Quem é o dono da água?

O texto a seguir foi extraído do livro “Commodities Ambientais em Missão de Paz – Novo Modelo Econômico para a América Latina e Caribe”, de Amyra El Khalili, Editora Nova Consciência, São Paulo, 2009, disponível no formato e-book em http://lachatre.com.br/Amyra/comoditiesambientais.pdf
Amyra é autora da expressão commodity ambiental. Para saber mais, ver também entrevista especial em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/527511

“QUEM É O DONO DA ÁGUA?
[...]
O Fórum Mundial das Águas, realizado em Haia, debateu exaustivamente a questão da titularidade da água sob vários aspectos. O que gerou maior polêmica – dentre outros, como o místico, o dos direitos humanos e o filosófico - foi o aspecto mercadológico (comercialização da água), que lhe atribuiu um tratamento igual ao de qualquer mercadoria negociada nos pregões das bolsas de valores e de mercadorias. A água seria, então, classificada como commodity – mercadoria padronizada para compra e venda, tendo seu preço determinado pelo livre mercado.
[...] a água, porém, é uma oferenda que não pode ser desprezada, nem controlada por alguém que queira fazer monopólio desta riqueza. [...] No Oriente, as melhores e mais caras propriedades sempre foram aquelas que estavam próximo a rios e córregos ou os poucos poços artesianos que existem. O Ocidente estabeleceu seu crescimento econômico, suas cidades, em torno da água doce.
É difícil acreditar que essas regiões, com a conivência de governantes latinos, estejam sendo colocadas em segundo plano. É isto que se vê pela multiplicação de loteamentos à beira de rios, pela alocação da miséria, que se mistura com o esgoto, e pelo empobrecimento de um ativo que representa riqueza em todo o mundo oriental. Infelizmente, ao contrário dos valores dos povos nômades, a água é o principal instrumento econômico, presente em acordos de guerra, tão potencial e voraz quanto o petróleo.
Seria pura ingenuidade ressaltar aqui a falácia de que apenas bens pertencentes à sociedade – como a água – não deveriam ser comercializados ou dizer que o mercado deve ser dominado por princípios éticos e valores morais. [...] Tratar a água, o solo e o ar simplesmente como “mercadoria”, como qualquer outro ativo comercializado nas bolsas de valores e derivativos, é literalmente entregar o “ouro” ao bandido, ou melhor, permitir que os outros de fora determinem a política de gestão e comercialização desses recursos naturais potencialmente brasileiros. Nenhum ecossistema cuja propriedade pertença à sociedade, ou seja, aos cidadãos, e cuja função seja otimizar o usufruto aos demais cidadãos e seres vivos do Planeta pode ter um tratamento meramente financeiro. Transformar água, solo e ar em papel é fácil. Qualquer yuppy recém-formado pode fazê-lo. Quero ver, porém, fazer disso commodity ambiental! Detalhe: o tratamento financeiro para commodities em países onde a taxa de juros é estável é bem diferente do de países com juros altos – como é o caso brasileiro -, nos quais toda iniciativa produtiva é inviabilizada pela especulação financeira. Esse é o temor das ONG’s internacionais e nacionais, de intelectuais, cientistas e, acrescento, também de economistas e advogados, promotores e juízes, enfim, de gente séria que pensa sério sobre o que é patrimônio nacional, propriedade privada versus bens difusos, o que é o Estado de Direito.
A água pode ser tratada como uma commodity ambiental, ou seja, mercadoria originada de recursos naturais em condições sustentáveis, somente se as variáveis sociais – nível de educação, distribuição de renda, saúde, empregabilidade – dos cidadãos forem levadas em consideração e se houver a participação da sociedade na manutenção, destinação, administração e, principalmente, na comercialização em acordo às leis claramente estabelecidas. Isto preservaria a soberania nacional dos povos e também contribuiria para erradicar a fome e a miséria em nível global, com respeito às leis naturais. A expressão commodity ambiental não nasceu do acaso para privilegiar o marketing financeiro ou para dar aval a novos negócios virtuais nos mercados de futuros e de capitais. Nem para captar dinheiro no mercado internacional a taxas baixíssimas e a fundo perdido, com o objetivo de repassá-lo às taxas de mercado interno. Muito menos é herança do colonialismo econômico-financeiro internacional. É fruto da criatividade brasileira, do debate que está por envolver a população por meio de suas entidades representativas. Somente assim será possível o desenvolvimento econômico integrado, por meio de um longo, participativo e permanente debate sobre os direitos humanos frente ao meio ambiente versus meio ambiente frente ao mercado financeiro. (Grifo nosso)
A expressão movimento mercadológico, que naturalmente constitui o fomento das commodities ambientais, nasceu para lavar, depurar e estimular atividades produtivas, fazer o que os mercados financeiros deveriam ter feito e nunca fizeram: financiar a produção agrícola, industrial e social, respeitando o meio ambiente e promovendo a democratização do capital. Pouco importa se o nome disto é socialismo, comunismo, capitalismo. O que interessa é provar que a existência das commodities ambientais e sua viabilidade econômica são tão cristalinas quanto a fonte mais pura dos mananciais.
Esta é uma estratégia de mobilização pelo desenvolvimento limpo de um novo mercado financeiro. É a guerra biofinanceira pela sobrevivência do ser humano e do Planeta. Só não enxerga quem não quer ver!”