A autonomia do desejo e o acaso

Introdução

Em diálogo com A autonomia do desejo (Almeida, 2022), o presente estudo visa pensar as falhas na autonomia do desejo em razão da ênfase inconsciente no acaso. A autonomia do desejo descreve a relação livre do sujeito com seu próprio desejo e sua formação saudável na família. Para discutir o acaso como elemento psíquico que prejudica a autonomia do desejo, vários conceitos são apresentados. Aliada a eles, a concepção de desejo, do trauma do absoluto e do sistema representacional - de base psicanalítica - deriva da clínica da autora. As falhas na autonomia do desejo - conectadas à ênfase inconsciente no acaso e no imponderável - são ilustradas por um caso clínico, no qual as decisões da paciente ocorrem ao sabor desses elementos. Sendo assim, seus diferentes aspectos são contemplados nas próximas seções desse trabalho.

Transtorno de personalidade esquizotípica

Esse transtorno é caracterizado pelo intenso desconforto e pela capacidade reduzida de estabelecer relações íntimas; distorções cognitivas com pensamentos estranhos; afetos incongruentes com a situação; comportamento e aparência excêntricos; preferência pelo isolamento; ansiedade social relacionada a medos paranoicos; crenças de ser diferente e de não ser bem-vindo. A falta de relacionamentos torna a pessoa infeliz, mas ela fica muito ansiosa em situações sociais novas. As distorções cognitivas - ideias de referência, ideias paranoides, pensamento mágico - refletem o distanciamento da realidade e a desorganização do pensamento. As ideias de referência envolvem as noções de que eventos comuns têm um significado intencional e direcionado para si. Ela pode ser supersticiosa, podendo crer que têm poderes paranormais, que tem controle mágico sobre o outro, que rituais mágicos podem impedir danos e que o outro tenta interferir em sua vida. As crenças paranoicas dependem do contexto sociocultural, incluindo teorias de conspiração sobre governos, alienígenas e facções políticas, bem como questões religiosas abarcando demônios, divindades e poderes sobrenaturais. A educação familiar, a separação precoce e a negligência infantil podem favorecê-lo. O tratamento não deve eliminar a crença, mas minimizar o sofrimento e a violência, relacionados às ideias delirantes (DSM 5).

O imponderável e o acaso

Agregados a esse transtorno, o imponderável e o acaso demandam ser pensados.

Na esfera linguística, o imponderável remete a algo que não se pode pesar nem medir com exatidão; aquilo de que não se pode ter certeza absoluta; elemento indefinível e imprevisível, que influencia um assunto; circunstância difícil de avaliar e prever (Michaelis online, 2023).

No campo da filosofia da ciência, a dimensão do imponderável é admitida. Para Popper (2022), o elemento imponderável deve sempre ser aceito, ao menos, como possibilidade. Porquanto, afirmar a inexistência do sobrenatural e da metafísica significa reduzir o horizonte de possibilidades do conhecimento humano. As ideias metafísicas permitem elaborar hipóteses que, a princípio, podem parecer imponderáveis. Todavia, ao final, elas podem se revelar férteis. Ao tratar de realidades ocultas, elas são capazes de transformar as bases das teorias científicas ou fornecer alguma perspectiva diferente sobre elas. Dessa forma, favorecem a investigação científica.

No plano linguístico, o acaso designa um acontecimento casual, incerto ou imprevisível; a sucessão de fatos resultantes de causas independentes da vontade; a imprevisibilidade de situações devido aos limites do conhecimento humano, à incerteza e à indeterminação. O acaso é sinônimo de sina, destino, coincidência e acidente (Michaelis online, 2023).

No domínio da filosofia, o acaso deriva do latim a casu e significa sem causa. Dentre seus sentidos, pode ser um evento sem finalidade, cujo sentido filosófico de sem causa final se opõe à teleologia; um evento não explicado por uma determinação precedente, cujo sentido filosófico se opõe ao pré-determinismo e, ainda, um evento sem relação com outro simultâneo ou precedente, cujo sentido filosófico de sem determinação se opõe ao determinismo (Abbagnano, 2007).

Na esteira dessas ideias, os fenômenos da superstição e do pensamento mágico podem ser situados em relação ao imponderável e ao acaso, visto sua carga de incerteza e indeterminação, bem como seus limites quanto a ser avaliado com certeza e precisão. Diferentes províncias do saber se dedicam a pensar a superstição e o pensamento mágico: a antropologia, a sociologia, a psicologia e a psicanálise.

A antropologia e a sociologia com relação à superstição e ao pensamento mágico

As contribuições da antropologia e da sociologia quanto à superstição e ao pensamento mágico permitem situá-los no terreno dos afetos.

Malinowski (1998) aproxima as concepções dos nativos e das sociedades ocidentais. As práticas mágicas e os comportamentos supersticiosos visam pôr fim à tensão e à ansiedade - decorrentes da incerteza - e ajudam a preencher o vazio do desconhecido. A magia constitui a forma de controlar a natureza e garantir a sobrevivência. Ademais, a descrição dos atos sem se referir ao estado mental do nativo não atende ao propósito da sociologia: entender o comportamento humano na sociedade.

Para Mauss (2003), na raiz da magia e da superstição, há estados afetivos geradores de ilusões. Esses estados resultam da mistura dos sentimentos do indivíduo com os sentimentos da sociedade. Os estados afetivos compreendem: o pavor diante do feitiço e da epidemia; o horror por causa da desobediência a um tabu; o desespero diante de uma praga e os males da consciência, que provocam estados de depressão fatal, causados pela magia de pecado, que gera culpa.

Lévy-Bruhl (1968) aponta que a mentalidade primitiva é mística por causa da crença em forças invisíveis, de modo que todas as coisas têm poderes ocultos. As leis da lógica formal são substituídas pela lei da participação mística - baseada na categoria afetiva do sobrenatural. A relação entre os seres do mundo exterior e do mundo invisível e entre a natureza e o sobrenatural constituem participações místicas. A mentalidade mística é mais acentuada entre os povos primitivos, mas está presente nos povos civilizados O pensamento mágico seria uma herança etnológica da mentalidade primitiva, no inconsciente. Trata-se da crença de que o pensamento interfere no mundo exterior, permite a realização de desejos e previne eventos nefastos. E a crença de que dois eventos independentes estão relacionados e que certas ações conseguem evitá-los. Propicia a sensação de segurança e de controle dos eventos.

A psicologia com relação à superstição e ao pensamento mágico

Nesta seção, os autores esmiuçam as crenças mágicas, os princípios da sorte e do azar e a tomada de decisão.

Subbotsky (2014) afirma que a visão tradicional sobre as crenças mágicas nas culturas modernas emergiu na antropologia cultural, para a qual as crenças mágicas são oriundas do passado e persistem em crianças e adultos supersticiosos. As pesquisas desafiaram essa visão tradicional sobre o pensamento mágico e as crenças mágicas como relíquias do passado. O pensamento mágico e as crenças mágicas constituem uma característica central da mente humana e das culturas, sob a forma de superstições. Eles criam um background para o pensamento racional e as crenças racionais nas culturas modernas. Exercem importante função na vida, ligada à ilusão de controle. Indivíduos supersticiosos atribuem qualidades biológicas ou mentais às coisas inanimadas. O pensamento mágico abrange desde estratégias adaptativas - repugnância, medo do contágio, superstições - até reações da mente perturbada - esquizofrenia. As crenças mágicas influenciam a mente e o comportamento humano, trazendo benefícios para a aprendizagem, a educação, a comunicação e a propaganda. Estudam-se as crenças mágicas nas culturas antigas, medievais e modernas, o pensamento mágico em pacientes com distúrbios mentais, as superstições em adultos, entre outros.

Kuhn (2022) defende que as crenças mágicas fornecem às crianças o combustível para o desempenho de papéis imaginários e da fantasia para dominar problemas difíceis e manter uma sensação de independência e poder. As crenças mágicas ajudam o adulto a lidar com situações complexas, que ele não compreende. O comportamento supersticioso e as crenças mágicas geram um ilusório senso de controle, que reduz a ansiedade em situações estressantes e melhora o desempenho em situações fora do controle racional. O controle é uma importante estratégia para se lidar com a vida e sua ausência pode levar à ansiedade e à depressão. As pessoas normais também mantêm crenças mágicas em contextos não estressantes. As crenças mágicas resultam de atalhos que a mente usa para raciocinar sobre o mundo.

Wiseman (2003) estudou os princípios científicos da sorte e do azar. Ele desmistifica a ideia de boa estrela, a influência de rituais supersticiosos, dos amuletos e dos talismãs. A pessoa de sorte possui quatro princípios psicológicos. A habilidade de maximizar as oportunidades abrange criá-las. A atenção aos pressentimentos implica tomar decisões, ao ouvir sua intuição e suas sensações. Esperar a boa sorte se refere às expectativas sobre um futuro de boa sorte, ao persistir em suas metas, apesar das falhas e modelar as relações, para atingir sonhos. Transformar a má sorte em oportunidade demanda acentuar aspectos positivos do risco e impedir que a situação negativa se repita. A sorte depende do estado mental da pessoa, de sua maneira de pensar e de atuar sobre a realidade, que influencia aquilo que se obtém dela. A sorte significa reconhecer os eventos da vida e agir para obter a máxima vantagem deles.

Gigerenzer (2022) estudou o uso da racionalidade e da intuição na tomada de decisões. Dentre as regras simples na tomada de decisão, cabe apropriar-se das fontes de informação para não delegar escolhas importantes ao outro e apostar na própria intuição. Na tomada de decisão, pode-se considerar todos os detalhes ou tomar um caminho mais rápido, fácil e inconsciente: as heurísticas. Elas tentam dar respostas rápidas, simples e acuradas em cenários ambíguos e incertos, ao ignorar grande parte das informações e focar nos fatores que realmente importam.

A psicanálise e o acaso

Os estados afetivos e a categoria afetiva do sobrenatural - descritos pela antropologia e pela sociologia - são constitutivos do aparelho psíquico em psicanálise.

Freud (1901) assinala que o determinismo inconsciente dos atos falhos contrasta com o acaso externo. O desconhecimento consciente das raízes inconscientes dos atos falhos - aparentes acasos - e o saber inconsciente acerca de seus motivos são as raízes da superstição. Quanto a isso, o supersticioso fica indiferente às manifestações de seu inconsciente, desconhece os motivos de seus atos falhos casuais e percebe intenções ocultas no acaso externo. Nos neuróticos obsessivos, a superstição associa-se à expectativa de infortúnios, derivada de impulsos cruéis e hostis reprimidos. Logo, os impulsos de autopunição e autodestruição inconscientes tiram vantagem da situação externa oferecida pelo acaso.

As concepções de desejo, do trauma do absoluto e do sistema representacional

Para pensar o mundo mental de uma pessoa - regida pelo pensamento mágico, pela superstição e pelo acaso - sob outra perspectiva psicanalítica, trabalha-se com hipóteses de trabalho: o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional.

O desejo consiste em um conjunto de representações e de afetos, que organiza o conjunto de forças psíquicas. A princípio, ele promove movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação até se realizar no mundo. Os bloqueios na satisfação do desejo do adulto decorrem de sua fixação em certas representações e afetos, que limitam sua efetivação no mundo. Assim, vivências parentais e ancestrais bloqueiam o desejo do sujeito e podem gerar o trauma do absoluto (Almeida, 2022).

O trauma do absoluto deriva de enigmas e impasses observados na clínica da autora. Caracteriza-se por representações sobrecarregadas de ódio e horror: ser abandonado, desamparado, rejeitado, fracassado, derrotado, devedor, não-amado, para sempre, sem lugar no mundo, sofredor ao infinito, amaldiçoado para sempre. E, ainda, ser o zero, ser o nada, ser impossível realizar seu desejo e estar absolutamente proibido de realizá-lo. Essas representações e afetos - ódio e horror - compõem o sistema representacional (Almeida, 2022).

O sistema das representações do sujeito é composto por representações e afetos associados às suas vivências com as figuras primárias/pais - que lidam com seu desejo. Esse sistema constitui um recurso psíquico capaz de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar essas vivências é bastante alterada pelos traumas. Além do mais, sua capacidade de representar os diversos conteúdos psíquicos não se desenvolve por si só. Interliga-se aos sistemas representacionais de seus objetos primários/pais e, assim, se submete ao seu desejo. A partir disso, a criança pode ser designada conscientemente por seus pais como: inteligente ou burra, flor ou verme, especial ou insignificante. Estas representações se juntam às projeções inconscientes de seus pais sobre ela. Como exemplo, conquanto ela possa ser habilidosa e criativa - na esfera das habilidades manuais - ela pode se sentir, se representar e se comportar aquém de sua capacidade, devido às representações introjetadas por ela e investidas por ódio - desastrada e estúpida. Essa trama de significados se deve à identificação do filho com seus genitores, que atravessa as gerações da família (Almeida, 2022).

Outras contribuições

Segundo Taleb (2014), a mentalidade antifrágil proclama o caos, o aleatório, o imponderável, a desordem, o risco, a incerteza, a crise e o stress como desejáveis na vida, juntamente com o aperfeiçoamento pessoal com eles. A mentalidade antifrágil é a capacidade de aproveitar as oportunidades de crescimento e de se adaptar melhor aos desafios, em um mundo complexo, imprevisível, volátil e caótico. Ela cria a consciência acerca do uso dos fatores adversos para a própria evolução. O mindset antifrágil é caracterizado por uma postura aberta a mudanças, disposta a assumir riscos controlados, lidar com incertezas, aprender de modo contínuo com erros e fracassos, reconhecer a própria vulnerabilidade, questionar ideias convencionais, cultivar a curiosidade, buscar a diversidade de pensamento e desenvolver uma mentalidade flexível.

O pensamento circular/a tautologia refere-se às ideias que giram ao redor do mesmo tema, sendo retomadas continuamente, sem levar a qualquer solução. Ele promove o retorno aos mesmos problemas ou a problemas semelhantes. A tautologia é a repetição não intencional de conceitos e termos com o mesmo significado. Ela prejudica a progressão das ideias e a expressão de raciocínios lógicos.

A clínica do acaso

Para se discutir a relação da paciente com o acaso e o imponderável, apresenta-se sua história clínica. Dos três períodos de análise, apresenta-se um recorte das sessões em ordem cronológica, diferenciando-se um período do outro por meio de parágrafos. Frases textuais de seu discurso são destacadas por meio das aspas. Os itálicos ressaltam as representações mentais expressas por ela, além de palavras de outros idiomas.

No primeiro período, a paciente encontra a analista por acaso, ‘um sinal para falar com você. A chuva foi um sinal para eu não encontrar um rapaz desconhecido, a chuva parou, quando eu recusei o encontro’. Isso teria confirmado sua ideia inicial, mantendo um pensamento circular. ‘Fui viciada em tarô e a macumba é ameaça do mal. Fico em dúvida em retomar a terapia’, apesar de sua depressão e sua confusão mental. ‘Fui favorecida pela chefia anterior e perseguida pela atual, no trabalho. Uma colega aparenta ter uma vida maravilhosa numa rede social, mas sua vida não deve ser tão boa, senão não teria ciúmes e não competiria comigo. Fiz um painel criativo, com cuidado. Os sinais de advertência pra eu não fazer foram: as letras não colavam e o painel caiu. Se eu insisto contra os sinais, não dá certo. Fiz uma oração a São Bento. Minha espiritualidade está ligada à vontade de Deus, mas sigo meu coração também’. Ela utiliza mídias digitais em suas relações com as pessoas, interpretando-as por meio de sinais - segundo um sistema místico-supersticioso. Seu pensamento mágico envolve acaso, sorte e azar. Tem dificuldades com relações estáveis, não quer compromisso com uma análise. ‘Eu me pergunto se falar sozinha é normal’. Isso te ajuda com sua solidão. ‘Eu era vista como boba e sonsa pela minha mãe, mas minha intuição sobre a relação da minha irmã com homens se comprovou’. Ela foi desvalorizada, rejeitada e excluída da aliança entre a mãe e a irmã, a despeito das brigas entre elas. ‘Fiz escola paga por meio de bolsa de estudos, mas fui desvalorizada por ser pobre. Eu não tenho amigas e nem namorado. Sou católica e mística’. Seus ‘sinais de comunicação com o universo’ envolvem ser espiritualizada para substituir a falta de vínculos reais bons: ‘pessoas carinhosas, acolhedoras, confiáveis e que não fazem bullying’. ‘Tenho hábitos estranhos’ remete a seu medo de ser rejeitada pela analista. Ela revela ser competente, inteligente e criativa. Tem compreensão psicológica das relações na família e no colégio. Os sinais são guias quanto à vida e às relações humanas, para ela tomar uma decisão. Contudo, ela é capaz de ser prática e ser lógica na vida, bem como ser realista e ser honesta com dinheiro. Ter uma missão remete a um determinismo externo.

No segundo período, novamente encontra a analista por acaso e propõe conversar. ‘Num grupo, fui tratada como inferior, sem valor e sem consideração. Pergunta a religião da analista, testando-me para saber se pode confiar em mim. Tenho segredos’, ‘tenho uma identidade secreta’. Fala de ‘espíritos do mal’ e de ‘espíritos trevosos’, em frases baixas e pouco claras. Fala da ‘leitura de sinais’, de ‘uma missão que devo e que quero cumprir’. ‘Minha missão é proteger as pessoas do mal e o planeta. Sonhei com um político várias vezes, devo rezar para protegê-lo. Ele foi cassado por corrupção, mas tinha um dossiê falso contra ele’. Em meio a informações desencontradas, não sabe em quem confiar. Repete várias vezes: ‘Encontrei uma médium pirada, sacana e traiçoeira, com maior mediunidade que a minha. Isso significa que eu fui muito má noutra vida. Procuro pessoas do bem, mas não sei em quem confiar; procuro confiança, ética e sigilo’. A primeira pessoa do bem em quem confiar é você mesma. ‘Umas pessoas piradinhas estavam reunidas pra louvar uma santa. Eu vi o sol mudando, pedi para não ver, o dia ficou nublado. Não sei se posso confiar em mim, tenho um lado piradinho’.

No terceiro período, ela me encontra por acaso no consultório, mas não posso atendê-la, pois tenho outra paciente no horário. Ela chega pontualmente no horário combinado, à noite. No início, estava muito angustiada e falava bem baixinho algumas frases. Em duas sessões, chega confusa, mas à medida que ela se sente aceita, fica mais calma e centrada. Opta por fazer as sessões online, comparecendo presencialmente quando vem me pagar.

‘Sinto muita angústia, muita solidão. Eu me sinto sozinha no mundo e queria que alguém me protegesse. É impossível que alguém cuide de mim vinte quatro horas por dia. Preciso ter amigos. Eu me sinto como um bebê, que alguém precisa dar a mão. Tô flutuando, fora do ar’. É difícil aterrar, por os pés no chão. ‘Uma amiga leu a minha mente e me traiu. Quando o Lula assumiu, fiquei mal e ela usou isso pra me machucar. Meu amigo gay me deu um elefantinho dourado, mas falou pra eu não contar pro seu namorado, contei pra evitar intriga’. Você se sente tão sozinha e procura amigos, mas tem encontrado pessoas traiçoeiras, que usam sua vulnerabilidade pra te machucar e trair. ‘Eu entro em relacionamentos abusivos, eu atraio gente assim’. Você tem um lado inteligente e racional pra te defender, mas precisa tanto de amigos, que se aproxima de pessoas destrutivas. ‘Já tive pessoas boas, que me ajudaram a procurar emprego, a me preparar para um concurso, sem segundas intenções. Quem me ajuda, tem sorte. Cita os progressos dessas pessoas. ‘Sinto falta de amigo pra poder falar bobagem, mas ninguém quer ouvir’. O que é bobagem? ‘É poder falar dos gatos’. Se eles são importantes pra você, não é bobagem. ‘Minha mãe batia no meu rosto na frente das pessoas, minha irmã fazia intriga dizendo que eu era feia, que me vestia errado, minha mãe me batia, minha irmã tinha prazer nisso, mas era dissimulada e negava’. Talvez você esteja levando ser machucada e ser traída numa relação a três na família pra relação com seu amigo gay. ‘Se você puser o elefantinho dourado com a bundinha pra porta, ele traz sorte. Gosto de oração e espiritualidade, mas tô cansada’. Elas são importantes, mas tem servido pra te afastar da terra, da realidade, das pessoas que te machucam. ‘Meu apartamento tá destruidíssimo, os gatos andam por ele, mas quem destruiu foi as pessoas’. É legal você estar aqui pra selecionar melhor as pessoas.

‘Vim de Uber, subi a escada, não tinha ninguém, senti muita solidão. Eu não tinha amigos, escolhia colegas santos, muito educados, com finesse pra minha mãe não brigar. Ela tinha ciúmes, queria ficar com eles só pra ela’. Você sente que ela tentou roubar sua vida e seus amigos. ‘Minha mãe era muito contraditória, batia sem motivo, eu achava que devia sofrer, que eu nasci pra sofrer’. Você tá falando de seu conflito: se você apanhava sem motivo, era injusto, mas acredita que devia sofrer. ‘Vi minha irmã e meu irmão apanharem muito dela e fui me preparando’. Você vivia apavorada, atormentada, ameaçada de apanhar. ‘Ela dizia que se eu tivesse amigos, eu não prestava, era pecadora, mas se as pessoas diziam que eu era muito tímida por causa dela, ela me obrigava a ir até a associação e encontrar pessoas. Achei que era um lugar de perversidade, de maldade. ‘Minha mãe batia na minha irmã por causa dos shorts curto, eu andava toda tapada. Isso atraiu um rapaz que gostava de garota certinha. Aí ela me mandou usar uma saia curta’. Você ficou muito perdida, sem saber quem você era e não pode descobrir seu estilo como mulher. O erotismo e a atração homem e mulher ficaram envenenados pelas ideias de ser pecado, de você não prestar, de ser perverso e ser mau. ‘Sofri muitas perdas: amigos, celular, contatos’. Durante parte da sessão, ela não deu espaço para eu falar. Sei que você tá angustiada, muito carregada de sofrimento, mas preciso falar, pra ver se eu tô te entendendo e te ajudar. Às vezes, você não termina uma frase, fala muito rápido ou muito baixo, eu não consigo te entender e te ajudar. ‘Tô com problema na voz, não tô conseguindo por força na voz’. ‘Num sonho, amigos do além disseram: você já está do jeito que nós queríamos, já pode sair da casa da sua mãe. Aos vinte dois anos, fui trabalhar numa escola, conversava com adolescentes em conflitos com os pais. A diretora buscava tirar os alunos da marginalidade’. Com tanto sofrimento com sua mãe, você foi protetora, generosa e amorosa, ao proteger e cuidar de adolescentes que sofriam com a mãe.

Ela entra comendo salgadinhos, dificultando o entendimento de suas frases. Saboreia e depois você fala. ‘Um pintor pintou a parede de rosa, eu não queria, mas depois gostei. Ele falou que ajudaria na minha depressão, sem eu dizer. Segui minha intuição’. Sua intuição se mistura com a intromissão e o gosto do outro, depois você gosta. ‘Uma faxineira, uma secretária do lar, uma ajudante, indicada por pessoas que diziam que ela era boa, destruiu duas pias. A faxineira era boa, excelente, mas pessoas de esquerda pagaram muito dinheiro para ela destruir minha casa’. Você é boa, tomando cuidado ao falar de uma pessoa desfavorecida, mas ela não é boa nem excelente, se destruiu sua casa, por dinheiro. Parece que você não sabe selecionar pessoas boas, que possam entrar na sua casa e no seu coração. ‘O oráculo disse que a moça ganhou muito dinheiro, pra destruir minha casa. Faço uma oração à Santíssima Trindade. A espiritualidade serve para trazer coisas boas’. Falo de oráculo e da pitonisa entre os gregos. Você é respeitosa na sua invocação, mas sua espiritualidade se mistura com misticismo e não tá te trazendo coisas boas. ‘Minha mãe me batia porque meu cabelo era feio, porque minha irmã dizia que eu andava errado, porque eu era tímida’. Você apanhou injustamente, sem fazer nada errado, como se você fosse toda errada. ‘Eu apanhava no rosto na frente das pessoas, que faziam fofoca de onde eu estava. Canta: ‘a gente somos inuteis, a gente não é gente, a gente é indigente’. Sua experiência com sua mãe, irmã e gente muito cruel, muito injusta e fofoqueira fez você acreditar que você não era gente. ‘Só na outra encarnação, vou ser gente’. Então, nossa análise é inútil. ‘Talvez dê pra melhorar um pouco’. Não sabe dizer seus critérios para selecionar pessoas boas. Ela procura deixar a manta do divã arrumada e sem restos do salgadinho. Você se põe no meu lugar, é boa e empática. Escolher pessoas empáticas e solidárias como você, pode ser seu critério de seleção. ‘A sessão tá sendo chocante’. Descobrir seu valor e seu jeito especial te choca, você é muito melhor do que sua mãe dizia.

Começa a sessão com um gato passando na frente da câmera. Os gatos e os salgadinhos dificultam nossa comunicação. ‘Eu queria apresentar a família, esse é o Negão, a outra gatinha é tímida. Fui até São José, fui passear no shopping e me senti caipira perto das pessoas, muito arrumadas, o elevador era sofisticado, eu não sabia mexer, fui burra, idiota’. Você está se diminuindo como sua mãe e sua irmã faziam, sem ver que tava se adaptando a uma situação nova. ‘Gosto de blusa, saia e bota com estampadinho, só que quando junto tudo, não combina’. Você está buscando seu estilo como mulher, depois de ser tão criticada por elas. Você tá mais leve e divertida. ‘Já não sinto angústia É um milagre’. Você mudou com a análise. ‘Sou feminina e delicada, mas me sinto homem porque sou independente, cuido das minhas coisas’. Você pode ser feminina e delicada, mas também independente e capaz de se cuidar. Aliás, você já mudou, pois na primeira sessão você queria que alguém cuidasse de você. ‘Graças a Deus’. Graças a nós. ‘Quero melhorar o astral das pessoas, mas quando elas não respondem, eu paro de fazer isso’. Você se sente inferior e errada, mas talvez as pessoas sejam insensíveis. ‘Algumas pessoas são ogras, eu tô querendo espalhar alegria’. A primeira pessoa pra quem você pode espalhar alegria é pra você mesma. ‘Eu faço isso, mas tô preocupada com uma dor na barriga, vou ao médico pra poder sair. Tem dificuldade de falar de suas qualidades. Você é capaz de ser bondosa, solidária, honesta. ‘Sou, antes eu era determinada, hoje em dia não, começo um curso e paro’. O que te levaria a parar a análise? ‘Tem a ver com gostar da psicóloga, gosto, depois deixo de gostar, consigo me libertar’. Quando você gosta de alguém, você tem medo de ficar presa? Depois de um tempo, diz que não. Que qualidades alguém precisa ter, pra você gostar? Não sabe. Você também quer alguém bondoso, solidário e honesto como você? ‘É difícil de encontrar’. Então, suas qualidades são raras, pouco comuns.

Veio até o consultório para me pagar, mesmo sentindo dor. Você é honesta, compromissada e se sacrifica para manter esse compromisso. ‘Minha casa tá uma bagunça, mas eu me sinto em paz’. Porém, você não encontra coisas como seus tênis. Fala de suas dores físicas e de experiências decepcionantes com psicólogos, fisioterapeutas e médicos. ‘Fiz testes com as psicólogas. Disse pra uma que minha irmã era esquizofrênica e imediatamente ela olhou no relógio, como se quisesse se livrar logo de mim’. Você não deixa suas escolhas ao sabor do acaso sempre. Você tem que selecionar quem entra no seu coração, no seu apartamento e quem cuida de você.

Ela começa a sessão na hora, mas o gato passa na frente da câmera, ela segura o rosto com a mão, enrola-se na cama porque tem dor, fecha os olhos, pois tem sono. Comer salgadinhos, o gato passando, a mão no rosto e o sono dificultam nossa comunicação. ‘Consegui que um motorista do Uber me ajudasse a resolver o problema, me sinto sozinha’. Você se sente desamparada e a mercê dos outros para te ajudar? ‘Sim’. Você ficou a mercê de um homem relativamente desconhecido, que te ajudou. ‘Acho que fui raptada. Tive um sonho em que eu era filha do R.R. Soares, que falou que se sua mãe te maltrata, ela não é mãe. A taróloga disse que eu era filha dele, mas é taróloga’. Você tem um lado místico e intuitivo, mas também tem um lado inteligente e crítico. Você desejou ser filha do R. R. Soares pra ele te proteger da sua mãe. ‘Antes de eu nascer houve uma luta entre as forças do bem e do mal, as trevas queriam me atacar, tive que ficar escondida na minha família, numa cidade de gente má’. Você não queria ser filha de seus pais. ‘Antes sim, mas eles me ajudaram a evoluir espiritualmente. Preciso ir ao banheiro’. Acho que você tem medo de dizer quem você é e que eu te ache esquisita. Respeito suas crenças e vou ver o lado psicológico. Apesar do seu sofrimento com sua mãe, você ajudou os alunos na escola. ‘Eu tinha essa missão, não era muito consciente, achava que estava ensinando, mas estava ajudando. Ajudei uma garota que tinha perdido a virgindade, falei pra ela não contar pra ninguém, não ficar saindo com todo mundo, pra não ficar falada’. Você conseguiu ser boa, generosa e solidária com os alunos que tinham problemas com a mãe, mesmo sofrendo muito com sua mãe.

‘Os exames de urologia não deram nada, vou a um gastro, acho que é ginecológico’. ‘Tem pessoas que falam em amor e não vivem o amor. As pessoas são contraditórias, às vezes, elas aparentam gostar, mas querem dinheiro, fui fazer uma doação pra caridade, a mulher não gostou de mim e não me olhava, fui num centro espírita, fiz uma pergunta pra mulher e ela estava com muita raiva’. Todos nós encontramos pessoas, que não gostam de nós. Você tem tido muitas experiências de rejeição, exclusão e decepção com as pessoas, inclusive religiosas. ‘Entrei num grupo de gnose e depois saí, hoje aproveitaria melhor, mas eles sumiram do local’. Você tem qualidades pouco comuns, que podem encantar as pessoas. Parece aceitar ter qualidades difíceis de encontrar. ‘Minha mãe me impedia de ter amigos, quando me tornei tímida e as pessoas disseram que era por causa dela, ela me empurrou para ter amigos, bateu no meu rosto na frente de uma amiga’. Você sofreu muito com sua mãe contraditória e cruel, envolvendo amigos. Quando você acredita que não vai ter amigos, que as pessoas da cidade não são boas, você generaliza. Tem medo de sofrer, se decepcionar e ser traída por elas e pela analista.

Quando você fala olhando para cima e para o lado, dificulta a comunicação entre nós e eu não posso te ajudar. Devido a sua dor na barriga, ela tem medo de ter câncer ginecológico, de haver falhas nos exames e de não encontrar um médico, como ocorreu com a mãe. ‘Uma faxineira diferente, saía com vários homens, usava roupas curtas, quis usar o mesmo sabonete que eu, quando eu disse não, ela tomou isso como ofensa. Quando contei isso pra uma terapeuta, ela disse que eu estava interessada na faxineira, ela é maluca’. Você tem tido muitas experiências de sofrimento com várias pessoas, inclusive com terapeutas. ‘Com a antiga terapeuta, eu conversava sobre coisas do dia a dia e, às vezes, ela trazia alguma luz, você vai no problema, tô confusa e perdida, mas sigo minha intuição e peço a Deus pra me guiar’. Cada vez que você deixa pra leitura de sinais ou pra sua intuição decidir alguma coisa, você não faz o que deseja. Você pode transformar seu medo em prevenção, cuidado e ação.

‘Fui só uma vez na terapeuta, que disse que eu tava interessada na faxineira e na psicóloga, que olhou o relógio. Com a terceira terapeuta, fiquei três anos, ela atendia aos sábados e domingos, mas ela sumiu de repente. Achei que ela não se importava comigo’. Você se sentiu abandonada e rejeitada. ‘Com outra terapeuta, conversávamos sobre o dia a dia e de vez em quando ela dava uma luz. Você vai no problema’. Você tem se sentido perdida ou confusa porque estamos descobrindo suas qualidades, em oposição ao que você ouvia da sua mãe? ‘Eu não me sinto perdida ou confusa, me sinto bem’. Quais são as suas qualidades? Ela não consegue dizer. São qualidades que você mesma falou: é honesta, solidária, tenta ser um anjo guardião do planeta para proteger as pessoas. ‘Nem sempre dá certo, elas não aceitam’. E a sua capacidade de se cuidar e de se proteger? Ela olha para o lado. ‘Meu pé tá meio sujinho, não tá bem’. Você tá tendo dificuldade de reconhecer suas qualidades, pois quando eu as aponto, você aponta que algo não está bem. ‘Eu bloqueio a consciência de minhas qualidades’.

‘Minha roupa tá estranha?’ Tá bom pra você? Sim. Senti dores, fui orando e foi melhorando um pouco. Uma vizinha me perguntou se eu estava saindo pra comer, achei que ela estava debochando de mim, achando que eu era retardada, eu fico isolada’. Você tá trazendo outra experiência de sofrimento com pessoas, você se isola de gente não acolhedora, preconceituosa, que não consegue ver por detrás da aparência. ‘Outra vizinha denunciou meus gatos pra zoonose, tenho eles há dez anos, eles podem levar embora, fiquei com raiva. Cuido dos gatos abandonados, ando com eles, converso, eu levava meus gatos num carrinho pra passear, outra vizinha disse que eu sou uma figura. Já ajudei vários gatinhos, cachorrinhos, peguei gatinhos na rua, as pessoas me pediam que eu fosse ajudá-las’. Você se sente estranha, mas você tem direito de gostar de gatos. ‘Mesmo com dores na barriga, tenho limpado muito o apartamento’. Tá tudo misturado: seu amor por gatos, sua dedicação pra protegê-los, proteger os animais, seu medo de ser vista como estranha e suas dores psicológicas e físicas. ‘Faço muita oração, acendo vela e incenso pra proteger as pessoas do ódio, da inveja e do mal. Noutra geração, no tempo das cavernas, fui um homem grande e forte, que protegia as mulheres’. Além dessa força física bruta usada pra proteger, você tem a força do amor, da bondade e da generosidade pra ajudar as pessoas, os animais e o planeta. ‘Tem o Anticristo e as forças do mal, tenho que me esconder e disfarçar os rituais, para pedir proteção, podem me machucar, tem apóstolos que não são apóstolos, tem filhos do demônio que voltam pra Deus, tem filhos de Deus, que se voltam contra Deus e aderem ao demônio, o demônio já foi um anjo. Eu sou filha. Uma taróloga disse que eu sou um anjo guardião com uma missão, que varia, já protegi pessoas, animais e o planeta. Sou intercessora, faço oração pedindo proteção pras pessoas, hoje já não preciso mais usar magia’. Aos poucos, você tá confiando em mim, compartilhando coisas que você tinha medo que eu julgasse estranhas. ‘Não dá para compartilhar com qualquer pessoa. Você tem suas crenças e eu tento ver a parte psicológica, como você tá sofrendo. Você pode assumir suas qualidades e sua força, apesar da inveja, do ódio e da maldade.

‘Tô com uma dorzinha, mas consegui me sentar numa posição boa’. Cumprimento a gatinha Mel, que passa. ‘Coloco ela na minha barriga pra diminuir a dor. Os místicos dizem que os gatos ajudam a curar doenças. Algumas pessoas têm dado dicas pra melhorar minha dor, diminuir os gases’. Essa é a primeira sessão em que você fala de pessoas boas que te ajudam, depois de várias com pessoas que te machucaram. Você tem medo de ter câncer como sua mãe, mas você tá se cuidando, vinte anos antes. Mesmo sendo mística, você tem as qualidades de autocuidado, autoproteção e prevenção, ligadas à realidade. ‘Cuidei da minha mãe fazendo anotações de horários de remédios na parede, gastei muito dinheiro, fiz empréstimo, entrei em dívidas pra pagar os tratamentos dela. Minha irmã não cuidou e nem gastou dinheiro com ela’. Você foi amorosa, cuidadosa, protetora e se sacrificou por sua mãe, que te maltratou. Você tem dificuldade de aceitar suas boas qualidades, fica em dúvida se as tem. ‘Pra cuidar da minha mãe que não conseguia se levantar, eu me deitei no chão pra ela pisar’. Você foi muito pisada por ela e tá sendo difícil tomar consciência de suas qualidades. ‘Percebi que tinha a qualidade de ser higiênica, quando vi uma moça que fazia doces, colocar o doce em cima da mesa suja’. Ser higiênica é uma qualidade mais fácil de assumir do que ser amorosa, cuidadosa, protetora, capaz de sacrifício e de superar as dores com ela, pra cuidar dela. Ela fica muito quieta me olhando, por um bom tempo. Vamos aos poucos vendo suas qualidades. ‘Tá joia’. Que tal você ver as joias psicológicas dentro de você?

‘Sou muito desligada, já perdi o celular, sempre perdi as chaves. Morei com pessoas, perdi a chave e elas podiam desconfiar de mim, na escola roubaram minha chave pra pegar o chaveirinho. Perdi o celular e o motorista do Uber disse para o passageiro ficar com meu celular, mas ele devolveu. No meu prédio, delataram meus gatos, a sindica disse que eu tinha que limpar, eu sabia que a faxineira ia quebrar minhas coisas, mas deixei ela vir e ela quebrou minha pia’. Você fala de situações de desconfiança, nas quais você fica à mercê de pessoas, que te lesam. ‘Tem muitas falhas na escola com a progressão continuada, problemas na formação das crianças. Pra ser médico, já foi muito importante estudar muito, se dedicar muito’. Você desconfia da capacidade dos médicos cuidarem das pessoas e generaliza essa desconfiança. ‘Minha irmã disse que eu não era filha da minha mãe, ela me tratava tão mal, acho que não sou filha dela, ela batia na minha cara, ela não era normal. Minha irmã e minha mãe se juntaram para enganar meu pai, mas elas brigaram e não conseguiram’. Parece que sua mãe era insensível e cruel com você. Porém, você foi bondosa e cuidou dela, foi bondosa ao ajudar os alunos. Essa foi a origem de situações de desconfiança, com muito sofrimento mental. Então, no meio de tanto sofrimento, da desconfiança de pessoas ruins, você foi boa. ‘Já tive muito medo de ficar louca, fui conversar com o psiquiatra e ele disse que se eu não tinha ficado louca até ali, eu não ia ficar mais. Tive muita força para lidar com tudo que passei’. Pela primeira vez, você consegue se valorizar, depois de muito resistir a tomar consciência de seu valor. Você vai perder a consciência de suas qualidades ou vai agarrá-la? ‘Vou agarrá-la’.

Contudo, problemas com seu celular ensejaram sua ruptura das sessões de análise e a impossibilidade de comunicação com ela.

Discussão

No primeiro período da análise, ela aponta ser favorecida e ser perseguida pelas chefias. Ela interpreta suas relações com o outro, por meio de sinais ligados a um sistema místico-supersticioso. Seu pensamento mágico envolve acaso, sorte e azar. Tem dificuldades com relações estáveis. Refere ser desvalorizada, ser rejeitada, ser boba e ser sonsa para sua mãe. Além disso, coube-lhe ser excluída da aliança entre sua mãe e a irmã. Aparecem ainda ser merecedora de bolsa de estudos, mas ser desvalorizada por ser pobre. Ser espiritualizada parece substituir a falta de vínculos reais bons. Ter hábitos estranhos fornece uma pista sobre sua identidade secreta (Almeida, 2022).

No segundo período, ter segredos, ter uma identidade secreta, os espíritos do mal, os espíritos trevosos e a leitura de sinais suscitam seu medo de ser rejeitada pela analista. Contudo, ela revela ser competente, ser inteligente, ser criativa, ser prática e ser lógica na vida, bem como capaz de ser realista e ser honesta. Além disso, ser inferior e ser desconsiderada não a impedem de ter como missão ser protetora das pessoas e do planeta. ser desconfiada de si mesma por ser piradinha (Almeida, 2022).

No terceiro período, sente ser solitária e deseja muito ser protegida, bem como sente ser um bebê, que precisa muito ser cuidado. Sente estar fora da realidade, juntamente com ser traída, ser vulnerável, ser feia e ser machucada. A oração e a espiritualidade servem para afastá-la de pessoas destrutivas, da terra e da realidade. Em meio a isso, ser inteligente e ser racional lhe permitem se defender disso. Falta-lhe ser seletiva com as pessoas. Ser solitária articula-se a ser roubada pela mãe - injusta, cruel e contraditória. Apesar de viver apavorada, atormentada e ameaçada de apanhar da mãe, sente ser merecedora desse sofrimento. Visto sua mãe ser contraditória, ter amigos equivalia a ser pecadora, mas a seguir coube-lhe ser submetida a buscar pessoas. Sente estar muito perdida, sem ter um eu próprio e sem ter um estilo como mulher. Pois, ser erotizada e ser mulher foram associadas a ser pecadora, ser prostituta, ser perversa e ser má. Restou-lhe ser muito desligada e ser perdedora de amigos e do celular. Ser espiritualizada se misturava com ser mística. Ser injustiçada articulava-se a ser toda errada e a não ser gente. Contudo, pode ser protetora, ser generosa e ser amorosa com alunos e ser empática com a analista. Noutra sessão, ser caipira, ser burra e ser idiota estão na linha de ser criticada pela mãe e pela irmã. Sente ser feminina e ser delicada, mas sente ser homem ao ser independente, ser autônoma e ser cuidadora de si mesma. Convivem ser inferior, ser errada e ser fonte de alegria. É capaz de ser bondosa, ser solidária e ser honesta, mas tem medo de ficar presa se gostar do outro. Ela toma consciência de que suas qualidades são raras (Almeida, 2022).

Ser honesta se entrelaça a ser compromissada e capaz de se sacrificar para manter um compromisso. Surgem indícios de que ela não deixa suas escolhas ao sabor do acaso sempre. Precisa ser seletiva com quem entra no seu coração e no seu apartamento. Dialogam ser mística e ser intuitiva com ser inteligente e ser crítica. Tem medo de ser vista como esquisita pela analista se revelar quem é. Consegue ser boa, ser generosa e ser solidária, apesar de ser rejeitada, ser excluída e ser decepcionada pelos outros. Conjugam-se ao seu medo de sofrer e de ser traída pelos outros/analista. Ao deixar suas decisões se guiarem pela leitura de sinais ou pelo acaso, ela não faz o que realmente deseja. Apesar de ter sentido ser abandonada, ser submetida e ser rejeitada, consegue ser honesta, ser solidária e ser um anjo guardião das pessoas e do planeta. Ela percebe que bloqueia a consciência de suas qualidades (Almeida, 2022).

Ser debochada, ser retardada e ser isolada reiteram seu grande sofrimento psíquico com as pessoas. Aos poucos, perde o medo de ser vista como estranha pela analista e confia em mim. Começa a assumir suas qualidades e sua força, apesar da inveja, do ódio e da maldade dos outros. Ser mística faz parceria com ser capaz de autocuidado, autoproteção e prevenção, de forma realista. Pode ser amorosa, ser cuidadosa, ser protetora, ser capaz de se sacrificar e de superar as dores com sua mãe. Ainda é difícil para ela tomar consciência de suas qualidades. Na última sessão, ser submetida à mãe e às pessoas insensíveis e cruéis parece ser a origem de ser desconfiada. Ela teve muito medo de ficar louca, mas teve muita força para lidar com tudo o que passou. Essas representações de si revelam que ela assumiu suas qualidades e pode se valorizar (Almeida, 2022).

Com base em sua análise, a paciente atende vários critérios do transtorno de personalidade esquizotípica. Aparecem sua capacidade reduzida de estabelecer relações íntimas, pensamentos estranhos, comportamento e aparência excêntricos, preferência pelo isolamento, ansiedade social relacionada a medos paranoicos, crenças de ser esquisita e de não ser bem-vinda. Seu pensamento mágico reflete o distanciamento da realidade e a desorganização do pensamento - ‘estar flutuando, fora do ar’. As ideias de referência envolvem as noções de que eventos comuns têm um significado intencional e direcionado para si - encontrar a analista por acaso é ‘um sinal para falar com ela, a chuva foi um sinal pra eu não encontrar um rapaz desconhecido e a chuva parou, quando eu recusei o encontro’. Ela é supersticiosa e crê que rituais mágicos podem impedir danos - fazer orações, acender vela e incenso - e que o outro tenta interferir em sua vida - vizinhos que desejam entregar seus gatos para a zoonose. As crenças paranoicas incluem teorias de conspiração sobre governos e facções políticas - rezar por um político, com um dossiê falso contra ele, pessoas da esquerda pagaram pra faxineira quebrar minha pia - bem como questões religiosas abarcando demônios e divindades - seu relato sobre Deus, o demônio e seus filhos, no qual afirma ser filha de seus pais e desmente sua irmã.

Muito embora, a descrição do mundo mental da paciente se coadune com o transtorno esquizotípico, faz-se necessário agregar a ele outros enfoques.

O mundo mágico da paciente pode ser encarado de maneira positiva, visto que Subbotsky (2014) afirma que o pensamento mágico e as crenças mágicas constituem uma característica central da mente humana e das culturas, sob a forma de superstições. Ambos criam um background para o pensamento racional e as crenças racionais nas culturas modernas. As crenças mágicas influenciam a mente e o comportamento humano, beneficiando a aprendizagem, a educação, a comunicação e a propaganda.

Lembrando-se do intenso sofrimento psíquico da paciente em sua infância, suas crenças mágicas fizeram-se necessárias. Kuhn (2022) defende que as crenças mágicas fornecem à criança o combustível para o desempenho de papéis imaginários e da fantasia para dominar problemas difíceis e manter uma sensação de independência e poder. O comportamento supersticioso e as crenças mágicas geram um ilusório senso de controle, que reduz a ansiedade em situações estressantes e melhora o desempenho em situações fora do controle racional. O controle é uma importante estratégia para se lidar com a vida e sua ausência pode levar à ansiedade e à depressão.

Advindos do campo da psicologia, os autores afirmam que o comportamento supersticioso e as crenças mágicas são constitutivos dos seres humanos, tem funções importantes em suas vidas e se distanciam de qualquer visão psicopatológica sobre eles.

No domínio da psicanálise, Freud (1901) assinala que o supersticioso fica indiferente às manifestações de seu inconsciente e percebe intenções ocultas no acaso externo. No neurótico obsessivo, a superstição associa-se à expectativa de infortúnios, derivada de impulsos cruéis e hostis reprimidos. Logo, os impulsos de autopunição e autodestruição inconscientes tiram vantagem da situação externa oferecida pelo acaso.

Na paciente, seus impulsos cruéis e hostis reprimidos se revelam por meio da autopunição, ao se representar como merecedora do sofrimento. A expectativa de infortúnios surge ao se perceber como alvo de forças do mal e de espíritos trevosos. Ainda em psicanálise, aparecem as representações do trauma do absoluto: ser abandonada e ser rejeitada, inclusive na modalidade de representações do espaço - estar flutuando, estar fora do ar. Constituíam sua forma de se defender de pessoas destrutivas ligadas à terra e à realidade. Foram sendo modificadas ao longo da análise.

Todavia, vale adicionar que a paciente está longe de lidar com a tomada de decisões, no sentido de usar sua intuição para ganhar com suas decisões. Distancia-se da proposta de Gigerenzer (2022) de se apropriar das fontes de informação para não delegar escolhas importantes ao outro e de apostar na própria intuição. Igualmente, sua forma de lidar com o caos familiar, seu consequente stress e seu intenso sofrimento psíquico diferencia-se da visão do próximo autor, voltado para o mundo profissional adulto. Segundo Taleb (2014), a mentalidade antifrágil proclama o caos, o aleatório, o imponderável, a desordem, o risco, a incerteza, a crise e o stress como desejáveis na vida, juntamente com o aperfeiçoamento pessoal com eles.

Considerações Finais

Tendo-se em vista que o transtorno esquizotípico - enquanto predisposição genética - sofreu grande influência da história de vida da paciente e que os curtos períodos de análise deram ensejo a várias mudanças psíquicas, entende-se que sua continuidade poderia produzir melhoras significativas em sua vida psíquica.

Com relação à autonomia do desejo, suas falhas estão conectadas à sua ênfase inconsciente nas superstições, nas crenças mágicas, no acaso e no imponderável, dentre outros fatores, impedindo sua relação livre com seu próprio desejo - em virtude de sua formação patológica na família.

Referências

Abbagnano, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Almeida, M.E.S. A mudança psíquica no trauma do absoluto. São Paulo: Clube dos Autores, 2022.

Dicionário Michaelis online.

Disponível em: https://michaelis.uol.com.br › acaso › 2023.

Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. DSM-5. Washington: American Psychiatric Association, 2013.

Freud, S. (1901). A psicopatologia da vida cotidiana. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 2019.

Gigerenzer, G. Preparados para o risco. Brentford: Portfolio-Penguin, 2022.

Kuhn, G. The powerful role of magical beliefs in our everyday thinking.

Disponível em: https://thereader.mitpress.mit.edu › 2022

Lévy-Bruhl, L. Sobrenatural e a natureza na mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus Editora, 1968.

Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.

Malinowski, B. Magia, ciência e religião. São Paulo: Edições 70, 1998.

Popper, K. R. Conhecimento Objetivo. São Paulo: Editora Vozes, 2022.

Subbotsky, E. The belief in magic in the age of science. Sage Journals

Disponível em: https://journals.sagepub.com › 2014.

Taleb, N. N. Antifrágil: o benefício do caos. São Paulo: Best Business, 2014.

Wiseman, R. O fator sorte. São Paulo: Record, 2003.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 30/10/2023
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