China já testa yuan como moeda global

* Tom Orlik

Pequim libera aos poucos o uso mais amplo de sua moeda, que deverá desafiar a hegemonia do dólar

O muro começa a rachar.

Durante anos, a China dificultou o fluxo de capital que entra e sai de sua economia, a segunda maior do mundo. Agora, o governo de Pequim está levando adiante uma campanha para colocar sua moeda, o yuan, no palco mundial - e já surgem brechas naquela imponente barreira financeira.

Um yuan mais amplamente usado no comércio e investimento internacionais pode em algum momento desafiar a supremacia do dólar, corrigir alguns dos desequilíbrios que marcam a economia chinesa e mundial e forçar os Estados Unidos, hoje perdulários, a viver de acordo com seus meios.

Não será uma transição fácil. Há poderosos interesses na China que estão satisfeitos com o status quo e tentarão frear qualquer iniciativa de reforma. Mas as mudanças que a China fez até agora ganharam força interna e internacionalmente - e podem acabar sendo fortes demais para alguma resistência.

Durante mais de uma década, a fechada conta de capitais da China foi um elemento marcante da economia mundial. Ela isolou o país dos fluxos de capitais estrangeiros, permitindo que passasse ileso pela crise financeira asiática de 1997 e deixando seus bancos incólumes ao quase colapso do sistema financeiro americano em 2008.

Igualmente importante foi que, ao negar aos mercados um papel na definição da taxa de câmbio, Pequim pôde manter o valor do yuan num nível artificialmente baixo - sustentando uma expansão de 30 anos nas exportações. Como os poupadores chineses não podem aplicar seu dinheiro no exterior, os bancos também conseguiram oferecer-lhes baixos juros, o que manteve o custo do dinheiro para a indústria em níveis bem baixos e sustentou um surto de investimentos.

Tome-se o caso de Shenzhen - uma cidadezinha pesqueira em 1979, uma metrópole de 14 milhões de habitantes em 2011, erguida ao redor do quarto porto mais movimentado do mundo. O baixo custo de capital subsidiou a construção de infraestrutura de transporte e energia, fábricas e linhas de produção. Um yuan subvalorizado, combinado com o baixo custo da mão de obra, permitiu às empresas cobrar preços mais baixos que as rivais estrangeiras.

Mas a manipulação do câmbio e a repressão do juro têm seu custo. O capital barato resultou num excesso de capacidade no setor industrial e em bolhas no mercado imobiliário. A gestão do câmbio tendo superávits comerciais produziu o acúmulo de gigantescas reservas internacionais, US$ 3,04 trilhões, que a China se vê obrigada a aplicar na forma de empréstimos a custo baixíssimo aos EUA.

Uma das primeiras rachaduras na restritiva política chinesa ocorreu em julho de 2009, com um plano para permitir a liquidação de transações de exportação e importação em yuans.

No primeiro trimestre de 2011, US$ 55 bilhões do comércio exterior chinês - 7% do total - foram liquidados em yuans. No fim de abril de 2011, os depósitos em yuan no sistema bancário de Hong Kong haviam crescido para 511 bilhões, ou US$ 79 bilhões, nove vezes o total de julho de 2009, quando o programa para compensação em yuans foi lançado.

Mas uma abertura mais substancial da conta de capitais vai exigir progresso em duas áreas: uma taxa de câmbio que esteja mais próxima do valor justo e juros definidos pelo mercado. O yuan ainda está subvalorizado, mas dois fatores sugerem que está muito mais próximo do valor de mercado do que costumava: a moeda chinesa teve uma valorização real de 20% diante de uma cesta de moedas desde 2005, e o superávit de conta corrente da China caiu para 5,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010, ante 10,1% em 2007.

Se o yuan está perto do valor justo, o governo chinês poderá afrouxar os controles sobre a conta de capitais com menos chance de provocar entradas desestabilizadoras de dinheiro especulativo.

Os juros chineses, de sua parte, continuam a ser definidos pelo governo. Mas o Banco do Povo da China, o banco central, está tentando mudar isso a partir de um exemplo na história econômica do país.

No começo da era da reforma, o governo chinês designou Shenzhen como zona econômica especial, onde as políticas de mercado poderiam ser testadas antes de ser expandidas para o resto do país. Hong Kong vai servir como um local parecido de experimentação para a reforma do sistema financeiro do país. O rendimento dos papéis de dívida expressos em yuans que são negociados em Hong Kong já é definido pelo mercado, em vez de seguir o juro referencial do banco central.

De acordo com o Royal Bank of Scotland, o valor dos papéis de dívida em circulação nesse mercado, conhecido como "dim-sum", subiu de US$ 5,3 bilhões no fim de 2009 para o equivalente a US$ 15,8 bilhões. O McDonald's e a Caterpillar estão entre as empresas que recorreram ao novo mercado em busca de financiamento.

O aumento na liquidação de transações comerciais e o desenvolvimento de Hong Kong como um centro financeiro do yuan se reforçam mutuamente. A maior quantidade de transações compensadas em yuan aumenta o pool de liquidez em Hong Kong, o que encoraja o desenvolvimento de mais instrumentos de investimento em yuan, e a maior variedade de formas de investimento reforça o incentivo para o uso do yuan na liquidação das transações de comércio exterior.

Agora aumenta a pressão na China para que abra mais canais para seus mercados de capitais. A questão é se essa mudança será rápida ou lenta.

Se a China acelerar seu cronograma, as implicações serão enormes. Um juro mais alto vai desacelerar a expansão do investimento, reduzindo o apetite do país por commodities e diminuindo a marcha do principal motor de crescimento doméstico.

Um yuan mais caro limitará a demanda por exportações que catalisou o explosivo crescimento da costa leste da China. Os fabricantes de têxteis, brinquedos e ferramentas de baixo valor agregado serão os primeiros a fechar as portas. Fabricantes de aparelhos de alta tecnologia, como a Foxconn - o nome comercial da Hon Hai Precision Industry, que fabrica o iPad - já decidiram transferir fábricas para o interior do país, atrás de mão de obra mais barata que na costa.

A mesma dinâmica aumentará o poder de consumo dos lares chineses - dando um empurrão aos esforços para fazer com que a demanda interna ganhe proeminência como motor de crescimento.

O próximo passo no desenvolvimento do yuan como moeda internacional - servir como moeda de reserva para os bancos centrais - vai exigir progresso mais substancial. Como a conta de capitais chinesa ainda é rigidamente controlada, a moeda chinesa não preenche a principal função de reserva: a de ser ativo líquido que os bancos centrais podem usar para estabilizar o valor de sua própria moeda.

A transição para uma conta de capitais aberta não será fácil. Poderosos grupos no setor exportador, empresas estatais, bancos e governos regionais se beneficiam de um juro baixo e do yuan desvalorizado. A porta para a reforma não está escancarada, mas também não está trancada.

A reforma tem sua própria lógica e seu próprio ímpeto. As empresas que obtêm financiamento em yuans no exterior vão exigir mais oportunidades para levar esse dinheiro para o país amanhã. Se os juros forem maiores no exterior, os investidores do país encontrarão meios de transferir seus yuans para fora. Se não existirem canais legais, empresas com presença no país e fora encontrarão meios de driblar os controles de capital.

* Tom Orlik é economista do Stone & McCarthy Research Associates e escreve artigos para o The Wall Street Journal

José Luís de Freitas
Enviado por José Luís de Freitas em 20/06/2011
Reeditado em 20/06/2011
Código do texto: T3045909