Ensino jurídico: entre a pesquisa zetética e dogmática

Ao se falar da questão do ensino jurídico, um dos principais problemas com o qual se defronta é a questão da pesquisa. Muito valor se dá a este tema hoje, sendo inclusive ele referência, contabilizado como um dos itens da produção científica, para estabelecer índices de avaliação de instituições pedagógicas.

Todavia, muitas dúvidas existem sobre o que é e como se efetiva a pesquisa, principalmente na área jurídica, a qual apresenta certas peculiaridades. Além disto, já na graduação, como requisito da colação de grau, é exigida monografia a qual deve ser fruto de pesquisa. Na pós-graduação, principalmente naquela dita strictu sensu, a qual visa diretamente a vida acadêmica, a pesquisa é a seiva nuclear para qualquer formação. Pode-se dizer que na graduação a pesquisa tem sentido complementar, enquanto na pós-graduação apresenta caráter essencial a dar significado e finalidade ao próprio curso.

A principal diferença em relação a outras ciências é que o Direito traz em si uma distinção mais acentuada entre os planos teórico e prático, apesar de ambos estarem intimamente relacionados, no sentido do uso e das finalidades pretendidas pelo conhecimento obtido no curso.

O Direito enquanto ciência não se esgota apenas no estudo de seu objeto, que é a norma jurídica, mas como esse objeto apresenta-se no cotidiano de uma dada sociedade, moldando sua estrutura e direcionando as condutas daqueles que a integram, sejam indivíduos ou outros entes políticos, permitindo aos que encerram o ciclo de ensino a funcionarem como atores sociais diretos, principalmente no chamado mundo forense. Ou seja, o estudante de Direito não apenas aprende o que é a norma jurídica, mas como ela existe num ordenamento social, para que ele possa atuar nesse mesmo ordenamento. O curso jurídico forma bacharéis, isto é, detentores de um dado tipo de saber – o saber jurídico, cujo objeto é a norma –, mas também busca permitir que esses bacharéis atuem profissionalmente no mundo jurídico, que é o próprio universo social e político que os demais atores sociais habitam.

O curso de Direito não tem finalidade precípua de formar advogados, juízes, promotores ou outros profissionais da área forense. O principal objetivo é a formação de cidadãos dotados de um conjunto de saberes sobre a norma jurídica, mas conhecedores do universo também jurídico – e, portanto, sociopolítico – em que vivem, sendo assim autorizados a atuarem nas diversas atividades profissionais que envolvem o exercício da cidadania e a defesa de direitos de ordem pública e privada. Por conhecerem a estrutura social é que podem atuar como profissionais ligados a atividades intimamente relacionadas a interesses de cidadania. Claro está que tais objetivos são limitados pelas forças da dinâmica a que os mecanismos educacionais estão submetidos. Reconhece-se a atualidade das deficiências pedagógicas mormente no campo do Direito.

Como instrumento de aprendizagem e possível alternativa para problemas do ensino, a pesquisa jurídica precisa ser debatida com cuidado. Não se pretende falar de métodos especificamente, mas sobre um plano geral, dirigido a enfoques de pesquisa, a fim de se buscar esclarecimento possível sobre as dimensões teórica e prática e as necessárias inter-relações entre ambas.

Deve-se ter em mente que o antigo provérbio segundo o qual “na prática a teoria é outra” só funciona quando a teoria é mal elaborada. Teorias ruins, distantes da realidade, fazem com que a prática exista num outro mundo totalmente apartado do teórico. Prática e teoria devem caminhar juntas, pois a prática é o exercício vivo da teoria e esta é a análise da essência da primeira. Não existe teoria sem prática nem vice-versa.

Partindo desta premissa e por questões de método, passa-se a falar dos dois tipos possíveis de enfoque do Direito, a saber: o enfoque zetético e o enfoque dogmático.

A divisão parte da idéia de que há sempre dois modos de se examinar um problema, um assunto ou um tema: ou por meio de perguntas ou por meio de afirmativas. Não se trata de uma distinção absoluta, mas de privilegiar uma postura ou outra. Quando se procede de forma interrogativa, destaca-se o aspecto problemático da investigação, acentuando-se o caráter hipotético, provisório e aberto do saber. Ao contrário, ao se adotar a perspectiva afirmativa, predominam a definição, o conceito, as opiniões, os axiomas, o saber assim admite postura mais fechada, mais concentrada, a fim de melhor preservar as premissas das quais parte.

No primeiro caso, tem-se o enfoque zetético e no segundo, o dogmático. Zetética vem do verbo grego, zetéo, com significado de perquirir, indagar, buscar, enquanto dogmática deriva do também verbo grego dokhéo, que significa propor, doutrinar. Não há uma linha divisória marcante entre os dois enfoques, posto que complementares, mas o predomínio apenas de um sobre outro, dependendo da investigação e do modo de agir do pesquisador. A postura dogmática assume opiniões e premissas, a zetética, coloca opiniões em dúvida, elaborando perguntas.

O enfoque dogmático estrutura o conhecimento a partir de axiomas que precisam se fechar num sistema coeso, ao passo que o enfoque zetético organiza o saber por meio de constante questionamento, ordenando-o mediante perguntas, permitindo maior abertura, pois os resultados são substituíveis. As premissas dogmáticas necessitam permanecer ao passo que as zetéticas podem ser substituídas.

O Direito é uma ciência de caráter mais dogmático porque pressupõe sistemas normativos que ordenam a decisão e a ação, destacando a função diretiva e axiomática. Porém, o caráter zetético é revelado quando o próprio sistema normativo é questionado em suas bases, confrontado com as forças sociais, políticas e históricas que o fundamentam e o sustentam, ou seja, quando evidencia a função especulativa e hipotética.

O pesquisador necessita saber dosar os enfoques para obter resultados produtivos em seu trabalho. Para fazer isto, pode se socorrer de certas diretrizes investigativas práticas.

Basicamente, a análise é dogmática quando são coletados conceitos sobre um determinado instituto, os quais são apresentados numa linha lógica ou cronológica, tendo por fontes de leitura a própria ordem de estruturação do sistema, no caso do Direito, tomando-se por percurso o exame da lei, da doutrina e da jurisprudência. A análise passa a ser zetética quando são questionadas as forças dinâmicas que produziram tais conceitos, sob prisma crítico, relacionando tais forças com o fenômeno jurídico seja por questões históricas, materiais, comunicacionais ou outras que abordem de forma complexa (normalmente reunindo estruturação e dinâmica) o ponto de vista destacado.

A pesquisa é dogmática quando o pesquisador parte de assertivas, axiomas ou conceitos tanto para descrever como para direcionar o conhecimento, mesmo ao relacioná-lo a outras ciências. Ela é zetética quando utiliza indagações para alcançar o conhecimento. A postura dogmática usa postulados e a zetética, evidências.