Brasil: O escândalo da quebra dos paradigmas ecológicos

Brasil: O escândalo da quebra dos paradigmas ecológicos

Uma vida sem reflexão, sem busca,

sem exame, não é digna de ser vivida

(Sócrates)

Introdução

Ao iniciar um trabalho que envolve a ética como objeto de estudo, conside-ramos importante, como ponto de partida, estudar o conceito de ética, estabele-cendo seu campo de aplicação e fazendo uma pequena abordagem da conver-gência das doutrinas éticas que consideramos mais importantes para o nosso trabalho. Observa-se que, na maioria dos casos há uma ponderável semelhança entre problemas éticos e morais.

A ética, como se verá adiante, não é algo superposto à conduta humana, pois todas as nossas atividades envolvem uma carga moral. Idéias sobre o bem e o mal, o certo e o errado, o permitido e o proibido definem a nossa realidade. Em nossas relações cotidianas estamos sempre diante de problemas do tipo: Devo sempre dizer a verdade ou existem ocasiões em que posso mentir? Será que é correto tomar tal atitude? Devo ajudar um amigo em perigo, mesmo correndo risco de vida? Existe alguma ocasião em que seria correto atravessar um sinal de trânsito vermelho?

Abrimos com uma questão instigante: Os soldados que matam numa guer-ra, por exemplo, podem ser moralmente condenados por seus crimes ou estão apenas cumprindo ordens? Tudo isto faz parte do grande debate ético que envol-veu a humanidade desde suas origens. Estas questões nos colocam diante de problemas práticos, que aparecem nas relações reais, efetivas entre indivíduos. São problemas cujas soluções, via-de-regra, não envolvem apenas a pessoa que os propõe, mas também a outra ou outras pessoas que poderão sofrer as conse-qüências das decisões e ações, conseqüências que poderão muitas vezes afetar uma comunidade inteira.

Um dos grandes clamores da vida moderna é a quebra dos paradigmas éti-cos. Embora o comportamento ético não seja a prática usual, na evicção de al-gum direito a primeira cláusula que se invoca é a da ética. É o caso do latifundi-ário que expropria terras de posseiros, e reclama quando movimentos populares, nas mesmas águas, invadem suas terras.

O homem, no dizer do filósofo E. Husserl († 1938), o criador da fenomeno-logia, é um ser-no-mundo, que só realiza sua existência no encontro com outros homens, sendo que, todas as suas ações e decisões afetam as outras pessoas. Nesta convivência, nesta coexistência, naturalmente têm que existir regras que coordenem e harmonizem esta relação. Estas regras, dentro de um grupo qual-quer, indicam os limites em relação aos quais podemos medir as nossas possibi-lidades e as limitações a que devemos nos submeter. São os códigos culturais que nos obrigam, mas ao mesmo tempo nos protegem. Ou vice-versa.

Este trabalho faz parte de um contexto que vai tratar dos atos predatórios que assolam a zona produtiva do interior do Rio Grande do Sul, como monocul-tura, desrespeito à biodiversidade, devastação de campos e mata atlântica, bem como o plantio de árvores “exóticas” (eucaliptos, pinus, acácias etc.). Outros es-pecialistas vão discorrer sobre esses fatos, sob a ótica de suas cátedras. O pre-sente tópico irá apresentar o drama de uma população que sofre com direito ar-ranhado pelo latifúndio, pelas multinacionais e pelo silêncio omisso de nossas autoridades.

Alerto, desta forma, que muitos ovos vão ser quebrados para a confecção deste omelete. Não se faz um artigo deste teor sem “quebrar ovos”. Há verdades que precisam ser ditas e alguém tem que dizê-las. Já dizia Sólon, o grande legis-lador ateniense, lá pelo século V a.C. que o tirano, o corrupto e o injusto (as forças negativas em nossa sociedade moderna) têm mais medo da língua do valente (da denúncia dos que não têm medo de defender a ética e a moral) do que da lança do covarde (as bajulações dos puxa-sacos, da mídia subserviente e outros safa-dos em geral).

1. A história da ética

Por se tratar da especialidade do autor, vamos desenvolver neste trabalho um roteiro capaz de fornecer ao leitor elementos filosóficos e teológicos capazes de orientar o debate, municiar a denúncia e fomentar movimentos capazes de deter o clima de devastação que a monocultura, o falso reflorestamento, repre-sentado pela plantação de árvores que nada têm a ver com nosso solo, e pela instalação de fábricas de celulose oriundas da Europa, onde é proibido, por no-civo ao meio-ambiente, o plantio daquelas árvores, e a fixação das fábricas.

Para estabelecer essa instância de esclarecimento, vamos discorrer aqui, por vários capítulos, de forma didática e vigorosa a respeito da ética formal e dos aspectos morais que norteiam a nossa cultura ocidental. Primeiro vamos centrar nossa análise na ética, na moral e na teologia, para só então estabelecermos um aporte ao assunto central. Para conhecê-lo e ter capacidade de debate, o leitor precisa passar pelos caminhos da ética.

A história da ética tem nos revelado, séculos afora, que a finalidade dos códigos morais é reger a conduta dos membros de uma sociedade, de acordo com princípios de conveniência geral, para garantir a integridade do grupo e o bem-estar dos indivíduos que o constituem. Assim, o conceito de pessoa moral se aplica apenas ao sujeito enquanto parte de uma coletividade.

Nesse particular, a ética se tornou uma disciplina crítico-normativa que estuda as normas do comportamento humano, mediante as quais o homem ten-de a realizar na prática atos identificados moralmente com o bem. A análise do desenvolvimento da atitude moral da humanidade ao longo do tempo revela um processo de progressiva interiorização: existe uma clara evolução, que vai da a-provação ou reprovação de ações externas e suas conseqüências até o julgamen-to das intenções que servem de base para essas ações. A ética, nessas condi-ções, é submetida ao julgamento da consciência. O que alguns estudiosos desig-naram como “ética da intenção”, que já se encontrava no Código de Sinuê, do antigo Egito, há 5000 anos, como, por exemplo, "não zombarás dos cegos nem dos anões", e do Antigo Testamento, que proíbe que se deseje os bens do próxi-mo.

Secularmente, todas as culturas têm elaborado uma porção de mitos, reli-giosos ou não, para justificar suas condutas morais. Nos mitos o homem de to-dos os tempos se refugia, para organizar sua vida e, ao mesmo tempo, dissipar seus medos. No Ocidente, onde se forjou a cultura judaico-cristã, conhecemos a figura de Moisés, que recebeu no monte Sinai, as tábuas com os dez mandamen-tos divinos. Conhecemos igualmente o mito narrado por Platão († 347 a.C), no diálogo Protágoras († 411 a.C.), segundo o qual Zeus, para compensar as defici-ências dos humanos, conferiu-lhes o senso ético e capacidade de compreender e aplicar o direito e a justiça.

Com a instauração do sentido ético veio também o chamado senso-crítico. O líder religioso, padre, rabino, mulá ou outro, ao atribuir à moral origem divina, torna-se seu intérprete e guardião. O vínculo entre moralidade e religião consoli-dou-se de tal forma que muitos acreditam que não pode haver moral sem religi-ão. Segundo esse ponto de vista, a ética se confunde com a teologia moral.

Na História da Ética, observa-se que coube a um sofista da antiguidade grega, Protágoras, romper o vínculo entre moralidade e religião. A ele se atribui a frase “O homem é a medida de todas as coisas, enquanto são e enquanto ainda não são”. Para Protágoras, os fundamentos de um sistema ético dispensam os deuses e qualquer força metafísica, estranha ao mundo percebido pelos senti-dos. Teria sido outro sofista, Trasímaco de Calcedônia († 400 a.C.), o primeiro a atribuir o egoísmo como base do comportamento ético .

Sócrates († 399 a.C.), que alguns consideram fundador da ética, defendeu uma moralidade autônoma, independente da religião e exclusivamente fundada na razão, ou no  (logos) . Ele atribuiu ao Estado um papel fundamental na manutenção dos valores morais, a ponto de subordinar a ele até mesmo a auto-ridade do pai e da mãe. Para ele a justiça não é algo convencional. É fundada na natureza das coisas, de onde se tira a verdade absoluta. Trasímaco critica Sócra-tes por usar o método da refutação. Para ele, Justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte. Talvez por causa disto que alguns “filósofos moder-nos” afirmem que ética é um acordo entre canalhas.

De outro lado, o filósofo Platão, apoiado na teoria das idéias da transcen-dentalidade e do devir, deu continuidade às teorias éticas socráticas, de onde a  (a verdadeira virtude) provém do verdadeiro saber. Este é o saber que di-mana do mundo das idéias. Pela razão (o logos), faculdade superior e caracterís-tica do homem, a alma se elevaria mediante conhecimento,  (gnóssis) ao mundo das idéias. Seu fim último é purificar ou libertar-se da matéria para con-templar o que realmente é e, acima de tudo, a idéia do Bem. A ética, aqui, inflete na direção do Bem, tornando-se uma determinante da felicidade do homem.

Para Aristóteles († 322 a.C.), considerado “o pai da lógica”, a causa final de todas as ações humanas era , eudaimonía (a felicidade). Assim, só se-rá feliz o homem cujas ações sejam sempre pautadas pela virtude, que pode ser adquirida pela educação.

Quando na Antigüidade grega Aristóteles apresentou o problema teórico de definir o conceito de Bem, seu trabalho era de apenas investigar o conteúdo do que é bom, e não definir o que cada indivíduo deveria fazer numa ação concreta, para que seu ato fosse considerado bom ou mau. Evidentemente, esta investiga-ção teórica sempre deixou conseqüências práticas por todos os tempos, pois quando definimos o Bem, estamos indicando um caminho por onde os homens poderão se conduzir nas suas diversas situações particulares. A filosofia teve a coragem de definir aquela divisória, às vezes tênue entre o bem e o mal.

A ética também estuda a responsabilidade do ato moral, ou seja, definir se a decisão de agir numa situação concreta é um problema prático-moral. Cabe-lhe também investigar se a pessoa pôde escolher entre duas ou mais alternativas de ação e agir de acordo com sua decisão. Este é um problema teórico-ético, pois verifica a liberdade ou o determinismo ao qual nossos atos estão sujeitos. A li-berdade nem sempre é um dom; pode converter-se em um compromisso. Ou uma “condenação” como afirmou J. P. Sartre († 1980).

Bem mais tarde, o utilitarista Jeremy Bentham († 1832), no que foi segui-do pelo economista John Stuart Mill († 1873), defendeu o princípio do eudemo-nismo clássico para a coletividade inteira. De outro lado, Friedrich Nietzsche († 1900) criou uma ética dos valores que inverteu o pensamento ético tradicional. O francês Henri Bergson († 1941) estabeleceu a distinção entre moral fechada e moral aberta, onde a primeira era conservadora nitidamente, baseada no hábito e na repetição, enquanto que a outra se fundava na emoção, no instinto e no en-tusiasmo próprios dos profetas, santos e inovadores.

É com Immanuel Kant († 1804) que a coisa muda de figura. Até fins do sé-culo XVIII, todos os filósofos, talvez exceto Platão, aceitavam que o objetivo da ética era ditar leis de conduta. Kant enxergou o problema sob novo ângulo e a-firmou que a realidade do conhecimento prático (comportamento moral) está na idéia, na regra para a experiência, no "dever ser". Para ele, todas as proposições comuns que resultam da experiência de mundo são sintéticas, isto é, não se po-de chegar a elas tão-somente pela análise .

Para os filósofos originários, o ideal ético é um imperativo categórico, ou seja, ordenação para um fim absoluto sem condição alguma. A moralidade resi-de na máxima da ação e seu fundamento é a autonomia da vontade. Desde a época em que Galileu afirmou que a Terra não é o centro do universo, desafian-do os postulados ético-religiosos da cristandade medieval, são comuns os confli-tos éticos gerados pelo progresso da ciência, especialmente nas sociedades in-dustrializadas do século XX. A sociologia, a medicina, a engenharia genética, a biologia e outras ciências se deparam a cada passo com problemas éticos. Em outro campo da atividade humana, a prática política antiética tem sido respon-sável por comoções e crises sem precedentes em países de todas as latitudes.

Em termos de ética e moral há uma variedade de opiniões. Uma outra vi-são nos é apresentada pelo pensamento de Nietzsche, já mencionado linhas a-trás. Ele é um crítico veemente e mordaz a toda moral existente, seja ela a moral socrática (que ele rejeita) ou a judaico-cristã (que ele ridiculariza). A todas, ele chama de “moral da burguesia”. Para este filósofo alemão, a vida é vontade de poder, princípio último de todos os valores; o bem é tudo que favorece a força vital do homem, é tudo o que intensifica e exalta no homem o sentimento de po-der, a vontade de poder e o próprio poder. O mal é tudo que vem da fraqueza. Nietzsche anunciou o übermensch, o “super-homem”, alguém capaz de quebrar a tábua dos valores usuais, transformando-os a todos em padrões da moralidade desejada.

Uma das correntes modernas dignas de nota para nosso estudo é o prag-matismo, que se dedica às questões práticas vistas sob uma ótica utilitária, onde procura identificar a verdade com o útil, como aquilo que melhor ajuda a viver e conviver. O Bom é algo que conduz a obtenção eficaz de uma finalidade, fim esse que nos conduz a um êxito. Encontram-se vestígios desta corrente na sociedade capitalista moderna.

As premissas do pragmatismo se tornaram o reflexo do progresso científico e tecnológico alcançado pelos Estados Unidos no apogeu de sua fase capitalista onde o "espírito de empresa", o "american way of life", criaram solo fértil para a mercantilização das várias atividades humanas.

Da idéia de bem como sendo o que traz vantagens para muitos, criou-se um raciocínio funcionalista, onde só tem valor aquilo que é capaz de dar satisfa-ção. Essa tendência aparece em muitas formulações éticas, principalmente no pragmatismo que, como doutrina ética, parece estar muito ligada ao pensamento anglo-saxão, tendo se desenvolvido muito nos países de fala inglesa, particular-mente nos Estados Unidos, no final do século XX. Seus principais expoentes são os filósofos William James († 1910) e John Dewey († 1952).

Existe um grande perigo embutido no pragmatismo, que é a redução do comportamento moral a atos que conduzam apenas ao êxito pessoal transfor-mando-o numa variante utilitarista marcada apenas pelo egoísmo, rejeitando a existência de valores ou normas objetivas. Nesse aspecto aparece o egoísmo vol-tado aos interesses de grupos, do tipo “não me importa que cor tenha o gato, desde que cace ratos”. É a busca da vantagem particular, onde o bom é o que ajuda meu progresso e o meu sucesso particular. Esta tendência norteia a maio-ria das atitudes do empresariado moderno.

Dentre todas as preocupações que motivaram a reflexão desde os primór-dios da cultura ocidental, é bem possível que a ética tenha sido a primeira. Por tudo o que se conhece da civilização grega em seus períodos mais arcaicos, sabe-se que as elaborações místicas, as religiões, a poesia, a tragédia, a organização da vida política e outras manifestações do pensamento ocupavam-se intensa-mente com o significado ético da vida humana.

Quando nos voltamos para as primeiras tentativas de ordenação do pen-samento em função da explicação do cosmo e do lugar que o homem nele ocupa, notamos imediatamente a mescla dos objetivos de compreensão cósmica, como ordem física, com a preocupação em atingir os princípios de bom comportamen-to social, como ordem ética que fundamentam e governam a organização do uni-verso. Tanto é assim que não se pode separar com exatidão a fé e a razão, o co-nhecimento e a cultura, a moral e a ética.

Academicamente, vemos a ética como uma característica inerente a toda ação humana e, por esta razão, torna-se um elemento vital na produção da rea-lidade social. Todo homem possui um senso ético, uma espécie de “consciência moral”, estando constantemente avaliando e julgando suas ações para saber se são boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas. A esse tipo de consciên-cia os moralistas (especialistas em Teologia Moral) dão o nome de “reta razão”.

É inegável afirmar que existem sempre comportamentos humanos classifi-cáveis sob a ótica do certo e errado, do bem e do mal. Embora relacionadas com o agir individual, essas classificações sempre têm relação com as matrizes cultu-rais e psicossociais que prevalecem em determinadas sociedades e contextos his-tóricos. Há sempre uma possibilidade de se avaliar uma conduta entre boa e má. A ética está relacionada à opção, ao desejo de realizar a vida, mantendo com os outros, relações justas e aceitáveis. Via-de-regra está fundamentada nas idéias de agathón (bem) e aretê (virtude), enquanto valores perseguidos por todo ser humano e cujo alcance se traduz numa existência plena e feliz.

O estudo da ética, pelo menos no lado do Ocidente, talvez tenha se inicia-do com os filósofos gregos há cerca de 25 séculos atrás. Nos nossos dias, seu campo de atuação perpassa os limites da filosofia, a ponto de tornar-se uma a-bordagem multidisciplinar, uma vez que inúmeros outros pesquisadores do co-nhecimento dedicam-se ao seu estudo. Teólogos, sociólogos, psicólogos, biólogos e muitos profissionais de outras áreas desenvolvem trabalhos no campo da ética.

2. Ética como bom comportamento

A palavra Ética, como se sabe, é originária do grego ethos (modo de ser, caráter de alguma coisa) que nos chega ao latim mos, ou no plural mores (costumes), de onde se derivou a palavra moral. Na filosofia, ética significa o que é bom para o indivíduo e para a sociedade, e seu estuda contribui para estabele-cer a natureza de deveres do indivíduo em relação aos demais (sociedade). Em decorrência desses juízos chega-se ao verbete ethikos, que se refere a uma maneira correta de agir, proveniente da junção de ethos (ética) com ikós (sufixo de pertença). Mesmo assim, há que se observar que os critérios da ética filosófica são mutáveis. O que é considerado ético em um tipo de sociedade pode não sê-lo em outro.

Há também que observarmos os aspectos temporais. O que é ético hoje pode deixar de sê-lo amanhã. E vice-versa. Em geral, apenas no terreno religioso a ética – e conseqüentemente a moral – são valores mais ou menos estáveis. A ética varia no tempo e no lugar.

Na Grécia, mesmo antes das idéias de Aristóteles, já era possível identifi-car traços de uma abordagem com base filosófica para os problemas morais e até entre os filósofos conhecidos como pré-socráticos encontramos reflexões de caráter ético, quando buscavam entender as razões do comportamento huma-no. A areté-virtude seria o conhecimento das causas e dos fins das ações funda-das em valores morais identificados pela inteligência e que impelem o homem a agir virtuosamente em direção ao bem.

De outro lado, define-se Moral como um conjunto de normas, preceitos e, sobretudo, princípios e valores que norteiam o comportamento do indivíduo em seu grupo social. O comportamento é definido como o conjunto de reações de um sistema dinâmico em face às interações e realimentações propiciadas pelo meio onde está inserto. Moral e ética não devem ser confundidos. Enquanto a moral é normativa, a ética é teórica, e buscando explicar e justificar os costumes de uma determinada sociedade, bem como fornecer subsídios para a solução de seus dilemas mais comuns.

As normas de que estamos falando têm relação como o que chamamos de valores morais. São os meios pelos quais os valores morais de um grupo social são manifestos e acabam adquirindo um caráter normativo e obrigatório. A pala-vra moral, como vimos, deriva do que chamamos “costumes”, no sentido de con-junto de normas ou regras adquiridas por hábito. Notar que a expressão “bons costumes” é usada como sendo sinônimo de moral ou moralidade.

A ética também não deve ser confundida com a lei, embora com certa freqüencia a lei tenha como base princípios éticos. Ao contrário do que ocorre com a lei, nenhum indivíduo pode ser compelido, pelo Estado ou por outros indivíduos, a cumprir as normas éticas, nem sofrer qualquer sanção pela desobediência a estas; por outro lado, a lei pode ser omissa quanto a questões abrangidas no escopo da ética. Sendo a ética eminentemente subjetiva, não há na lei um poder de coerção capaz de obrigar os indivíduos a serem éticos.

Como doutrina filosófica, a ética precisa ser vista como uma abordagem essencialmente especulativa e, a não ser quanto ao seu método analítico, jamais será normativa, característica esta, exclusiva do seu objeto de estudo, a moral. Portanto, a ética mostra o que era moralmente aceito na Grécia Antiga possibilitando uma comparação com o que é moralmente aceito hoje no resto do mundo, indicando através dessa comparação, mudanças no comportamento humano nas regras sociais e suas conseqüências, podendo daí, detectar problemas e/ou indicar caminhos. Além de tudo ser ético é fazer algo que te beneficie e, no mínimo, não prejudique o “outro”.

Em muitos casos, ética é saber escolher entre um bem maior e um bem menor (ou entre “o bem” e o “mal”), levando em conta o interesse da maioria da sociedade. Ao contrário da moral, que delimita o que é bom e o que é ruim no comportamento dos indivíduos para uma convivência civilizada, a ética é o indicativo do que é mais justo ou menos injusto diante de possíveis escolhas que afetam terceiros .

Há algum tempo atrás fui a um evento, onde escutei do conferencista uma alocução que chamou minha atenção, pelo puxão de orelhas ético que endereçou a cada um de nós, humanidade do século XXI: O ser humano ajoelha-se diante da natureza e reconhece a sua culpa pelo aquecimento global.

De acordo com a exposição do professor João Almino , uma súmula da história da degradação ambiental teria de basicamente apoiar-se sobre dois momentos da aceleração da história, o primeiro dos quais foi a revolução neolíti-ca, que correspondeu ao desenvolvimento da agricultura, da tecelagem e da ce-râmica, à domesticação de animais e à sedentarização humana. 0 segundo grande marco foi a revolução industrial. Dela emergiram as bases da degradação ambiental - revolução que significou a fusão da ciência com a técnica, pela men-talidade dominante no tipo de sociedade inaugurada com o capitalismo, e de forma mais ampla, por determinada visão de progresso e natureza que se vinha pouco a pouco firmando na modernidade, ou seja, desde o Renascimento.

A ética pode ser interpretada como um termo genérico que designa aquilo que é freqüentemente descrito como a “ciència da moralidade”, seu significado derivado do grego, quer dizer “morada da alma”, isto é, suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.

Na filosofia, o comportamento ético é aquele que é considerado bom, e, sobre a bondade, os antigos diziam que: o que é bom para a leoa, não pode ser bom à gazela. E, o que é bom à gazela, fatalmente não será bom à leoa. Este é um dilema ético típico. Por comportamento entendemos procedimento de alguém face a estímulos sociais ou a sentimentos e necessidades íntimos ou uma com-binação de ambos.

Os psicólogos behavioristas se preocuparam em compreender como apare-cem e se mantêm as diferentes formas de comportamento: as interações, as mu-danças ou as condições que prevalecem sobre a conduta. Assim mesmo, aplicam estes princípios em casos práticos (de psicologia clínica, social, educativa ou in-dustrial), impulsionando o desenvolvimento das terapias de modificação de com-portamento.

Portanto, a investigação filosófica, e suas devidas subjetividades, ao lado da metafísica e da lógica, não pode ser descrita de forma simplista. Desta forma, o objetivo de uma teoria da ética é determinar o que é bom, tanto para o indivíduo como para a sociedade como um todo. Os filósofos antigos adotaram diversas posições na definição do que é bom, sobre como lidar com as prioridades em conflito dos indivíduos versus o todo, sobre a universalidade dos princípios éticos versus a “ética de situação”. Nesta o que está certo depende das circunstâncias e não de uma qualquer lei geral. E sobre se a bondade é determinada pelos resultados da ação, meios pelos quais os resultados são alcançados.

O homem vive em sociedade, convive com outros homens e, portanto, cabe-lhe pensar e responder à seguinte pergunta: “Como devo agir perante os outros?”. Trata-se de uma pergunta fácil de ser formulada, mas difícil de ser respondida. Ora, esta é a questão central da Moral e da Ética. Enfim, a ética é julgamento do caráter moral de uma determinada pessoa, grupo ou sociedade como um todo.

3. Ética como respeito e misericórdia

A cultura ocidental sofreu duas influências poderosas. Primeiro foi a filo-sofia dos gregos, e depois a religião dos judeus, que através do cristianismo, a-judou a fundar o que chamamos de civilização judaico-cristã. Enquanto a ética de comportamento dos gregos se instaura a partir do século V a.C., a ética da misericórdia dos judeus é encontrada a partir do século XII a.C.

A cultura hebraica forma uma base para a nossa civilização ocidental, que proclama o império do bem, da justiça, da moral e da ética. A lei judaica, estatu-ída na Torá, os cinco livros básicos, Gênesis (bereshit), Êxodo (shemôt), Levítico (waiqrá), Números (bamidbar) e Deuteronômio (debarim), está repleta de gnomas morais, capazes de inculcar no povo uma conduta ética de urbanidade e solida-riedade. Além da Torá, encontramos vários preceitos morais em outros livros, como nos proféticos (nebiim) e nos sapienciais (ketuwim).

A grande tônica da cultura judaica é a hesêd, que se pode traduzir por atos de misericórdia, solidariedade, cuidados. A hesêd tanto é devida às pessoas como também à natureza, pois tudo é criação de Deus. Nessas águas também surge a sedāqāh que é uma forma de justiça, humana, social, coletiva e em favor da ecologia. Tudo é fruto da mišpat, o direito, os mandamentos, a lei divina. Nesse conjunto surge a coerência, a verdade, êmmet, como fruto de toda a ética que Deus prescreveu aos homens, quando estabeleceu a sua bêrit, a aliança do Sinai.

Além desses termos, ainda vamos encontrar dachei shalom (caminhos da paz) e kidush Hashem (santificar o nome de Deus). Nos livros Gn 12, Ex 2,3 cap. 20 vv 2-6, Lv 18, 6-22 e outros da Torá (Pentateuco) percebe-se que eles são, de certa forma, parâmetros ético-morais que ainda vigem em nossa sociedade.

A Torá, como conjunto da lei, é apreciada com tantos e incontáveis exem-plos de ética social a partir do religioso, dando uma visão de qual caminho o ju-deu deve seguir e de como deve agir durante os anos de sua vida: ser o espelho de Deus aos olhos do mundo. Nesse aspecto, ser religioso significa ser uma pes-soa que privilegia a ética em uma prática de atos justos e bons. Um judeu sem ética, dizem seus manuais humanistas, não é considerado observante nem reli-gioso, e apesar de cumprir as exigências das leis do judaísmo entre o homem e Deus, enquanto permanecer não-ético não chegará a entender que seu Criador rejeita os indivíduos que agem de forma imoral.

Um princípio básico da mensagem moral transmitida por Deus ao povo ju-deu é de que somos responsáveis uns pelos outros. Na ética judaica, afirmam seus maiores expoentes, é proibida a indiferença aos sofrimentos dos outros. Lemos no Livro do Levítico que “não desconsideres o sangue do teu próximo” (19,16). Para a ética judaica, a pobreza não é um problema apenas dos pobres, mas de todos. Em seus escritos, o rabino Leibowitz observa que os profetas dizem: “Não haverá pobres entre vós”. Não estão dizendo o que irá acontecer, mas o que deveria acontecer. Sua voz não é de oráculo, senão de exigência moral. Pa-ra que não haja pobres, a sociedade deve tomar algumas medidas. Diante da-queles que, na América Latina, atribuem a pobreza dos pobres a eles mesmos, o judaísmo se revolta porque considera tal atitude uma injustiça.

Esta mensagem foi recentemente incorporada à Carta dos Direitos Huma-nos da ONU. Entre estes, foram incluídos os direitos básicos do homem a não ser pobre, à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia entre ou-tros. A partir de agora estes são direitos essenciais do ser humano, embora pro-clamados há milênios pela ética judaica. O Rabino Abraham Heschel diz que a-judar é simplesmente “o modo de viver correto”. O prêmio está em viver-se desta forma. A força destes conceitos no judaísmo, seu contínuo ensinamento no âm-bito familiar e na escola judaica assentaram as bases para grandes resultados em matéria de trabalho voluntário.

Os países estão tentando dar forças ao voluntariado e vêem com crescente interesse os bons resultados. Nas sociedades latino-americanas, entre outras, adota-se com freqüência políticas que sabidamente irão significar grande sofri-mento para a população, com o argumento de que “o fim justifica os meios” e que são necessários para que haja maior crescimento econômico. A ética judaica não aceita tal raciocínio. Na Torá pode-se ler textualmente que “o fim não santi-fica os meios”. Refletindo sobre esta diferença, o grande cientista Albert Einstein perguntava “Quem havia sido o melhor condutor dos homens, Maquiavel (autor original do princípio de que o fim justifica os meios) ou Moisés? Quem teria dú-vidas sobre a resposta?”.

A partir da ética judaica centrada na misericórdia, na atenção ao outro e da solidariedade instaurou-se no mundo a moral cristã, que nada mais é que o seguimento a alguns preceitos universais, a partir dos seis dias da Criação, quando Deus antes de recomendar ao homem que dominasse a terra e zelasse por ela (cf. Gn 2,15), “viu que tudo era muito bom” (cf. Gn 1,31). Dali para a frente a maioria dos textos enfoca o cuidado, a misericórdia e a atenção. São i-números e ricos os textos das Sagradas Escrituras contra a opressão, a ganân-cia e a exclusão dos mais fracos. Em todos há advertências em favor da ética da misericórdia.

A terra não poderá ser vendida para sempre, porque ela me pertence e vocês são para mim hóspedes e posseiros (Lv 25,23).

A cada dez anos (no ano do jubileu) o comprador liberará a propriedade para que esta volte ao seu próprio dono (Lv 25,28).

Não façam acepção de pessoas; no julgamento escutem de maneira igual o gran-de e o pequeno (Dt 1,17).

Não roube (Dt 5,19).

Não deseje para você a casa de seu próximo, nem o campo, nem o escravo, nem o boi, nem o jumento nem coisa alguma que lhe pertença (Dt 5,21).

O Senhor faz justiça ao órfão e à viúva e ama o migrante, dando-lhes pão e roupa (Dt 10,18).

Não explore um assalariado pobre e necessitado. Pague-lhe o salário justo, por-que ele é pobre e sua vida depende disto (Dt 24, 14-15).

Há quem dá generosamente, e sua riqueza aumenta ainda mais. Há quem acu-mula injustamente, e acaba na miséria (Pv 11,24).

Não desloque a divisa da terra, nem invada o campo dos fracos. O defensor dele é Forte e defenderá a causa deles contra você (Pv 23,10)

Morte e abismo são fossas sem fundo. Da mesma forma a ambição humana (Pv 27,20).

Meu filho, não recuse ajudar o pobre e não seja insensível ao olhar dos necessi-tados. Não faça sofrer aquele que tem fome nem piore a situação de quem está em dificuldade. Não perturbe mais ainda quem está desesperado, e não se negue a dar alguma coisa ao carente. Não desvie o olhar daquele que lhe pede alguma coisa, e não dê ocasião para que ele o amaldiçoe com amargura, pois aquele que o criou atenderá ao pedido dele (Eclo 4, 1-6).

Quem semeia nos sulcos da injustiça colherá desgraças sete vezes mais (Eclo 7,3).

Quem ama o ouro não se conserva justo, e quem corre atrás do lucro com ele pe-recerá (Eclo 31,5).

No sétimo ano a terra deve descansar. Você não semeará o campo nem podará a vinha. Será um ano de descanso da terra (Lv 25,4).

Quando estiveres ceifando e esqueceres atrás um feixe, não voltes para apanhá-lo. Deixe-o para o migrante, o órfão e a viúva (Dt 24,19).

Eis que coloco a tua frente dois caminhos: o bem e o mal. Escolhe o bem e vive-rás (Dt 30,19).

Ao encerrar este tópico, valemo-nos de um fragmento de São Paulo, tirado de uma de suas cartas (ao povo de Corinto) que nos adverte quanto à ética da mise-ricórdia e ao desvelo aos carentes:

Vocês que são ricos na fé, na palavra e na ciência, tornem-se também ricos na generosidade. Vocês conhecem a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por todos, a fim de enriquecê-los com sua pobreza. Pois não se trata de aliviar os outros à custa da pobreza de vocês, mas que, com eqüidade, a fartura de vocês supra a carência dos outros, para eles, por sua vez, aliviarem a penúria de vocês, pois está escrito: “Nem quem muito recolheu, tinha em abun-dância, nem quem pouco recolheu, sentiu falta” (cf. 2Cor 8,7-15).

4. Algumas deturpações ocorrentes

O grande moralista espanhol Pe. Marciano Vidal fala depreciativamente em “moral de situação” , que nada mais é do que um casuísmo, do tipo “cada caso é um caso”. Isto ocorre em várias atividades, e mais notadamente na chamada “ética profissional”. Muitos autores definem a ética profissional como sendo um conjunto de normas de conduta que deverão ser postas em prática no exercício de qualquer profissão. Seria a ação “reguladora” da ética agindo no desempenho das profissões, fazendo com que o profissional respeite seu semelhante quando no exercício da sua profissão.

Até hoje existem diferentes tipos de morais, como as “morais de classe”, e inclusive numa mesma sociedade podem coexistir várias morais, já que cada classe assume uma moral particular. Nesse fenômeno situa-se a “ética profissio-nal” e a deontologia, que nada mais é que um conjunto de deveres profissionais de qualquer categoria profissional minuciados em códigos específicos.

Desta forma, a ética profissional estudaria e regularia o relacionamento do profissional com sua clientela, visando a dignidade humana e a construção do bem-estar no contexto sócio-cultural onde exerce sua profissão. Ela atinge todas as profissões e quando falamos de ética profissional estamos nos referindo ao caráter normativo e até jurídico que regulamenta determinada profissão a partir de estatutos e códigos específicos. Assim temos a ética médica, do advogado, do biólogo, etc.

No entando acontece que, em geral, as profissões apresentam a ética fir-mada em questões demasiadamente estáticas que ultrapassam o campo profis-sional em si. Questões como o aborto, pena de morte, seqüestros, eutanásia, AIDS, por exemplo, são questões morais que se apresentam como problemas éti-cos - porque pedem uma reflexão profunda - e, um profissional, ao se debruçar sobre elas, não o faz apenas como tal, mas como um pensador, um “filósofo da ciência”, transcendendo muitas vezes sua formação e capacidade. Desta forma, a reflexão ética entra indevidamente, em muitos casos,na avaliação moral de qual-quer atividade profissional humana. Nesse contexto, vemos que algumas normas que hoje são defendidas com unhas e dentes, no passado receberam críticas e invectivas.

A moral humana, portanto, como a ética, está limitada a padrões socioculturais, através dos tempos. A ética, como ciência da moral, não pode concebê-la como permanente, mas tem que considerá-la como um aspecto mutável da realidade humana. Assim como vimos existir desvios quanto à ética humana, também po-demos encontrar falsas concepções acerca da moral. Hoje há muitas concepções, distorcidas, de moral com graves desvios e aplicações injustas, como a) moral de atitudes; b) moral de situação; c) a moral aberta. Em todas, se observa o típico ca-so da “consciência elástica”. O grande erro, nesse caso, é considerar as normas morais como obstáculo à liberdade e felicidade do homem. O ser humano deve buscar ser feliz por causa da moral, e não apesar dela... No Brasil, de tanto em tanto, quando a cobrança de providências moralizadoras é muito grande, o go-verno aumenta a verba de propaganda institucional, para atenuar a pressão das grandes redes de tevê. Dou como exemplo duas campanhas mais ou menos recentes, da Rede Globo: a primeira, contra a “prostituição infantil” e a segunda “contra o turismo sexual” feito por algumas agências de viagem no exterior. Pura hipocrisia!

É muito interessante esta variedade de atitudes morais no tempo. Nietzs-che faz uma colocação muito interessante sobre a interminável sucessão das doutrinas éticas, quando diz que “aquilo que numa época parece mau, é quase sempre um restolho daquilo que na precedente era considerado bom - o atavis-mo de um ideal já envelhecido”.

O cultivo da ética é ainda indispensável ao profissional, porque na ação humana o fazer e o agir estão interligados. O fazer diz respeito à competência, à eficiência que todo profissional deve possuir para exercer bem a sua profissão. O agir se refere à conduta do profissional, ao conjunto de atitudes que deve assu-mir no correto desempenho de sua profissão. A ética profissional, em alguns casos, atua como um escudo que serve para defender um determinado grupo. Quando é hora de dizer a verdade ou de denunciar algo mal-feito ou um ilícito, escuta-se a resposta: “Não posso! A ética profissional me proíbe de fazê-lo”.

Modernamente, a maioria das profissões têm o seu próprio código de ética profissional, que é um conjunto de normas de cumprimento obrigatório, derivadas da ética, frequentemente incorporados à lei pública. Nesses casos, os princípios éticos passam a ter força de lei; note-se que, mesmo nos casos em que esses códigos não estão incorporados à lei, seu estudo tem alta probabilidade de exercer influência, por exemplo, em julgamentos nos quais se discutam fatos relativos à conduta profissional. Ademais, o seu não cumprimento pode resultar em sanções executadas pela sociedade profissional, como censura pública e suspensão temporária ou definitiva do direito de exercer a profissão.

Quando os valores e costumes estabelecidos numa determinada sociedade são bem aceitos, não há muita necessidade de reflexão sobre eles. Mas, quando surgem questionamentos sobre a validade de certos costumes ou valores conso-lidados pela prática, surge a necessidade de fundamentá-los teoricamente, ou, para os que discordam deles, criticá-los. Hoje em dia, a “ética profissional” vem sendo criticada pela sociedade, que vê nela um mero exercício de corporativismo.

A este comportamento prático-moral, que já se encontra nas formas mais primiti-vas de comunidade, sucede posteriormente - muitos milênios depois - a reflexão sobre ele. Os homens não só agem moralmente (isto é enfrentam determinados problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decisões e estes atos), mas também refletem sobre esse comportamento prático e o tomam como objeto da sua reflexão e de seu pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o da teoria moral; ou, em outras pa-lavras, da moral efetiva, vivida, para a moral reflexa. Quando se verifica esta pas-sagem, que coincide com os inícios do pensamento filosófico, já estamos propri-amente na esfera dos problemas teóricos, morais ou éticos .

Enquanto alguns críticos, referindo-se à ética geral e formal, classificam-na como “um acordo entre canalhas”, de outro lado uma boa parcela da sociedade enxerga a ética profissional como um ato de corporativismo, onde cada um protege o seu grupo, seus pares, seus colegas. Nessa práxis, acima dos ditames universais da ética geral, situa-se uma ponderável distorção, onde a ética não é um bom comportamento em favor de todos, mas um mero guarda-chuva que protege um determinado grupo.

A chamada “ética (ou moral) de situação” surge também quando se dá a cada caso um julgamento, do tipo “cada caso é um caso”. Como exemplo vemos o político que cria leis rígidas em termos de probidade e que ele sabe que nunca serão cumpridas, muito menos por ele. Esta é outra das gritantes distorções que se observa no trato da ética. Especialmente no Brasil. É o que se chama de “moral elástica”, “de situação”, ou ainda, mais depreciativamente, usando a linguagem popular, uma “moral de cuecas”.

5. Uma ética em crise

Diante dos dilemas da vida, temos a tendência de conduzir nossas ações de forma quase que instintiva, automática, fazendo uso de alguma “fórmula” ou “receita de bolo”, presente em nosso meio social, de normas que julgamos mais adequadas de serem cumpridas, por terem sido aceitas intimamente e reconhe-cidas como válidas e obrigatórias. Fazemos uso de normas, praticamos determi-nados atos e, muitas vezes, nos servimos de certos argumentos para tomar deci-sões, justificar nossas ações e nos sentirmos dentro da normalidade. Tais nor-mas, em geral adaptadas aos nossos interesses, criam um descompasso, geran-do uma ética distorcida, privada. É o que se chama de “crise da ética”.

Se formos olhar a situação social de hoje em dia, com todos os sobressal-tos que os meios de comunicação despejam em nós, a gente chega a se pergun-tar: Até quando? Onde vamos parar? Quando isto vai ter fim? O que fazer para mudar este quadro? Depois de tantas questões chegamos à conclusão que as coisas vão mal, muito mal, e que estamos imersos numa crise de ética sem pre-cedentes, que atinge todos os setores da vida humana, onde a verdade e o direito são atropelados em nome do lucro, da suplantação e do sucesso a qualquer cus-to.

As realidades humanas sempre foram um misto de verdade e mentira, ética e far-sa. A história humana é narrada pela ótica dos fortes, dos vencedores. Há fome em todos os quadrantes do mundo. Quando a grita geral se eleva muito, que fa-zem os países ditos desenvolvidos ? Mandam copinhos de água mineral, frascos de medicamentos vencidos, garrafas de soro glicosado. E esses paliativos resol-vem ? Deviam os poderosos diminuir os juros, fazer cessar as pressões econômi-cas e os boicotes, perdoar as perversas “dívidas e(x)ternas”, etc. Em viagem à Ar-gentina, um hermano me pergunta: “¿Pero chê, que se pasa? ¿Como puedem us-tedes hablar de hambre, 33 millones de hambrientos, si su gobierno aviza una co-secha record de granos ?” . E a gente tem que dar uma volta para explicar aos estrangeiros como é que o Brasil é exportador, tem safras recordes e, no entanto, a maioria passa fome. Infelizmente tem-se que dizer que tudo não passa de uma farsa, de relatórios como aqueles feitos para engambelar o FMI e seduzir os ban-cos credores, desde o tempo do “milagre brasileiro”. Olhada assim, à primeira vis-ta, parece que a safra recorde vai acabar com a fome. Entretanto, atrás das letras frias e mentirosas está a verdade que precisa ser dita. A safra recorde de grãos, não é de feijão, arroz, trigo e milho, mas de soja, que vai ser exportada para co-brir os déficits da pantagruélica máquina estatal, e vai engordar o gado dos paí-ses ricos, e servir de miolo para rações de cães.

Se as super-safras fossem de feijão, arroz, trigo, frutas, milho e mandioca, aí sim, o combate à fome estaria sendo tratado com seriedade. Mas isso não serve de moeda internacional... Além disso, os poucos resíduos alimentares que ficam aqui, são irresponsavelmente estoca-dos, tornados indisponíveis, apodrecendo em pouco tempo, enquanto tantos pas-sam fome. Isso é um crime! Ao revés, apesar de largas extensões de terras, fér-teis porém ociosas, o Brasil importa trigo, milho, feijão e arroz. Tudo para facilitar o mercado globalizado com outros países. É ou não uma grande mentira, todo es-se artifício de notícias oficiais, há mais de dez anos a respeito de super-safras?

Sobre esta distorção de adotar uma monocultura, conheci um colono em Ibirubá, RS que no boom da soja passou o trator em um hectare de roseiras e outro tanto de feijão para plantar aquela oleaginosa. hoje, pelo que sei, ele per-deu a riqueza do produto e o perfume das flores. Portanto, as pessoas lúcidas quando escutam falar em super-safras olham-se umas para as outras e riem de mais essa falácia oficial.

Em muitos lugares, grupos religiosos, movimentos sociais, setores autô-nomos, entidades classistas e organizações não-governamentais, têm levantado a voz, com a preocupação com a instauração de um estado ético, para contra-por-se a toda uma desordem moral que parece ser a tônica desse final de século. No entanto, tais tentativas não encontram espaços na mídia (nitidamente capita-lista e pragmática) nem na maioria dos partidos políticos (positivamente elitis-tas).

A minha geração se acostumou a entender a palavra ética como um bem absoluto. Hoje isto mudou. A crise na ética fez com que se enxergue cada grupo com sua ética privada, às vezes divergente da de outros grupos. Falava-se em ética profissional como um dogma. O código de ética, dos médicos, advogados, contadores e demais profissionais nos levava a imaginar pessoas entregando-se ao sacrifício de suas vidas, para não trair a ética de sua classe e o juramento de sua profissão. Hoje não é bem assim. O próprio direito reduz a moral a um “mí-nimo ético”; ou seja, indispensável.

Há tempos escutei, num pronunciamento, intramuros, um político nordes-tino afirmar que o princípio ético que movia sua atuação era: “é feio perder”. Mesmo que, para obter esse sucesso, arranhe-se ou enterre-se os mais elemen-tares princípios da ética e da moral.

Parece desnecessário dizer que, toda a crise sociopolítica do Brasil tem sua gêne-se a partir de uma enorme crise de ética. Por causa de um comportamento moral conflituoso, com tendências individualistas, surgem conseqüências incontrolá-veis, que, aliadas à impunidade, fazem eclodir nos mais estratégicos setores da nação, um caos sem precedentes. Todo o problema moral, social e político do Brasil nasce a partir de uma quase total falta de ética .

O sistema rural brasileiro, seja pecuária ou agricultura, está a requerer uma revisão urgente quanto a formas de atuar, alternativas, perspectivas e des-tinos. Sua estrutura é arcaica, viciada, tendente à monocultura meramente extrativista. Somos um continente rico em recursos agrários, habitado por multidões anêmicas. E o pior de tudo é que o caminhar atual não está indo em busca de soluções reais: as diferenças crescem .

Para caracterizar essa situação, é bom ter em mente a crise de ética e de identidade que deturpa a realidade brasileira. Há equívocos lamentáveis e trans-gressões odiosas enlameando nossa vida social, política e econômica, onde se vê,

a) agricultores sem terra e extensas áreas despovoadas ou

sub-povoadas;

b) país rico e a maioria do povo pobre ou indigente;

c) país produtor e exportador de alimentos onde há fome.

O dualismo social (escravos e elites), vigente desde a colonização e cujos remanescentes ainda se encontram presentes, remete o país hoje a práticas a-grárias primitivas (não há interesse em modernizar o meio rural), exclusivistas (latifúndio, terras em mãos de poucos) e setoriais (política coronelista e clienteLista).

O modelo econômico adotado para a política rural no Brasil é egoísta, pois enri-quece a poucos e onera multidões, uma vez que encarece a produção, diminui a oferta de comida, ocasionando o esgotamento da terra, botando abaixo os índices de produtividade. Os grandes plantadores não ligam para as necessidades do pa-ís e da população. Se a adoção de monoculturas, como a da soja ou das florestas de pinus, por exemplo, der lucro, a carência de alimentos que se lixe. Esse mode-lo de agricultura predadora é o mesmo que desmata, extingue, polui e envenena .

De um lado, as elites, historicamente, da invasão até nossos dias, é com-posta por portugueses, espanhóis, funcionários da coroa, barões rurais, empre-sários, militares (patentes superiores), donos de multinacionais, profissionais liberais e intelectuais. Os escravos, no Brasil se iniciaram com os índios, pas-sando pelos negros e pelos mestiços e foram desembocar no homem de hoje (as-salariados, desempregados, subempregados, sem-terra, sem-teto, professores, militares (praças de graduação baixa) e todo um lumpen proletariat.

Os sistemas políticos brasileiros sempre tentaram dizer que a pobreza é um mal necessário, que o ser é pobre porque é vagabundo e merece sua miséria, mas que existem alguns benfeitores (o governo, os partidos políticos, as sociedades secretas, clu-bes de serviço, entidades filantrópicas etc.) e que, apesar de pobre, a pessoa de-ve orgulhar-se de sua pobreza, primeiro porque há muita gente se interessando por ele (só não dizem que nunca vão resolver nada) e que é uma honra servir ao senhorio, ao doutor, ao político. É a prática da odiosa “moral do escravo” preco-nizada por Nietzsche.

6. A partir da ética cristã, um compromisso

Os filósofos cristãos tiveram uma dupla atitude diante da ética. Absorve-ram o ético no religioso, edificando um tipo de ética que hoje chamamos de teô-noma, que fundamenta em Deus os princípios da moral. Deus, criador do mundo e do homem, é concebido como um ser pessoal, bom, onisciente e todo-poderoso. O homem, como criatura de Deus, tem seu fim último Nele, que é o seu bem mais alto e valor supremo. Deus exige a sua obediência e a sujeição a seus mandamentos, que neste mundo têm o caráter de imperativos supremos. O saudoso papa João XXIII advertiu que o progresso humano deve ser harmônico e integrado:

Produzir mais e melhor corresponde a uma exigência da razão, e é também necessidade imprescindível. Não é porém menos necessário, nem menos conforme à justiça, repartir-se eqüitativamente a riqueza produzida, entre todos os membros da comunidade. Por isso é de se procurar que o desenvolvimento econômico e o progresso social avancem num mesmo ritmo .

A fé cristã pressupõe sempre um compromisso ético, moral, social e políti-co com o ser humano, em todos os níveis e camadas. A moral pode então ser en-tendida como o conjunto das práticas cristalizadas pelos costumes e convenções histórico-sociais. Cada sociedade tem sido caracterizada por seus conjuntos de normas, valores e regras. São as prescrições e proibições do tipo “não matarás”, “não roubarás”, de cumprimento obrigatório. Muitas vezes essas práticas são até mesmo incompatíveis com os avanços e conhecimentos das ciências naturais e sociais. A moral tem um forte caráter social, estando apoiada na tríade cultura, história e natureza humana. É algo adquirido como herança e preservado pela comunidade.

A ética cristã é uma ética subordinada à religião num contexto em que a filosofia é ancila (serva) da teologia. Temos então uma ética limitada por parâme-tros religiosos e dogmáticos. Trata-se de uma ética que tende a orientar o com-portamento humano com vistas a um outro mundo (o Reino de Deus), colocando o seu fim ou valor supremo fora do homem, na Divindade. Igual ao judaísmo, que já foi visto linhas atrás, o cristianismo tem um compromisso solidário com a alteridade, como exigência ética. Com essa preocupação, as igrejas cristãs bata-lham em favor dos problemas da terra, como espaço, distribuição, qualidade e destinação social.

A terra, em si, não é um capital; é uma riqueza natural. À luz da

fé vêmo-la como um dom gratuito de Deus, um dom dado a todos

para viver .

Ainda no campo filosófico, vemos que, em sua gênese, a ética cristã tam-bém absorve muito do que Platão e Aristóteles desenvolveram. Pode-se até dizer que seus dois maiores filósofos, Santo Agostinho († 430) e São Tomás de Aquino († 1274) refletem em seus escritos e sermões muitas das idéias de Platão e Aristóteles. A essa tendência, que começa em Plotino († 270 d.C.) foi dado o nome de neoplatonismo. A purificação da alma, em Platão, e sua ascensão libertadora até elevar-se ao topôs noetós (mundo das idéias) tem sua correspondência na eleva-ção ascética até Deus exposta por Santo Agostinho.

A ética de Tomás de Aquino tem muitos pontos de coincidência com Aristóteles e como aquela busca através de contemplação e de conhecimento alcan-çar o fim último, que para ele era Deus. A partir daí muitos textos, discursos e sermões foram elaborados visando uma ética, como um bom comportamento de pessoas que querem construir uma sociedade justa e sem desigualdades, onde o direito de cada um seja defendido com eqüidade, fiel ao que preconizou o profeta Isaías, seis séculos antes de Cristo:

A paz será fruto da justiça (Is 32,17).

Em 1996, há, portanto doze anos, consciente de que a exclusão denunciada não regredia, mas, pelo contrário, se acentuava mais ainda (...), a CNBB voltou ao as-sunto, repetindo o profeta Isaías, ao dizer que “Justiça e paz se abraçarão”. A cartilha e a pregação voltavam-se para a volta da ética na política, único disposi-tivo capaz de levar paz à sociedade .

Enquanto tivermos uma política setorial, clientelista, por bancadas, perfi-lada a interesses de grupos e cega aos clamores de quem os elegeu, sempre te-remos episódios lamentáveis, de corrupção, rapina e indignidade, como os que os noticiários nos mostram todos os dias.

O sonho de justiça e paz se abraçando não deve ser vista como uma utopi-a. Pode acontecer, sim! Mas só teremos a felicidade de ver essa transformação, no dia em que a classe política, devidamente habilitada pelo voto consciente e discernido do eleitorado, cumprir de forma ética, efetiva e exclusiva, seu papel de zeladora do bem comum e dos bens sociais do povo e da nação.

Hoje, todos no Brasil reclamam da violência, dizendo que não se pode mais viver em paz. Ora, se “a justiça produz a paz”, como ensina o profeta, e se cons-tatamos uma quase total ausência de paz, isso sintomaticamente nos remete à conclusão de que não temos paz porque não temos justiça. Só quem postula e pratica a verdadeira ética é capaz de tornar-se um semeador da justiça e, por conseguinte da paz. Fora disso, sempre teremos discursos, demagogia, adia-mentos e o indefectível agravamento da crise social.

O problema da terra no Brasil, não escapa da influência da nova moral po-lítica, em que o discurso não acompanha as práticas, e em que os interesses e-conômicos criam rótulos e axiomas capazes de lhes permitir um trânsito, livre e superveniente em todas as circunstâncias. Tão nefasto quanto os interesses e-conômicos é a desinformação da sociedade, que apenas vê aquilo que os meios de comunicação, geralmente comprometidos com esquemas escabrosos, querem que seja visto.

Pior mesmo que as duas distorções anteriores é a falta de solidariedade de alguns cristãos, que mesmo perfilados a movimentos e associações pastorais, ainda não se deram conta de que, no fundo, tudo se trata de uma questão de solidariedade humana, de caridade cristã e de discernimento social.

A América Latina e igualmente o Brasil, possui uma das maiores extensões de terra agriculturáveis do planeta. No entanto, é um cenário onde se travam cruéis batalhas por um pedaço de terra para viver, para plantar, para manter dignamente a família.

Nosso país é um dos que menos respeita o sagrado direito que o homem tem ao trabalho e á sua terra. É fácil encontrar-se imensas glebas de terra, desaprovei-tadas e ociosas, propositadamente abandonadas. E ali perto, muitas vezes, pes-soas, famílias, trabalhadores, não têm o direito de possuir, e muito menos de ex-plorar, um pedaço de terra para proveito próprio. Some-se a isto o fato de gran-des glebas utilizadas por monoculturas, oleaginosas, celulose, sem preocupação, nem com a expulsão do pequeno agricultor (a agricultura familiar) nem a produ-ção de alimentos .

A questão fundiária em nosso país ainda não obteve um trânsito mais ou menos livre na mesa do debate social. Ela é uma questão séria e que exige refle-xões maduras e providências eficazes. O que mais sucede é observar-se pessoas que mantêm posições contrárias e negadoras, por simples “ouvir dizer”, tomando partido contrário sem o necessário conhecimento real do problema. Em geral es-sa formação inadequada da chamada “opinião pública”, é feita por uma visão tendenciosa e distorcida passada pelos meios de comunicação, alguns deles subservientes ao sistema mantenedor e coonestador das elites.

Com isso a sociedade passa a desenvolver preconceitos. Infelizmente so-mos ainda muito fiéis a rótulos. O preconceito, em geral, é uma atitude constan-te que antecipa julgamentos, do tipo “não sei, mas sou contra...”.

O país vem sendo abalado por uma série de convulsões envolvendo questões de terra. O problema fundiário no Brasil é mais grave do que se imagina e mais pro-fundo do que o governo sonha. Assim que surgem invasões, os homens do poder vão logo falando na necessidade de agilização dos processos de desapropriação e assentamento de colonos. Entretanto, como se diz, não é por aí... Em sua incapa-cidade de resolver os macroproblemas, o governo federal busca atacar com palia-tivos para iludir sei lá quem. O que o governo e toda a sociedade imaginam é que dar terras é fazer “reforma agrária”. E não é.

Na conjuntura político-econômica do Brasil, dar terras é o mesmo que dar uma enciclopédia a um índio. Ele não vai saber o que fazer com ela. E existem milhares de exemplos, desde a “ciclópica iniciativa de povoar a Amazônia com colonos gaúchos”, intentada pela ditadura, na década de 70. Só dar terras, sem dar meios, não adianta nada. Diante das difi-culdades que há décadas assolam o nosso meio rural, até famílias, com três ou quatro gerações na terra, estão igualmente repassando, entregando ou vendendo a troco de banana. Não há programas rurais, não há incentivos, não há uma polí-tica adequada. No “caminhonaço” a Brasília, levado a efeito por produtores ru-rais, escutou-se a mesma queixa dos sem-terra: a falta de apoio e de meios.

A inexplicável morosidade da justiça (só é rápida na “reintegração de posse” ou para aumentar salários de magistrados) em fazer as desapropriações também concorre para o agravamento do problema. Além do problema institucional da falta de uma política oficial adequada, precisamos evitar, no momento, o acirramento dos ânimos e a escalada da violência .

O modelo econômico do meio rural brasileiro é deficiente, e por isso acar-reta os seguintes problemas:

a) onera a alimentação das populações;

b) por causa da monocultura, o país tem que importar arroz (do

Camboja), milho comum (dos Estados Unidos), milho

transgênico (Paraguai) feijão (do Uruguai), trigo (da

Argentina), etc.;

c) pela monocultura a alimentação é pobre em nutrientes;

d) evasão de divisas para a compra de alimentos, a fim de

formar “esto-ques reguladores”;

e) descrédito/desestímulo à atividade rural;

f) especulação imobiliária e absorção dos pequenos pelos

grandes; usam a terra como moeda de troca e poupança

econômica;

g) farsa governamental ao acenar com “super-safras” de

oleaginosas que, na verdade, não se destinam à alimentação

do povo, mas de nutrientes para o gado dos importadores

internacionais.

Longe de espiritualizar-se demais, a ética cristã mantém olhos abertos pa-ra as realidades do homem como ser, que embora tenha uma destinação sobre-natural, vive, na dimensão terrena, do social e do político. A ética cristã tem na fé seu ponto de partida. O grande desafio é cristianizar a ética social, arrancan-do-a do domínio das ideologias, para convertê-la no poder que irá transformar a política num instrumento do amor, da partilha e do bem comum. Optar pelos pobres, diz João Paulo II, é a primeira forma de se praticar a caridade cristã .

Para que a ética cristã ilumine a atividade política, é necessário que as pessoas mudem seu modo de ser, convertendo-se aos projetos de Deus. Quem coloca o poder acima de tudo, não respeita a liberdade do outro. A autoridade e a hierarquia, em geral, pelo degrau que impõem, banem o diálogo e a relação de amor. Quem tem misericórdia e com-paixão com o sofredor, não impõe autoridade.

Conduzida como âncora da espiritualidade coerente e discernida, a fé torna-se um poderoso condicionador do senso crítico. Nesse particular, a fé é essencial-mente crítica. Crítica, da mesma raiz de crise, dá idéia de uma ocasião de julga-mento. Crítica é uma escolha de alternativas, exercendo um julgamento sobre as posturas sociais, as ideologias e, sobretudo, uma visão comparativa entre a reali-dade e o projeto de Deus. Historicamente, as ideologias iluminista, capitalista, marxista, comunista, neoliberal, de segurança nacional, nova ordem, pansexua-lismo, têm sofrido a crítica da fé e da ética cristã, e não têm sido aprovadas. En-quanto a fé irradia, abre, a ideologia fecha, privatiza, relativiza .

A mensagem mística da ética cristã, que tem a fé por base, não pode afas-tar o homem de sua obrigação de zelar e re-construir o mundo. A esperança do Reino (“novo céu e nova terra...” cf. Ap 21, 1) não deve arrefecer nossa preocu-pação com a felicidade e o desenvolvimento humano ainda nesta vida. Aos es-sencialmente verticalistas uma advertência: É preciso construir um mundo mais humano. O mundo futuro, transformado, não é só obra de Deus, mas também do homem.

A fé não subsiste no abstrato. Para sabermos se o que sentimos é efetiva-mente fé, basta ver se ela produz frutos de amor. Nesse particular, a fé leva a uma transformação. Ela está inserta na história humana, como realidade e ex-pectativa. As forças contrárias, daqueles que apenas acreditam, estão sempre a dizer que fé que transforma é uma utopia. Você concorda? De fato, se formos tentar mudar sozinhos alguma coisa, veremos que é muito difícil, senão impos-sível. Mas com a força de Deus, a fé pode ser levada aos segmentos mais resis-tentes. É um trabalho de paciência, de testemunho e de muita oração. A vida cristã, a espiritualidade vivida conforme o estado de cada um é a resposta con-creta ao oferecimento (dons) de Deus. Como dom do Espírito Santo, a fé, além de um presente gratuito de Deus, é um acontecimento da graça. É a aceitação in-condicional de Jesus Cristo e das exigências e interpelações de seu Evangelho.

7. Onde entra a bioética?

O verbete bioética exprime, por decomposição léxica, a ética que atua em defesa da vida, uma abordagem que está a serviço da biodiversidade e dos seres humanos. Não se trata tão-somente de medicina e biologia, testes e experiências genéticas, mas, sobretudo pelo zelo por todo o tipo de vida na terra. Nesse con-texto, a bioética elabora um enfoque original a partir das realidades humanas, no que tange à vida como um dom incomensurável. Por isso, como disciplina, ela deve converter-se, para lograr eficácia, numa abordagem temporal, espacial, in-terdisciplinar, histórica, prospectiva, técnica, humanista e sistemática.

No âmbito da ética religiosa, encontramos diversas publicações, em livros e sites, onde as Igrejas cristãs se manifestam em favor da vida, e temerosas quanto ao uso indiscriminado daquilo que se imagina ser tecnologia. A “pastoral familiar” da Igreja Católica mantém um site onde debate e esclarece temas da bioética, principalmente aqueles relacionados com sua área de atuação.

Sendo a pesquisa ética aplicada às questões colocadas pelo progresso biológico, a bioética torna-se o estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas por uma administração responsável da vida (humana, animal, biológica, ecológica), com vistas à felicidade humana, à melhoria da qualidade de vida na terra e ao progresso ordenado das ciências .

A natureza precisa ser preservada. Esta é uma das premissas da bioética. Natureza violada é dor de cabeça no futuro. Os Estados Unidos da América é o país que mais polui, emitindo gases venenosos e nocivos à saúde. Quando do encontro de Kyoto, em 2001, esta nação e o Japão, foram as únicas a não assi-nar o compromisso-protocolo de controle de emissão de gases. Hoje já voltaram atrás, depois de haverem chegado à conclusão que doenças respiratórias e pro-blemas genéticos com crianças são oriundos desses gases. Esta é uma questão de bioética. Como disse o cardeal W. Schuster, em 1949, “Deus perdoa sempre; os homens, algumas vezes; a natureza, nunca!”. O que se vê por aí, secas, en-chentes, frustração de safras, deslizamentos, tudo pode ser atribuído a uma resposta enérgica da natureza, cansada de ser agredida.