essa expressão equivale a ser perdedor na vida, que se diferencia de estar perdido - cujo sentido abrange estar desorientado, desnorteado, desgovernado, desequilibrado.

‘Eu nasci para ter uma vida de provação’ indica a crença de que, desde o nascimento, a pessoa está destinada a enfrentar situações aflitivas, adversas ou enormes sofrimentos, que testam sua força moral, sua fé e suas convicções.

‘Meu filho é sempre do contra em tudo’ faz referência ao filho que rebate o que os pais propõem; que deseja conseguir tudo do seu jeito e que protesta o tempo todo. Quanto a isso, Tarrés (2016) considera que essa luta de poder envolve conflito e confrontação entre pais e filho. Dentre as causas do comportamento de ser do contra, há:

- etapas da infância e adolescência: o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança passa por etapas, nas quais ela pode se mostrar muito sensível e irritável. Administrá-las adequadamente evita que os conflitos típicos dessas etapas se tornem crônicos. Entre os 2 e 4 anos, o negativismo, a teimosia e o comportamento oposicionista estão em alta, bem como entre os 7 a 9 anos e na adolescência há a afirmação de seu eu.

- estilo educativo autoritário, rígido e/ou punitivo - a criança pode confrontar os limites, as normas e as figuras de autoridade, dependendo de seu temperamento. Em face disso, pais e educadores precisam ser flexíveis e ter empatia com o que ela sente e deseja.

- aprendizagem de comportamentos inadequados: a grande fonte de aprendizagem da criança é a observação. Ela observa, imita e põe à prova os comportamentos parentais, que ela vê e ouve. Sob essa premissa, a ‘cara feia’ e o protesto são condutas aprendidas.

- ciúme: pode mudar o comportamento de modo quase radical: um menino encantador, que passa a ser do contra, provavelmente, deseja ser ouvido e atendido em seus desejos.

De modo geral, os protestos do filho são um modo de ele crescer, se autoafirmar e construir seu próprio eu. Seus protestos indicam que ele tem outro ponto de vista ou desejo, diferente dos pais. Cabe aos pais pensar como agir em cada caso e em cada momento evolutivo (Tarrés, 2016).

As representações e seus graus de sofrimento psíquico na clínica

Visando ilustrar as representações dos graus de sofrimento psíquico na clínica, inicia-se com um caso clínico paradigmático quanto ao trauma do absoluto. O intenso comprometimento do sistema representacional pelo ódio, assim como as mudanças psíquicas na análise revelam a transformação de representações e afetos.

O itálico propicia destacar esses conteúdos e suas mudanças na análise. As aspas simples - com ou sem palavras em itálico - sinalizam as falas ipsis verbis do paciente. Os travessões intercalados entre as frases visam deixar o relato mais claro.

A princípio, a história de vida do paciente é dada a conhecer, de forma geral. A seguir, cinco fases da análise apontam mudanças psíquicas de representações e afetos.

O paciente é um senhor inteligente, culto, bem situado profissional e financeiramente. Com sete anos, seus pais se separam e seu genitor forma novas famílias. Assim, ele se sente abandonado, desamparado e rejeitado pelo pai – devido à desproteção paterna diante dos maus-tratos dos enteados. Então, ele deseja ser super e ser superior aos demais, assim como deseja ser invulnerável ao amor. Seu sucesso depende de ele derrotar os rivais, com intenso ódio.

Ele cultua o avô paterno com amor e admiração, pois ele amenizou a aridez e a distância de seu pai. Desse avô, ‘um grande homem com nobres valores, feminino e terno, herdei meus melhores valores: justiça, integridade moral, retidão de caráter, tolerância às minorias e à condição humana’. Contudo, ele se fixa no ódio e no horror pelo abandono paterno e pela morte do avô. Porém, seu orgulho de si e do avô diminui seu ‘horror à condição humana’.

Sua avó paterna fazia comidas gostosas para ele comer, mas dizia que ele estava gordo e balofo. Para ser amado pelo avô paterno, ele não podia ser agressivo com essa avó sádica. Ele se sentia angustiado, inchado e fazia regimes terríveis. Ele previa ser rejeitado e não amado pelas garotas, Por outro lado, ele era fraterno e leal com homens, quando havia ‘paridade de forças, admiração e respeito’. Com homens prepotentes, o ódio o dominava. Previa ataques e derrotas, ao competir com eles. Temia que homens menos inteligentes sugassem sua potência. Angustiava-se por sua paradoxal dependência de amor e de aprovação desses homens inferiores desprezados por ele.

Na primeira fase da análise, as representações do absoluto foram bastante repetidas pelo paciente. Assim, ‘ser n vezes mais importante saber do que viver’ destacava o valor exponencial do saber para ele - como defesa contra o amor ao outro. ‘Ser n vezes mais importante saber’ e ser ‘invulnerável ao amor’ indicavam seu desejo de ser supra-humano. Seu desejo de ‘ser super’ e ‘ser invulnerável ao amor o alçariam para além de seu ‘horror à miséria da condição humana’. Porém, ele sofria ao ‘ser eternamente aprendiz’ e ‘ser eternamente não sabedor de tudo’, ligadas a ‘ser n vezes mais importante saber do que viver’. Dentre seus paradoxos, ora ele dizia ‘sou infinitamente melhor que meus rivais’ ora ‘sou infinitamente pior que eles’. Em meio a isso, desejava ‘ser o melhor da história’ no trabalho. Ele desejava obter ganhos absolutos com suas conquistas, mas, após obtê-las, sentia estar submetido às perdas terríveis. Essa transformação paradoxal do ganho em perda envolvia intenso ódio.

Sua representação de tempo - bastante repetida - era: ‘meu sofrimento vai ser eterno’ - além do tempo da vida humana. Sua representação de espaço era: ‘estou confinado numa prisão, entre o purgatório e o inferno, pra expiar meus pecados’. Dentre as representações da desorganização da matéria, havia: ‘Eu sou morte, eu sempre fui morte. Desde que nasci até quando vivi aqui, só foi morte. Quando voltei [de outra cidade] é morte de novo. É o eterno retorno; sofro muito, é o eterno retorno’. Esse eterno retorno designava a repetição inexorável de experiências ruins com os outros.

Seu desejo de ser supra-humano aparecia em seu ódio diante de seus limites. Tinha o desejo de ‘ter sete bilhões de pessoas como eu no mundo’. E, mais, ele desejava ‘ser um sábio isolado e inatingível numa montanha inexpugnável’. ‘Sinto um horror infinito, inescapável’ se associou a ‘detesto ser humano’ e a seu desejo de ‘ser máquina’. Seu horror à intersubjetividade se desdobrou no desejo de: ‘ser um clone’, ‘ser descendente de uma linhagem superior ou divina’ e ‘ser a resultante operacional de um tubo de ensaio’. ‘Tenho horror ao meu desejo de ser amado, horror de estar exposto ao desejo do outro e ser desamparado por ele’. Seu desejo de ‘ser perfeito’ o destacava, mas o distanciava do outro. Vivia o conflito entre o desejo de ‘ser poderoso e ser superior aos outros’ e a dor de ‘ser solitário e não-amado’. Desejava, mas relutava contra a dependência do pai: desejava ‘poder contar’, mas sofria por ‘não poder contar’ e ‘não poder não contar’ com ele. Ao final do período, seu sofrimento eterno e o ódio, que o dominava antes, diminuíram. Ele controlava sua raiva, mais branda que o ódio.

Na segunda fase da análise, as ideias e afetos do absoluto pouco apareceram. Eles se desdobraram em suas versões atenuadas, atestando sua relação menos defensiva com seus objetos de amor do que na primeira fase. De modo paradoxal, ele tinha o ‘desejo de ser imune aos ataques’, mas buscava ‘relações duradouras, pois me sinto isolado e solitário’. Seu desejo contraditório incluía ‘buscar relações duradouras’, mas ‘ser independente’ do outro. Pois, ‘o sofrimento prolongado numa relação duradoura com final trágico traria uma dor quase inescapável’. A seguir, apontou ‘a sucessão de momentos bons’ e ‘relações prolongadas com dor’. Depois, falou sobre ‘prazer possível e consistente no tempo’. Contudo, seu pensamento foi imobilizado por representações paradoxais de seu desejo: ‘ser invulnerável ao outro’, mas ‘ser escravo dele’. Ora afirmava ‘sou infinitamente melhor que meus rivais’, ora ‘sou infinitamente pior que eles’. Logo, houve a mudança paradoxal de ser melhor para ser pior e de ganho com suas conquistas para perda. Ele experimentou medo e tristeza de perder suas conquistas.

Na terceira fase da análise, seu sofrimento com o outro propiciou ‘queria ser blindado’. Ser blindado evitaria ser sugado e ser esvaziado pelo outro. ‘Desejo ter sucesso’ se associou aos medos da perda, de ser sugado, de ser esvaziado e do fracasso. As representações paradoxais de sucesso-fracasso, fartura-penúria e duradouro-transitório paralisaram seu pensamento. Dois raciocínios incompletos tinham o mesmo complemento inconsciente: final ruim. No primeiro raciocínio sobre seu desejo de uma ‘relação prolongada, que dura até o fim’ e no segundo raciocínio ‘sucesso significa ter relações duradouras’, seu complemento inconsciente era final ruim. Portanto, esse complemento inconsciente contradizia a primeira parte das frases, confirmavam um ao outro e produziam uma armadilha paradoxal contra seu vínculo com o outro. Seu sofrimento prolongado nas relações duradouras se associou com final ruim. Ademais, a ‘sucessão de momentos bons’ se juntou a um raciocínio catastrófico, no qual o adjetivo transitório foi usado como substantivo: ‘o transitório se esfacela, rompe e quebra’. Todavia, a analista contrapôs: ‘ficar com uma garota legal de modo transitório ocorre numa relação transitória e prazerosa. Essas novas representações das relações se opuseram às representações de sofrimento duradouro e de final ruim - desse período.

Na quarta etapa da análise, ele associou sua ‘miséria à realidade: indiferente às minhas fantasias e desejos’. A seguir, ele afirmou que ‘minha realidade é melhor que a de muitas pessoas e construída por mim’. Usando adjetivos como substantivos, surgiram seu ‘gosto pelo irreversível’ e seu ‘horror ao não estático’. O sistema regrediu a uma representação do absoluto: irreversível. Porém, a representação de fim adquiriu novos significados: de degeneração passou a transformação e à ‘construção de algo novo’. Além disso, ‘ser bem sucedido é encontrar um amor e não me colar a uma relação ruim’. Então, ressurgiram as representações do absoluto sobre a ruptura do vínculo com o pai: ‘é impossível ser independente de meu pai’ e tenho ‘desejo pelo infinito’ e ‘desejo pelo ilimitado’. Seu desejo de vínculo com o pai era limitador para ele.

A divisão do ego nos processos de defesa (Freud, 1940) surgiu na divisão das representações no sistema. Ser popular nas paqueras se opôs a ele ser solitário na intimidade. Ele sentia ser fracassado, mas era bem sucedido nos âmbitos profissional e financeiro. Além disso, ser amoroso, divertido, lúdico e criativo coexistia com ser odiável, triste, trágico e destrutivo.

Um grupo de representações se ligou a ‘minha crise’: ‘ser desamparado, ser fracassado, ser submetido a forças alheias, ser capturado e estar preso a um final trágico e inescapável’ - dada ‘a tragédia com meu pai’. Então, ‘me envolver com uma mulher seria uma realidade trágica’. Ser desamparado conjugou-se a catástrofe inexorável. Esta remetia à ruptura traumática de seu desejo de vínculo com o pai - paradigma arcaico de vínculo. Em contraposição à ‘minha crise’, ‘minha estabilidade’ incluía outro grupo: ‘ser amado, ser desejado, ser escolhido, ser bem-sucedido, ser ativo em vínculos saudáveis’. ‘Tenho poder de ‘transformação da realidade’ e de ‘construção de minha vida’ - paradigma atual de vínculo construído na análise. A sucessão do tempo com um ‘fim catastrófico’ foi confrontado pela analista: o fim pode ser o início do novo. ‘Tenho medo do fim’ foi contraposta a: o fim pode significar um novo começo. Então, ele associou: ‘ser bem-sucedido é ser empático, estar em construção e aceitar a perda do controle do mundo’. ‘É possível ser estável num mundo mutável’. A divisão do eu, dos objetos e das representações foi integrada ao sistema.

Na quinta etapa, ‘ser submetido a algo fatal’ se associou a ‘ser impotente’ junto ao outro. ‘Sou um nada, miserável e amaldiçoado’ se associaram a ter amaldiçoado o ato de sua geração e ter expulsado dele seus aspectos sublimes - amor - e vigorosos - tesão. Ser envolvido e envolver, ser acolhido e acolher foram expulsos da cena primária. Ao rever seu ódio à cena primária, mudanças axiais ocorreram. ‘Estou feliz pelo fim rápido de uma relação ruim’. ‘Minha luminosidade’ foi associada a ‘sou brilhante’ e a ‘ser dado à luz com alegria e animação’. ‘Sinto fascínio pelo sublime das relações’, ‘sou permeável ao sublime das relações’ e ‘sou uma masterpiece esculpida e construída na análise’ foram enunciadas por ele.

Discussão

Nessa seção, faz-se mister apresentar as reflexões em dois momentos. Primeiramente, as sequências de representações do cotidiano e as três frases coloquiais são examinadas. A seguir, o levantamento das representações e dos afetos do trauma do absoluto permite acompanhar suas mudanças na análise.

No que tange às quatro cadeias de representações do cotidiano, ser habilidoso- ser inapto-ser desastrado- ser um desastre- ser um nada; ser construtivo-ser destrutivo-ser a destruição; ser ativo- ser preguiçoso- ser frouxo - ser um nada e ser uma benção- ser abençoado- ser amaldiçoado- ser uma maldição, as últimas de cada sequência conferem um grau de sofrimento psíquico progressivamente maior a seu depositário. Ademais, o aumento progressivo do ódio nas representações da criança gera o bloqueio progressivo do desejo adulto em sua consolidação na realidade (Almeida, 2016).

E, ainda, a atribuição ao filho de ser habilidoso, ser construtivo; ser ativo, ser abençoado e ser uma benção retrata a parte abençoada do legado transgeracional. Por outro lado, ser um desastre- ser um nada; ser destrutivo-ser a destruição; ser amaldiçoado-ser uma maldição registram a maldição proferida pelo antepassado sobre a pessoa amaldiçoada (Eiguer, 1998). Além disso, ser um desastre- ser um nada; ser destrutivo- ser a destruição; ser amaldiçoado- ser uma maldição atestam a primazia do narcisismo destrutivo sobre o narcisismo libidinal [nos pais] em razão da destrutividade, diante de sua frustração e da dependência do objeto [pais dos pais] (Rosenfeld, 1998).

As diferenças das cargas de afetos nas representações retratam a distribuição diferencial de afetos no sistema. Nesse sentido, o investimento de amor nas representações do sujeito/criança impulsiona seu desejo (Almeida, 2003), evidenciando o narcisismo clássico (Freud, 1914) e o narcisismo de vida dos pais (Green, 1988b). Em contraste com isso, o investimento de ódio nas representações de si/sujeito e dos objetos primários, pela criança, bloqueia a força do desejo do adulto (Almeida, 2003) e denota o narcisismo destrutivo e negativo dos pais (Green, 1988b; Rosenfeld, 1998; Faimberg,1985).

Retomando-se as frases do cotidiano, ‘você sempre põe tudo a perder’ carrega a radicalidade da perda por meio do sempre e do tudo. Seu receptor passa ao registro de ser perdedor absoluto na vida, alijado da possibilidade de escapar a esse lócus atávico - a não ser pela análise. ‘Meu filho é sempre do contra em tudo’ remete à oposição, à rebeldia e ao confronto intensos do filho para com o genitor, igualmente, acentuados pelo sempre e pelo tudo. O leigo tende a não atentar à participação do genitor nesses comportamentos, que podem gerar o transtorno opositor desafiador. ‘Eu nasci para ter uma vida de provação’ posiciona seu emissor como destinado a sofrer durante toda a vida, a despeito de sua posição sócioeconômica privilegiada, que lhe permite fazer uma análise e confrontar essa frase alienante da força de seu desejo.

Passando-se à seara da análise do paciente, ser invulnerável ao amor - primeira etapa - deu lugar a ser imune - segunda- e a ser blindado - terceira. ‘Ser invulnerável ao amor’ mudou para um desejo menos defensivo - ser imune - e retornou ao desejo de ser supra-humano em ser blindado. Além disso, ser invulnerável, ser imune e ser blindado se transformaram em ser permeável ao sublime nas relações - quinta. Nesta, amar e ser amado; ser acolhedor e ser acolhido; ser envolvido e envolver apontam a elaboração de ser invulnerável (Almeida, 2021).

Na segunda etapa, ser abandonado, ser desamparado, ser um sábio isolado e inatingível - primeira - deram lugar as suas variantes atenuadas: ser solitário e ser isolado. Ser desamparado pelo pai - primeira - foi superada por ser paternal e ser autossustentado em si mesmo - quinta. Ser rejeitado pelo pai - primeira - foi elaborado em ser escolhido por si mesmo - quinta (Almeida, 2021).

Do ‘sofrimento eterno, infinito e imutável’ com o outro - primeiro tempo - ele passou ao ‘sofrimento em relações prolongadas com final trágico’, à ‘sucessão do tempo’ e ao ‘prazer possível e consistente no tempo’ - segundo. O sofrimento em ‘relações prolongadas com final ruim’ cedeu à ‘sucessão de momentos bons’- terceiro. Enfim, ele pode vivenciar ‘relações com início, meio e fim, nas quais algo novo e bom pode começar’ - quinto. ‘Estou animado’ - terceiro e quarto tempos - foi revisitado em ‘estou feliz’ - quinto. ‘Minha animação e minha alegria’ - terceiro - ligaram-se à ‘minha luminosidade’ - quinto (Almeida, 2021).

No inicio da análise, seu desejo de autoengendramento tinha como cerne ser oriundo de uma geração assexuada: negação do amor e do prazer sexual ao ser gerado pelos pais. Suas variantes eram: ser descendente de uma linhagem especial; ser um clone e ser o resultado operacional de um tubo de ensaio. A integração dos conteúdos benfazejos da cena originária - amor, prazer sexual, alegria e entusiasmo - quinta etapa - permitiu um upgrade no sistema. Em suma, seu vínculo amoroso com os pais foi reavivado e ele interiorizou o vínculo bom (Almeida, 2021).

No território dos afetos desse trauma, o ódio, o horror, o medo, a tristeza, o tédio e o desespero estavam interligados. Os afetos complementares - tédio, desespero, tristeza e medo - são menos defensivos contra o amor que o ódio e o horror. Seu ódio e horror ao outro - primeira etapa - cederam lugar ao medo e à tristeza de perdê-lo - segunda. Na terceira, a catástrofe inexorável foi investida por medo. Na quarta, ser impotente e ser submetido produziam tristeza. Seu horror às relações intersubjetivas foi superado por seu fascínio pelo sublime nas relações - quinta. Nesta quinta, ser amado, ser inteligente, ser competente, ser escolhido, ser afetivo, ser bem sucedido, ser uma masterpiece esculpida e construída foram investidas de amor e integradas ao sistema das representações. Solidárias ao seu desejo mais original e autêntico, elas permitem realizá-lo na vida adulta (Almeida, 2021). Quanto a isso, para Laplanche e Pontalis (2016), o amor consiste num fator de ligação nas relações e o ódio objetiva dissolvê-las.

Cabe analisar, por fim, certa frase absurda do paciente em relação aos ‘graus’ de seu sofrimento psíquico, suas variantes e as mudanças de seu significado na análise. Eu sou morte’ designava uma representação catastrófica - primeiro tempo da análise. Em sua essência, ele é a morte, visto ter transformado esse substantivo abstrato em seu atributo pessoal. Ser morte o alçaria para além da condição humana de ser mortal e se associava a ser mortífero - condição em que ele continha aspectos destrutivos da morte, podendo submeter o outro a ela: ‘Eu queria deletar, matar quem me machuca.’ Ademais, ele dilatava temporalmente esse poder: ‘Eu sempre fui morte’.

Na infância, seu amor e seu encanto pelos pais e pela avó paterna foram destruídos, de forma violenta. Na vida adulta, quando ele se ligava a uma garota, o desencontro entre eles produzia um sentimento de morte - terceiro. ‘Com duas garotas, vivi um sentimento de morte. Preciso de uma relação amorosa, mas quando tenho maior interesse que a garota, eu vivo um sentimento de morte’. Nessa época, ele se fixou de modo paradoxal em D/namorada anjo-demônio: duplo conflito entre o fascínio e o horror e entre a vida e a morte de seu desejo por ela. Apesar de sua ‘pele de anjo’, ela sumia e o traia, quando ele estava bastante envolvido com ela. Ele sentia fascínio por ela - pela quebra de limites quanto ao prazer sexual - e horror - ao se submeter ao seu sadismo. ‘Quando D. viajou, fiquei p... Quando ela voltou e não me ligou, vivi um sentimento de morte, uma tristeza profunda. Ser trouxa durou dois dias até que eu disse: não mereço sofrer, matei o que me matava. Meu sentimento de morte está cada vez mais curto. Já demorou anos; hoje, horas’.

Ser morte ligava-se, primariamente, à violência de seus antigos vínculos. Retratava um sofrimento psíquico insuportável, mas o sentimento de morte revelou sua atenuação. Dado seu sofrimento insuportável, ele tentou matar os vínculos com o outro e odiou-se por não conseguir fazê-lo. Nessa medida, a repetição de vivências traumáticas produziu o quase irrepresentável no sistema.

No trauma do absoluto, as representações do grau insuportável de sofrimento psíquico se encontram nas fronteiras do irrepresentável. Visto que o ódio/pulsão de morte caracteriza esse trauma, a dimensão irrepresentável dessa pulsão envolve as falhas representativas, a estase da análise e o irrepresentável. (Green, 1998b). Em contrapartida, Eiguer (1998) pontua que na clínica o irrepresentável relativo é concebido na falta de uma representação, que pode ser conhecida posteriormente - mediante a análise. Dada a potencialidade representativa do material irrepresentado (Duparc, 2001), a análise enseja a mudança psíquica de conteúdos do sistema.

De cunho ancestral, ser abandonado, ser desamparado e ser rejeitado pelo pai, bem como ser invulnerável ao amor, estar confinado numa prisão entre o purgatório e o inferno, ser sofredor para sempre e ser morte comportavam um ‘grau’ insuportável de sofrimento psíquico, sendo inconciliáveis, sob o viés da consciência (Cournut, 1993). Junto com a mudança dessas representações, houve a mudança dos afetos com intensidade insuportável - ódio, horror e desespero - para outros mais suportáveis - medo e tristeza - e, finalmente, para amor (Almeida, 2003; 2005; 2021). Evidenciam que, articuladas à história do sujeito, essas quantidades de excitação insuportáveis foram ligadas às novas representações e afetos, de modo que seu excesso se tornou representável, dizível e pensável (Cournut, 1993).

Em outras palavras, ‘graus’ maiores ou menores de sofrimento associavam-se aos afetos que acompanhavam as representações arcaicas ancestrais. Gradualmente, elas foram substituídas por representações cada vez mais próximas ao desejo do sujeito. A mobilidade da corrente associativa permitiu pensamentos mais elaborados na consciência do adulto, que pode trabalhá-los de forma mais crítica e mais adequada à realidade - do que a criança traumatizada. Esses novos conteúdos atestam o progresso do trabalho representativo do sistema com o sofrimento psíquico, ao longo de análise.

Posto isso, a clínica extensa (Herrmann, 2005) se alinha à pesquisa com o método psicanalítico, na investigação de fenômenos contemplados fora da situação analítica (Figueiredo e Minerbo, 2006).

Considerações finais

A apreciação crítica das referidas representações, expressões e afetos põe a descoberto os diferentes graus de sofrimento psíquico que o sujeito pode herdar, de sua família. Sendo assim, uma análise precisa se haver com diferentes níveis de problemática e de complexidade em termos de trabalho com o sofrimento. Esses diversos gradientes podem abarcar a herança genética de transtornos mentais mais leves ou mais graves, maiores ou menores recursos psicológicos e psiquiátricos de certo momento histórico-cultural quanto aos transtornos mentais, questões socioeconômicas da família, o nível de conhecimento e de acolhida emocional dos genitores quanto à criança, a gravidade dos traumas vivenciados pela família, entre outros.

Quanto à maior leveza ou severidade dos transtornos mentais herdados, entra em questão a diferença entre neurose e psicose, entre transtorno de ansiedade e esquizofrenia, p.ex. Em se examinando os recursos psicológicos e psiquiátricos de um momento históricocultural quanto aos transtornos mentais, entra em pauta a visão atual e a da Idade Média sobre eles - quando eles eram vistos como manifestações do demônio. Em termos de herança genética, no plano da aparência, o vitiligo e a psoríase acentuados podem produzir sofrimento psíquico considerável. No que diz respeito às questões socioeconômicas, uma família abonada poderia prover melhores cuidados materiais e psíquicos à criança. Com relação ao nível de conhecimento e de acolhida emocional dos genitores quanto a ela, veja-se a diferença da aceitação da homossexualidade nas diversas famílias. Enfocando a gravidade dos traumas, as famílias atingidas pelas guerras mundiais e por catástrofes naturais tendem a apresentar sequelas emocionais maiores do que aquelas que não foram atingidas por elas.

Esses diferentes fatores produzem visões de mundo, fantasias, ideias e ideais, que culminam na produção de expressões e representações mentais mais ou menos traumáticas. Nesse contexto, a gradação das representações do sofrimento psíquico torna patente os graus de sujeição do depositário à sua família e os graus de inibição da pujança de seu desejo. Porém, a análise reativa a capacidade do depositário de tornar-se sujeito de sua historia, ao aceder às representações coerentes com seu desejo autêntico e realizá-lo - em seus fundamentos mais originais - no mundo das relações adultas.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 29/09/2023
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