Enfoques zetético e dogmático: exemplos práticos

Recebi alguns e-mails perguntando como se daria a aplicação prática da distinção entre os enfoques zetético e dogmático dos quais falei na semana passada. Visando auxiliar em algumas dúvidas sobre a pesquisa e elaboração de artigos, segue um texto sobre eles.

De início, ressalto que a distinção é baseada, não integralmente, no aproveitamento das lições do Prof. Tércio Ferraz Jr, em seu livro Introdução ao Direito (Atlas, 2001, pag. 39), apresenta-se os enfoques zetético e dogmático de abordagem do fenômeno jurídico.

Na atividade forense cotidiana, normalmente nos socorremos do último, pois defendemos certo ponto de vista a partir de uma decisão, para estabelecer uma diretriz para a ação social. Usamos então uma forma argumentativa que pode ser definida como "argumento de autoridade", pois parte de conceitos já estabelecidos por autores, costumeiramente conceituados, além de julgados já ementados.

Mesmo na prática cotidiana há espaço para a zetética, quando são questionados os argumentos de autoridade em suas premissas ou quando são adicionados outros argumentos que não se inserem diretamente no sistema dogmático jurídico.

Exemplo:

Enfoque dogmático - requerer a liberdade provisória de um indivíduo preso em flagrante informando não estarem presentes os requisitos formais da prisão preventiva, apresentando seus conceitos, definidos pela doutrina e jurisprudência e informar que as circunstâncias pessoais são favoráveis, como residência fixa, relação de trabalho e primariedade. A resposta permanece também no plano dogmático quando informa que as circunstâncias não são o elemento suficiente para conceder a liberdade e que os conceitos dos requisitos formais estão incompletos, sendo dados outros conceitos em substituição.

Enfoque Zetético - no mesmo tipo de requerimento, além dos conceitos apresentados, usar argumentos que apontem, por exemplo, a crise do sistema carcerário e o reflexo da manutenção da prisão do indivíduo como colaborador para o sustento da crise, o que une uma análise sociológica, não conceitual, mas da dinâmica do problema, ao instituto prisão preventiva e como este, também dinamicamente, produz, para além do universo jurídico, reflexos sociais negativos. A análise é complexa, pois retrata a relação estrutura-função de modo complexo e inter-relacionado. A resposta teria que mostrar a efetiva periculosidade do indivíduo e a relação estrutural-funcional desta com o aumento da criminalidade e do risco social, por exemplo.

Na pesquisa acadêmica, o plano dogmático tem função didática, principalmente no Direito. Porém, se há a pretensão de se questionar o fenômeno jurídico, a postura dogmática não é suficiente porque parte de premissas de um dado sistema e os possíveis questionamentos sempre tendem a preservar tais premissas.

Para efetivamente abordar um dado problema jurídico, se se tem pretensões de realizar uma pesquisa voltada para a teoria e filosofia do direito, aplicadas aos ramos "práticos", o enfoque zetético é necessário. Este parte de questionamento das próprias premissas que organizam o sistema. O ponto de partida é dado pelo pesquisador, o qual elabora questões a partir daquela estabelecida e realiza análises complexas de interação do fenômeno. Complexa, em síntese, é aquela análise que vai além dos elementos estruturais ou analíticos e caminha para a relação entre estrutura e função, ou seja, aquela que verifica a dinâmica ampla dos componentes do tema analisado.

Esta análise dinâmica se realiza por várias perspectivas, hoje em dia, mais acentuadamente pelo viés proposto pela filosofia da linguagem, que considera as relações humanas, basicamente estruturadas em sua dinâmica, por mecanismos resultantes de relações comunicacionais.

Assim, a diferença não é só entre perguntas e respostas, mas na elaboração das perguntas e das respostas, sendo que no plano dogmático, as primeiras tendem a preservar as premissas das quais partem as últimas.

Exemplo:

Enfoque dogmático: Estudar a noção de crime. Pergunta-se "o que é crime?" (tem-se uma pergunta), porém a resposta permanece num limite sistêmico de premissas fechadas. Se o pesquisador parte da premissa da moralidade social, crime é aquilo que fere a moral ou o que fere o social. Se parte de uma análise legal, crime é o que está na lei, buscando todas as referências possíveis no quadro legislativo. Se parte de uma postura científica de ordem positivista (que privilegia a dogmática "pura", livre de dados que não se inserem naquele dado campo científico, sejam ideologias, sejam forças materiais ou comunicacionais), crime é aquilo que representa um conteúdo passível de análise, vale dizer, composto de elementos que foram divididos e que somados formam o crime. Assim, se diz que crime é conduta típica, antijurídica e culpável. São três elementos que somados dão crime: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, formando a teoria tripartida do crime. Veja que há questionamento, pois alguns defendem a teoria bipartida do crime, respondendo que crime tem apenas dois elementos, tipicidade e antijuridicidade. O questionamento preserva a noção inicial pressuposta que crime é um composto analítico de elemento somados. Não há nenhuma preocupação com a dinâmica relacional entre tais elementos, nem com forças externas que possam influir nesses elementos.

Enfoque zetético: Pode ser usado o mesmo conceito analítico, mas questiona-se a validade dos pressupostos de tais conceitos. Por exemplo, se o terceiro elemento para uns compõe o crime e para outros, não, pode-se afirmar o que é crime? Ou será que tais elementos foram ordenados incorretamente? Ou qual a finalidade de ordenar os elementos dessa forma? Por que a opção por esses elementos e não outros? Quais as foraçs que influem na constituição desses elementos? Por que a culpabilidade é questionada? Como ela é questionada? Onde efetivamente reside a diferença conceitual entre as teorias bipartida e tripartida? A culpabilidade pode hoje atuar efetivamente como elemento? Tais questões abrem as premissas das quais partem a análise do crime.

Uma palavra final, pois o texto já ficou longo.

O enfoque zetético depende da formação do pesquisador e de sua cosmovisão. Falei o óbvio, mas há alguns ainda que acreditam no pesquisador "ideal" ou "puro", aquele que pode, por meio de métodos objetivos, alcançar a "verdade" dos fenômenos. Será que isto é realmente possível? Fica a proposta de reflexão.