DIA MUNDIAL DO REFUGIADO

 Manuela Niza Ribeiro

 

Em bom rigor todo o imigrante irregular é um refugiado: fugir da fome, da perseguição, dum horizonte sem futuro ou da guerra em última análise é fugir da morte certa

Não gosto de “Dia Mundial de…”. Salvo raríssimas exceções, em que se presta homenagem a quem lutou por algo, estas efemérides servem apenas para sossegar consciências. Comemora-se o dia para se esquecer o facto durante os restantes 364.

Esta semana foi a vez do Dia Mundial do Refugiado e a regra mantem-se. No anonimato da palavra que engloba o grupo, esquecemo-nos que nele estão homens, mulheres, crianças, velhos, pessoas com deficiência… Que têm um nome, uma identidade. Que tiveram uma vida, um lugar a que pertenciam. Que tiveram e têm sonhos, medos. Que riram e choraram. Amaram e perderam entes queridos. Que são em tudo iguais a nós.

Apenas tiveram a má sina de nascer no lugar errado na hora errada. Nem eles nem nós fomos tidos ou achados neste processo de inevitabilidade cósmica, ou destino, ou karma, ou fado.

 

DIA MUNDIAL DO REFUGIADO

Relembrá-los num dia específico, ou bater no peito, não lhes resolve coisíssima nenhuma.

São milhares, retidos em campos que podiam ser de concentração, pois o que é um nome afinal quando as condições são semelhantes e o destino é, não raras vezes, o mesmo?

Há homens e mulheres que nasceram, se fizeram adultos e morreram em campos de refugiados. Nunca conheceram outra realidade que não aquela.

 A Europa paga para não ter no seu território esta chaga. Paga para os devolver ao seu país, para no caso da Inglaterra que, embora não faça parte da União, não deixa de ser Europa, fazer acordos com países como o Ruanda de modo a enviar refugiados e imigrantes irregulares para longe da nossa vista

Sim, porque esta situação não é de agora nem começou com a guerra na Ucrânia. Existe há décadas com o conflito Israelo-palestiniano, com a questão Líbia, com os fugidos ao Daesh, aos regimes totalitários, muitos dos quais o Ocidente ajudou a criar sob a falácia de defender a democracia. Perguntem a um Líbio se está melhor agora ou no tempo de Kadhafi. O mesmo Kadhafi que acolhemos vezes sem conta, com pompa e circunstância, que deixámos montar a sua tenda de luxo em locais emblemáticos da Europa e não só, e que mais tarde apelidámos de “carniceiro” . Não seria propriamente um santo nem um total democrata, mas mantinha o país em paz e com um nível de vida que muitos líbios hoje anseiam poder recuperar.

Interviemos em nome da liberdade e da paz e só levámos a guerra e a destruição e com ela fomentámos as hordas de refugiados que nos recusamos a acolher. Que “enxotamos” das nossas costas, que mantemos prisioneiros em locais de arame farpado.

Mesmo as leis que ratificamos são, em grande parte, atentados à dignidade e aos direitos destas pessoas.

 A Europa paga para não ter no seu território esta chaga. Paga para os devolver ao seu país, para no caso da Inglaterra que, embora não faça parte da União, não deixa de ser Europa, fazer acordos com países como o Ruanda de modo a enviar refugiados e imigrantes irregulares para longe da nossa vista.

O acolhimento dos países da União Europeia faz-se como quem compra morangos: por escolha nos campos às suas portas. Os deficientes, os velhos, os que não têm formação são preteridos e para ali ficam entregues a outra morte mais lenta.

Sem falar dos outros, dos que não estão em campos e que vagueiam sem rumo, alguns numa terra de ninguém como é a floresta entre a Bielorrússia e a Polónia.

Sei que já falei por várias vezes neles, mas as imagens que me chegam por parte de ONG e por organizações ligadas à Igreja impelem-me a fazê-lo mais uma vez.

S. é um iraquiano curdo que, literalmente, rasteja pela floresta, ajudado por uma família Yazidi, tentando chegar ao muro de arame farpado que o separa da Polónia.

Aos nove anos pisou uma mina num local que devia ser seguro. Perdeu uma perna e no hospital acabaram por lhe amputar também a outra. É jovem, tem formação, mas não tem futuro. Provavelmente acabará jazendo ali à mercê dos animais selvagens se uma boa alma não lhe abrir uma sepultura com as poucas forças que lhe restarem.

A família que o ajuda retira ao pouco que tem, o que pode. Não há ninguém mais generoso que aquele que nada possui.

A família de M. é de etnia Yazidi. Tem três filhos, com idades inferiores a dez anos, mas que não aparentam mais de cinco. Duas das crianças padecem duma má formação congénita que os impede de ter um desenvolvimento normal e que a falta de condições naquele “não campo” improvisado só vem piorar.

Sobrevivem com a ajuda feita clandestinamente por estas ONGs e pela Igreja que, durante a noite, vão levando água e alguma comida, uns cobertores com que cobrir o corpo do frio e da chuva.

Naquela floresta não há tendas. Nem a ACNUR nem qualquer outra estrutura internacional de apoio a refugiados, se encontra ali. Talvez por impossibilidade total devido ao regime de Lukaschenko talvez por outra razão qualquer que o coração daquela gente não entende.

Por tudo isso não são elegíveis para serem acolhidos. Por tudo isto são esquecidos.

Em bom rigor todo o imigrante irregular é um refugiado: fugir da fome, da perseguição, dum horizonte sem futuro ou da guerra em última análise é fugir da morte certa.

Dia do Refugiado? Seria hilariante se não fosse trágico e se não nos envergonhasse.