Considerações acerca de um artigo sobre economia.


Às vezes, no curto espaço entre a colher e a boca, desistimos da mordida. As causas podem ser as mais diversas: taxa glicêmica, colesterol, dieta ou a simples lembrança da azia decorrente daquele bocado. Uma vez ou outra, mesmo o mais voraz dos apetites passa por isso. Da mesma forma que existe gente que come compulsivamente, há também leitores compulsivos. A diferença é que o texto à frente desse leitor é sempre um mistério a ser desvendado. Ele nunca o tinha provado antes e, portanto, não tem qualquer memória que pudesse representar censura do tipo ‘não vou ler isto porque vai me dar azia’.
Eu creio que pertenço a essa categoria de leitores que lê até bula de remédio. A sensação de ter apenas perdido tempo ou ter sido enganado pelo autor só vêm ao final da leitura. Não se desiste no meio do caminho entre o texto e o olho; o julgamento crítico se dá depois.
Estou-lhes fazendo esta pequena introdução para dizer de um artigo sobre economia que recebi esta semana por e-mail.

Sem pretender abusar da paciência do que me leem, reproduzo abaixo as considerações que fiz e, ao final, para quem quiser e tiver estômago para tal, a integra do texto do referido artigo.

Amigos,
Como sou um leitor compulsivo costumo ler muito e, por extensão, leio muita bobagem. Mas lhes confesso que são raras as ocasiões em que elas – as bobagens – chegam em tal profusão e ‘vellocidade’ como nesse texto do ‘economista’ Raul Velloso.
Já ouvi falar dele e não é de hoje, mas creio que não valha a pena mexer nisso. Cada um escreverá a própria biografia como lhe aprouver. O futuro é que vai atribuir créditos a essa biografia. Ou tirá-los. Na recomendação do nosso amigo tratava-se de um artigo de avaliação das propostas de ajuste econômico enviadas ao congresso pelo governo federal. Análise de especialista, enfatizava. Aguçada a curiosidade debrucei-me sobre a leitura.
Eu que sempre fora orgulhoso de haver decorado os nomes de todos os presidentes brasileiros, desde o golpe militar que depôs a Monarquia Constitucional de Pedro II em 1889, surpreendi-me logo ao final dos dois primeiros parágrafos. Se alguém escreve um artigo supõe-se que tenha uma ‘opinião’ sobre o tema, mas ter uma opinião não autoriza o autor a falsificar dados ou confundir datas.

Então, antes de prosseguir, relembremos. FHC – o presidente que antecedeu Lula – governou o Brasil por dois mandatos consecutivos: de 1º/01/1995 a 1º/01/2003. Lula assume a presidência em 1º/01/2003 e, também reeleito para um segundo mandato, passa o governo a sua sucessora Dilma em 1º/01/2011, agora no começo de seu segundo mandato. Antes deles e desde o início da redemocratização, tivemos Sarney (1985 – 1990); Collor/Itamar (1990 – 1º/01/1995).
Reli a primeira frase: “O primeiro governo Lula herdou uma despesa alta, muito rígida e em permanente ascensão, fruto de muitos anos de implementação de uma constituição focada em assistência e previdência social”.

Perguntei-me: o que será que esse sujeito quer efetivamente dizer? Se Lula herdou uma ‘despesa alta, muito rígida e em permanente ascensão’ herdou-a de quem? Como o texto marotamente omite que Lula ‘herdou’ o governo de FHC, parece que a herança fica então creditada à Constituição Federal de 1988, elaborada no espaço de 20 meses por 558 congressistas, ainda no governo Sarney. Quando FHC assumiu o primeiro mandato a CF/88 era uma criança de seis anos; oito anos depois, com Lula, uma adolescente de catorze anos. Suponhamos que o articulista chame a esses catorze anos de “muitos anos de implementação de uma constituição focada em assistência e previdência social”, mas o nosso analista vai além já nas frases seguintes, quando diz: “Nessas condições, quase três quartos do gasto federal se constituíam numa grande folha de pagamento de benefícios e salários em 2002, algo que ainda hoje se mantém. Criáramos um modelo de bem-estar social bastante avançado, só que antes de ficarmos ricos e de termos uma infraestrutura de transportes, energia, telecomunicações, água e saneamento digna do nome”.
O que o diz agora o texto? Que em 2002 – último ano da gestão de FHC na presidência – se todo o gasto do governo federal fosse dividido em quatro partes, três se destinariam a pagar a grande folha de pagamentos de benefícios e salários, coisa que “ainda hoje se mantém”. E encerra seu parágrafo com está pérola do pensamento reacionário: “Criáramos um modelo de bem-estar social [...] antes de ficarmos ricos e de termos infraestrutura de transportes, energia, telecomunicações, água e saneamento[...]”. A leitura evocou em mim a lembrança do velho mantra da ditadura “para dividir o bolo é preciso esperar o bolo crescer”. Hoje, trinta anos depois do fim do regime de exceção, isto soa completamente anacrônico e fora de lugar. Ou terá sido apenas uma tentativa canhestra de dizer que FHC deixou a presidência sem que tivéssemos ‘uma infraestrutura de transportes, energia, telecomunicações, água e saneamento digna do nome’ por culpa da Constituição?
Tirante o viés de mero discurso partidário que perpassa o texto, tipo “o ponto central, provavelmente nunca percebido com clareza desde 2003” (o que induz a pensar que antes de 2003 era percebido com clareza; FHC os teria legado para Lula apenas por má-fé) ou “os governos FHC haviam encontrado o caminho de transformar antigos déficits primários [...] em superávits [...] (o que teria permitido ao país) pagar um pedaço expressivo do serviço da dívida” (quando se sabe que pedaço expressivo da dívida que o Brasil acumulou ao longo de muitas décadas só veio a ser parcialmente pago nos governos Lula) e que não resistem nem a mais ligeira análise e não passam de conversa mole para engabelar leitores desatentos ou incautos, o que o artigo propõe é revogar a Constituição de 88. Simples assim, pois “se não fizermos reformas no Welfore State tupiniquim [...] a situação tende a ficar pior.”
Poderia me alongar mais para desmistificar melhor esse emaranhado de obscuridades com pretensões a lição de economia, mas creio que não paga a pena.
Do ponto de vista da macroeconomia os governos Lula e Dilma mantiveram a herança do período FHC (e não se trata de qualificar essa herança como bendita ou maldita). O tripé macroeconômico ficou intocado desde 1999. Mas existem sim análises mais elaboradas e consistentes, nem tudo é breu. Recentemente (cerca se um ano ou pouco mais) foi lançado pela editora FGV o livro “O que esperar do Brasil”, coletânea organizada pelo Professor Luiz Carlos Bresser Pereira que, a meu modo de ver, constitui um bom indicador com informações e análises sobre o futuro da economia brasileira. O professor de economia da UnB, José Luis Oureiro, em seu artigo no livro, diz que: “É necessário por de lado o tripé câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação”. Ele defende quatro pontos centrais para que o Brasil prepare seu crescimento sustentável: 1. Flexibilização do regime de metas; 2. Mudança da política fiscal na direção de um sistema baseado na obtenção de metas de superávit em conta-corrente; 3. Adoção de uma política de administração de taxa de câmbio por intermédio da constituição de um fundo de estabilização cambial; 4. Reforma geral do sistema financeiro. Ainda segundo ele “o atual modelo econômico preservou uma combinação perversa de juros elevados em termos nominais e reais, câmbio apreciado e baixo investimento público em obras de infraestrutura econômico-social”, além de desconsiderar “os efeitos sobre o crescimento de longo prazo de um aumento de investimento do setor público”.
Creio que ningém é capaz de jurar que esse tipo de propostavai dar certo. E nem que não vai dar, mas pelo menos ele não está propondo uma completamente absurda e inexequível revogação de CF/88.
Alguém já disse que “a economia é um assunto sério demais para se deixar nas mãos de economistas” e por isso – e por enquanto, já que ninguém pretende aprofundar nada mesmo – fico nesta prosaica recomendação: leiam o editorial do Silvio Caccia Bava no Le Monde deste mês. O título é Pacto contra o rentismo. Bastante esclarecedor.

Abaixo, segue texto compactado do Velloso (como referência de artigo que depõe contra aqueles que quer defender e dá salvo conduto àqueles que quer acusar).


O primeiro governo Lula herdou uma despesa alta, muito rígida e em permanente ascensão, fruto de muitos anos de implementação de uma constituição focada em assistência e previdência social. Nessas condições, quase três quartos do gasto federal se constituíam numa grande folha de pagamento de benefícios e salários em 2002, algo que ainda hoje se mantém. Criáramos um modelo de bem-estar social bastante avançado, só que antes de ficarmos ricos e de termos uma infraestrutura de transportes, energia, telecomunicações, água e saneamento digna do nome.
Do ponto de vista da gestão macroeconômica, a inflação parecia finalmente ter cedido, e a grande dificuldade era o tamanho e as condições de administração da dívida pública que o país carregava nas costas. Aqui, o ponto central, provavelmente nunca percebido com clareza desde 2003, era que, enquanto as condições ligadas ao gasto primário não mudassem, o país não poderia se dar o luxo de crescer menos do que algo entre 4,5% e 5% ao ano. Só assim se gerariam os superávits fiscais requeridos para equacionar o problema da dívida.
Até que, a despeito da rigidez do gasto, os governos FH haviam encontrado o caminho de transformar antigos déficits primários (excedentes de caixa negativos antes de pagar juros) em superávits bastante elevados em termos internacionais, ao redor de 3% do PIB. Passamos, assim, a pagar um pedaço expressivo do serviço da dívida. Só que, diante do seu tamanho elevado, muitos anos de austeridade fiscal seriam necessários à frente para o problema da dívida pública se tornar menor.
Como fazer superávits altos durante muito tempo num orçamento que, na verdade, é uma gigantesca folha de pagamento em que não se podem reduzir salários (benefícios) nem demitir ninguém, incorporando um número cada vez maior de recipientes, e onde, para piorar, o pagamento mínimo (que é o próprio salário-mínimo) cresce junto com o PIB? Ou seja, em que a despesa primária (exclusive juros) sobe sempre a taxas muito elevadas, algo que só tende a piorar?
Com efeito, em estudo apresentado com colegas ao Fórum Nacional do Inae/BNDES há três anos, demonstrei que, na direção oposta ao ajuste fiscal, a grande folha dobrará de tamanho até 2040 se não fizermos reformas do welfare state tupiniquim como as ali indicadas. Outros têm engrossado esse coro, mas o assunto inexiste para os líderes políticas. Ou seja, a situação tende a ficar pior no longo prazo.
Curiosamente, até 2008 parecia que íamos bem, pois, com o PIB crescendo a 4,5%, mesmo com a despesa avançando, em média, absurdos 9% ao ano acima da inflação, a receita evoluiu praticamente à mesma taxa da despesa, fazendo com que os superávits se mantivessem ao redor de 3% do PIB. Só que, com a queda do crescimento médio do PIB para 1,2% de agosto de 2012 a junho último, os ganhos da receita desabaram para os mesmos 1,2% de aumento do PIB, enquanto a despesa crescia não menos que 5,8%, implicando aumento 4,7 vezes o aumento do PIB. Não deu outra: os superávits viraram déficits.
Sem um diagnóstico correto da economia brasileira, o governo Dilma se deu o luxo de aplicar, no país, uma versão light do modelo populista da dupla Argentina-Venezuela, perdeu o rumo do crescimento e dos superávits, e o Brasil, depois de tudo que havíamos conquistado, acaba de ser rebaixado por uma das principais agências de risco para a classificação de caloteiro light. Deus sabe o que virá a frente.
Cansado de bater no crescimento do gasto público corrente para ouvidos moucos, resolvi mudar as baterias de 2012 para cá no Fórum Nacional, na direção de mostrar os erros governamentais pelo lado do primo pobre dessa estória, a combalida infraestrutura brasileira. Antes, contudo, escrevi com colegas uma resenha sobre a economia argentina, para mostrar o que não deveríamos fazer. Depois, escrevemos dois livros sobre os motivos pelos quais as concessões privadas de transportes e energia elétrica não deslanchavam (e ainda não deslancham). E nesta quarta-feira apresentarei um novo livro detalhando a precariedade da infraestrutura brasileira, além de defender o aumento do investimento público mesmo diante da grave crise que enfrentamos. Todos os trabalhos aqui citados podem ser baixados na página www.raulvelloso.com.br gratuitamente (o último só a partir desta quinta-feira).
Embalado pelo boom de commodities e pela herança bendita dos governos FH, ganhamos em 2008 a classificação de bons pagadores das agências de risco internacionais. Lula comemorou efusiva e justamente à época, embora hoje tente minimizar a importância do rebaixamento que acaba de ocorrer. Ao namorar a adoção do modelo argentino, o governo Dilma colocou o país numa sinuca de bico, pois, mesmo ganhando o segundo mandato, o Congresso lê a desilusão da população, expressa na sua baixíssima popularidade, como recado para travar qualquer medida impopular de ajuste. Penso que o Brasil é maior do que isso. Temos instituições sólidas e um futuro brilhante se soubermos mudar o curso antes que seja tarde demais.
Raul Velloso é economista.

Àqueles que conseguiram chegar até aqui, boa digestão!