A Fronteira Entre o Perfeccionismo e o Mal Feito
Espalhados pelo mundo ainda existem cerca de 650 violinos da marca Stradivarius, boa parte deles nas mãos de colecionadores e disputados a peso de ouro entre os milionários. A notícia do último adquirido deu conta de que algo em torno de três milhões e meio de dólares precisou ser desembolsado pelo interessado na raridade. Cada Stradivarius é considerado uma obra de arte, embora não passe de um instrumento musical. Então, o que o faz ser considerado uma obra de arte comparada a um quadro de Picasso ou Leonardo da Vinci? Por que uma peça, aparentemente tão simples, continua revolucionando o mundo da música e da arte em geral? Esta pergunta tende a continuar sem resposta enquanto sua análise estiver ligada à simples descoberta dos meios utilizados pelo grande luthier - confeccionador de violinos. Se, durante sua época, enquanto ainda trabalhava, o segredo permaneceu desconhecido, agora, e pelos séculos afora, entender o que fez a marca Stradivarius tornar-se imortal e inimitável continuará fora do alcance da mente humana.
Antônio Srtradivari nasceu em Cremona, norte da Itália, por volta de 1644 e, até bem próximo de sua morte aos 93 anos, ainda encantava o mundo com sua técnica inigualável na fabricação de instrumentos de corda; e ele não era o único. Antes dele, a cidade já abrigava artesões conhecidos por fazer os melhores violinos do mundo. Há um contrassenso histórico na afirmação de que muitos dos segredos da fabricação foram levados com o mestre para o túmulo; isto porque era costume passar, a profissão, de pai para filho, o que não foi diferente com Srtradivari: seus dois filhos homens assumiram os trabalhos após sua morte. Sendo assim, deva ter sido lógico que, o que ele sabia e praticava tornou-se do conhecimento de seus descendentes.
Este pormenor insere-se com o propósito de tentar mostrar a diferença exercida por quem se dedica com amor, empenho e entusiasmo à determinada atividade. Esforçam-se os especialistas, menos do que copiar, em entender a arte e o diferencial da produção de Stradivari. Atribui-se desde à qualidade da madeira que era utilizada, à forma de esticar e prender as cordas, passando-se pela qualidade do verniz aplicado, a inclinação do braço, as barras harmônicas e outros detalhes. Por mais que se façam estudos e experiências nunca se chegará a um fator comum responsável pela genialidade do luthier se, dessas experiências, excluir-se as qualidades invisíveis do mestre. Prova disto é que, seus dois filhos, embora tivessem continuado a produzir ótimos instrumentos, nunca chegaram aos pés do pai em perfeição e genialidade.
A disposição de alguém em querer superar-se naquilo que executa, tendo como meta atingir os píncaros da perfeição é o que deveria permear todas as atividades humanas. A mecanização das atividades deixa no indivíduo comum o arrefecimento da ambição em melhorar cada vez mais; o costume do ordinário e do mediano insiste por dominar a vontade e o produto disto são obras comuns, destituídas, quando não de qualidade, destituídas de melhoramentos. Se o foco na superação do comum e trivial estiver fomentado pelo esforço e disciplina, o resultado será um produto diferenciado, em que o toque surgirá inconfundível e padronizado; era o que ocorria na produção de Antônio Stradivari. Sua visão diferenciava o bom do ótimo e o ótimo do espetacular com inexplicável facilidade. Daí para o insuperável afluía de seu interior aquilo do que carece, infelizmente, 90% dos homens.
A genialidade está dentro do ser humano comum como o embrião no ventre materno. Seu desenvolvimento vem com o tempo, dedicado a colher, do esforço e das oportunidades, o alimento vital construtor do tecido mais essencial à vitória: a vontade. É esta vontade de diferenciar-se que, quando isenta da presunção e da arrogância, adocica a nossa existência; não fossem o seres especiais o mundo seria insípido e incolor como a água. Contudo, ser especial ou considerado especial é pertinência do homem comum; não deixa de ser isto uma inversão de valores. Se os comuns veem os que se sobressaem como pessoas especiais, como então não serão vistos, por estes, os comuns? A nobre dignidade humana consiste, muito mais do que aceitar o outro como superior, em auto aceitar-se como um futuro sucessor das qualidades especiais vistas no outro. É desta aceitação positiva do auto reconhecimento que surge o germe da ação positiva em direção à genialidade.
Considerar genialidade um dom lotérico seria o mesmo que descartar a possibilidade da construção grandiosa, um convite à mesmice e à pasmaceira do fazer criativo.
Há um Stradivarius sequioso de realização no profundo de cada ser humano a espera de uma decisão à iniciativa. Repetir feitos mediais, tendo na consciência a certeza da impossibilidade ou o receio da tentativa faz inquietar-se o eu maior, dominante, e dá asas ao fazedor ordinário, o que chama para perto a satisfação com o menor, com o incompleto e aspirante. A concentração é o sustentáculo da ambição. Quando todos os sentidos recaem sobre cada ponto em particular, suscetível de aperfeiçoamento, a boa obra, a obra grandiosa e insuperável, alume no fim do túnel e marcha na direção do executor. Este encontro, este choque de entusiasmos e de objetivos conduzem a uma escala geométrica de supra realizações. Quando persistência e realizações se cruzam, a obra prima é mera consequência, posto que o fazer é coroado com a recusa da desistência.
A intenção humana é obviamente fazer o melhor. Mas quando examinamos um material mal acabado, um tecido que se rompe ao menor atrito ou uma peça que se desgasta com o mínimo de uso, perpassa no intimo a ideia do fazer pequeno que passou longe da preocupação com o usuário. A atenção desviada para fins que não sejam a completude artesanal ou a perfeita aplicação mecânica vai recair no apreciador final de tal obra mal feita da mesma forma que minimiza o caráter do engenhoso. Então, como lema, de alma e de consciência, seja partindo do fazer manual, mecânico ou cibernético, que não seja outra ideia a permear toda ação individual menor do que: “Daqui só sai o melhor.”