CHARGES E CARTUNS: UMA ABORDAGEM METODOLÓGICA

1. Considerações preliminares

A diversidade e o emprego de novas tecnologias na comunicação, sobretudo num momento em que estamos vivenciando os efeitos da “explosão do vídeo”, o que transforma a civilização da palavra em “civilização da imagem” (DURAND, 1998), força a escola a se reorientar acerca de suas práticas pedagógicas, no que se refere principalmente aos estudos dos atos comunicacionais. O espaço da linguagem, sem nenhum falseio da realidade, é muito menos o campo verbal e mais o campo visual, em decorrência da própria característica da nossa sociedade de consumo, contexto que contempla uma dinâmica informacional desenfreada.

Por essa perspectiva é que as imagens assumem uma posição privilegiada nas situações comunicacionais. Ao contrário do signo verbal, elas estariam, pois, mais radicadas no real. Assim, os textos iconográficos, por sua natural expressividade, por denotar certa imanência da coisa referenciada, teriam maior força para desencadear e expressar idéias de forma mais direta. O signo icônico é o signo mais semelhante em alguns aspectos ao que denota e, mesmo que muitos neguem aos fatos visuais o caráter de signo, é comum a sua interpretação em termos lingüísticos (ECO, 2003).

2. Problemas no reconhecimento e na leitura

As charges e os cartuns aparecem no universo textual e nas situações escolares como modelos de leituras iconográficas. As duas formas comunicacionais se aproximam e se distanciam discretamente e, por essa razão, é muito comum serem alvos de abordagens equivocadas e, muito mais, de leituras impressionistas. Isso tem contribuído com a má formação de leitores e com o fracasso nos concursos em geral, ocasião em que o visual, assim como o texto verbal, é apresentado como instrumento para interpretação, compreensão e para que se busque, a partir dele, uma variante que demonstre maior ou menor capacidade do leitor, candidato, quanto ao seu domínio do raciocínio crítico. A idéia, então, é a de contribuir para a dissolução desses problemas, colocando em posições contrárias as duas modalidades e sugerindo, assim, algumas maneiras de abordagem do texto visual, dando ao aspecto formal um caráter funcional para a apreensão do conteúdo.

3. Charges e cartuns: por um conceito vocabular

O primeiro passo para a compreensão da nossa abordagem é anular da palavra cartum a sua significação de origem. O termo cartoon, como figura no dicionário inglês, designa desenho em termos generalizantes, mas aqui entra apenas como modalidade, como um subgênero do universo iconográfico. A palavra charge – um outro subgênero –, ao contrário, recebe e aceita sua herança denotativa, pois significa “carga”, “carregamento”, “cargo público” – razão pela qual é recorrente o retrato de situações políticas –, por assim dizer, charge é “fardo” denotado nos traços da figura representada. As duas categorias concorrem na ação de desvelar situações do cotidiano, uma abordando situações subjetivas em que o foco é e está no próprio sujeito, outra trazendo ao centro discussões de natureza mais cósmica e revelando um sujeito pressionado pelo seu meio.

4. Charge: da origem às principais características formais

A charge e o cartum são representações em “monoquadro” e este detalhe, somado à proposta de parodiar situações do cotidiano, seriam, talvez, as únicas características comuns entre os dois subgêneros. Quanto à origem, a charge teria nascido da sua relação profunda com a caricatura, razão pela qual não se concebe esta modalidade alheia ao traçado caricato. Todavia, não é a simples presença da caricatura, inserida num quadro qualquer, que irá conferir a esta a condição de charge. Para Vladimir Propp (1992), na sua pesquisa sobre a comicidade e o riso, a “charge amigável” se limita com a caricatura e por isso não desencadeia significação que vá além do simples efeito visual. O que podemos entender disso é que não existe entre o verdadeiro chargista e o seu objeto representado nenhuma relação cordial. Por outro lado, nenhum ser, em sã consciência, tomado por referência nas charges teria prazer em dependurar num quadro uma charge sua. Efeito contrário seria natural aos que são representados nos desenhos em que se manifesta a caricatura simples, ou, nas palavras de Propp, “na charge amigável”. Nesses casos, o exagero não tem implicações de sentido com o contexto e o riso do leitor, que será tratado mais detalhadamente a seguir, não passará de uma manifestação afetuosa de cordialidade.

Para compreender uma charge, devemos acompanhar também sua movimentação. Bergson (1983, p.22) comenta que a caricatura consiste na captação de certo movimento do corpo da figura retratada que seria praticamente imperceptível a olhos comuns, como certos cacoetes, o esboço de uma careta, que passaria a ser visto mediante ao processo de ampliação. Na charge essa movimentação não se limita ao corpo, pois corresponde também a uma mobilidade social que deve ser reprovada pelo corpo social.

5. Cartum: da origem às principais características formais

O cartum, por sua vez, teria surgido da sua relação direta com as “tiras” dos periódicos jornalísticos. O cartunista não trabalha com a idéia imediata da caricatura e quando assim faz, admitindo ou não seu grau de consciência, incorre, mesmo, em caricatura, charge, ou tira de personalidade social ou política. Isso decorre do fato dos artistas dessa área serem dotados de habilidades que lhes permitem o trânsito nos diferentes subgêneros do desenho. Contudo, enquanto cartunista do subgênero cartum, este privilegia o traço simples e a construção de personagens esquemáticas. Os referentes são figuras pouco precisas, justamente para que o leitor não identifique nelas um correspondente humano específico – mas “o qualquer um” – razão pela qual os desenhos mais parecem esboços que não revelam, ou não querem revelar, nem apontar para os detalhes de uma figura objetiva. Ao contrário das charges, onde se vê alguns contornos de tridimensionalidade, no cartum é muito comum a exploração apenas em dois planos, o bidimensional, altura e largura, dos desenhos. Essa é a razão por que as imagens são, quase sempre, figuras planas, chapadas à face branca da folha. O ser representado no cartum é o sujeito no seu anonimato social. Por isso, qualquer objetividade seria limitadora e desnecessária. A proposta do artista do cartum é a de parodiar situações do cotidiano, mostrando um sujeito pressionado pela estrutura (ou desestrutura) social. As diferenças entre os dois textos são inúmeras e serão colocadas adiante como pares opostos com a finalidade de melhor validar o presente estudo e de dar maior visibilidade ao leitor que se propuser a comparar as duas formas textuais.

6. Uma leitura de cunho realista nos quadros de charge

Uma outra forma de identificar, diferenciando os dois modelos textuais, é pela noção de gêneros no seu sentido tradicional. Isso nos faz reportar aos estudos literários, porque a leitura de uma charge é, sem dúvida, a leitura de um texto realista. Um chargista, assim como um autor realista, mergulha na interioridade do ser representado para, num segundo momento, fazer dele emergir todas as suas características negativas. Estas, por sua vez, brotarão do interior da personagem como sinuosidade e/ou deformidade das partes. Há, portanto, em cada exagero uma marca de intencionalidade do seu autor. Ao chargista compete a função de captar as situações espirituais, vistas como vício do caráter no princípio aristotélico, ocultadas no sujeito, transformando-as em objeto de riso por via da caricatura. A charge nasceria, então, no momento em que algo é feito e ocultado, ou tentado ocultar pelo sujeito da ação, tornando-se, assim, pouco ou escassamente notado, mas que viesse a ser descoberto à luz, como uma espécie de desvelação do “ato falho”. Seria este ato falho que, pelas mãos do chargista dada sua maneira irreverente de olhar as coisas, ganharia forma cômica e se juntaria ao referente como característica da forma representada. Um bom exemplo seria uma ação política, um ato de corrupção, cujo desfecho fosse infeliz para o seu autor. Na busca de um efeito risível, em situações como essa, as charges representariam personagens pressionadas como seres castigados pelas próprias ações. E no ato da leitura isso ficaria latente aos olhos do leitor, pois a atenção deste estaria exclusivamente direcionada para o sujeito representado na sua subjetividade. A significação textual saltaria da sinuosidade e da deformação das partes coladas ao referente. Se desejarmos elaborar um conceito para as charges, dentre as tantas possibilidades uma seria a seguinte: trata-se de um texto predominantemente visual de valores correspondentes ao da crônica, marcado pelo elemento circunstancial e que desvela a comicidade das ações dos sujeitos representados, para o qual se espera uma reação risível da parte do leitor.

7. Uma leitura de cunho naturalista nos quadros de cartum

Se, por um lado, afirmamos que a charge tem propriedades do gênero realista, por outro podemos solicitar a hipótese de que o cartum pertence à corrente naturalista. Nos dois casos os personagens são representados como seres pressionados. Na charge, porém, as pressões brotam das ações do próprio personagem, enquanto, no cartum, o que pressiona é o meio social, é o confronto do homem na sua relação com a urbis. Enquanto a charge é o retrato do homem e de suas ações, o cartum é o retrato do homem em seu estado, presa de uma atmosfera social nebulosa. É importante notar também que, no cartum, a presença do homem não é uma exigência da qual não se pode esquivar o artista. Alguns quadros limitam-se a trabalhar com elementos cujas figuras, quer sejam ícones, índices ou símbolos, levam o leitor a uma leitura do próprio homem, mas não de maneira direta, nem exigindo ao centro o desenho da figura humana. A saber, no cartum, a leitura do ambiente supera a leitura do indivíduo, pois é aquele que dá o tom monocórdio da degradação deste. A imagem degradante dos quadros soa como uma tentativa do artista de desvelar ao leitor um mundo em situação de caos. Na definição poderíamos construir o seguinte conceito: o cartum é uma representação de predominância visual, afeiçoado ao gênero lírico, pois aborda temáticas abstratas e mais universalistas – solidão, abandono, miséria, riqueza, egoísmo, vida, morte, medo etc. – pondo ao centro a discussão da condição humana.

8. Reconhecimento da charge e do cartum por via dos personagens

As posições adversas das duas modalidades textuais – porque interessa aqui mostrar a diferença entre charge e cartum – estão também condicionadas aos personagens é à forma como tais subgêneros a eles se relacionam. A conclusão a que chegou o presente estudo é de que são duas as categorias de personagens que povoam as charges e os cartuns estando os mesmos respectivamente classificados como catárticos, nos quadros de charges, e simpatéticos, no caso dos cartuns.

Personagem catártico - No caso da charge, o personagem tem a acentuada semelhança com o modelo aristotélico do ante-herói. São personagens de natureza catártica os tipos que são flagrados em situações de peripécia, cujos sofrimentos são decorrentes de pressões sofridas em razão de suas próprias ações. A presença da hibris, como ato falho que é punido através da configuração do ridículo desvelado pelo exagero, permite, pois, ao leitor uma espécie de purgação por via do riso. E será através das situações risíveis que o leitor irá chegar às ações do personagem a fim de condená-las, condenando por extensão o seu autor (das ações), apresentado nos quadros como ser de grandeza inferior. Numa leitura dos efeitos, poderíamos dizer que o personagem catártico, a saber, tende a provocar no leitor a reflexão e o julgamento moral. É natural aos leitores de charges nunca se colocarem do lado das personagens, mas, ao contrário, castigá-los com atos próprios da derrisão.

Personagem simpatético – O uso da figura simpatética no cartum, faz com que o leitor se posicione freqüentemente do lado do personagem. Mesmo quando no trato de situações risíveis, porque os cartuns também trabalham com a presença do riso, embora em segunda instância, estas provocam no ato de recepção um riso simpático e comiserado o que, por tendência, pode despertar no leitor sentimentos humanitários. A natureza dos personagens simpatéticos decorre de temáticas que, uma vez sendo mais líricas e universalistas, tendem a provocar no leitor uma descarga maior de sentimentalismo e solidariedade. É por essa razão que, nos quadro, os personagens quase sempre são vistos como seres infelizes e passivos. Nas duas situações, tanto na charge quanto no cartum, o riso é de valor preponderante. Quando não é uma forma transitiva para se chegar a um determinado significado, é uma forma objetiva de expressar o sentimento produzido por uma determinada leitura.

9. As charges e cartuns quanto ao uso das figuras de linguagem

A leitura das charges e dos cartuns é também uma leitura por figuras de linguagem. As duas modalidades trabalham, quase sempre, com figuras distintas, o que mais uma vez reforça a diferença entre as duas categorias.

Nas charges – A sinédoque, uma das variantes da metonímia, é a figura de linguagem que se apresenta nas charges com mais freqüência. As imagens de caricaturas são constituídas de partes de equivalência simbólica – lembrando ao leitor a presença de um animal ou de uma “coisa” e não somente a figura do sujeito caricaturado – que o destinatário reconhece e interpreta. A significação do discurso, normalmente, está colada às partes que o chargista constrói e dá um tom acentuado. Um nariz mais alongado do que o natural pode significar que se trata de personagem mentiroso, numa alusão à fabula do menino de madeira, Pinóquio. Aproximar o rosto do personagem do formato de uma pêra pode dar a ele um aspecto de tolo ou de coisa parecida. Esse recurso, provavelmente, é o mais antigo na história das charges, pois já era visto na França dos oitocentos quando, pelas mãos do caricaturista francês Honoré Daumier, surgiam naquele país, desenhos da figura do rei Louis-Phelippe com o rosto em formato de uma pêra. A idéia, que na época era mais de brincar com o vocábulo Poire, que no francês tanto significa pêra, quanto tolo, trouxa, foi herdada pelos chargistas brasileiros para representar algumas personalidades do universo político. Num último exemplo, um olho torto, a olhar para lugar nenhum, pode denotar que o personagem é um ser que vive perdido e, assim por diante, possibilitar diversas leituras.

Enfim, são muitas as formas de construção das caricaturas cujas partes exigem do leitor a eleição de um índice para que se inicie uma boa reflexão. É muito comum ao chargista vincular a uma figura da base – alterações a que chamamos de encaixamento de natureza metonímica ou sinedóqüica, pois as caricaturas são figuras subordinadas – traços característicos de animais ou de coisas. Normalmente, as partes que são coladas aos referentes querem expressar uma determinada verdade que o autor enxerga na interioridade espiritual dos personagens. Mesclar na figura de um homem partes da figura de um animal é querer, por exemplo, dizer que se trata mesmo de um homem, mas cujas características espirituais o nivelam ao aspecto de um determinado animal. O que fica mostrado na exterioridade do personagem é aquilo que o espírito tenta esconder, mas que as ações acabam por desvelar.

Nos cartuns – A figura de linguagem que predomina nos cartuns é a metáfora. Como já dissemos antes, o cartum tende mais ao lirismo e, por essa razão, constrói-se pelo recurso das imagens similares. A metáfora coincide em maior grau com a temática dos quadros e, mesmo em cartuns que pretendem o puro riso visual – o riso esvaziado de significação – é na metáfora que encontraremos o elemento dissonante causador da ação risível.

A construção dos quadros de cartum dá-se pela inclusão de imagens que saltam inteiras e autônomas de um plano para outro, numa espécie de encadeamento, o que constrói, no texto, a correspondência metafórica. As figuras dos cartuns, pensando numa sintaxe do texto visual, são coordenadas e, se nos orientarmos também pela hierarquia das imagens, são dominantes para a compreensão do discurso visual.

É preciso esclarecer, entretanto, que, em nenhum momento, podemos advogar pela exclusividade no uso das respectivas figuras de linguagem. Assim como o cartum trabalha com o uso da metonímia, a charge poderá recorrer à metáfora em determinadas ocasiões. O que pretendemos mostrar é que, dado à temática e ao aspecto formal, é possível pensar em predominância de uma figura em relação a outra. O que se pode afirmar acertadamente é que, tanto charges, quanto cartuns trabalham na disseminação de sentidos através de alegorias e imagens que se condensam ou se deslocam, recebendo e ofertando significados para o contexto em que estas estiverem inseridas.

10. Charges e cartuns e as relações de causa e conseqüência

A configuração categórica da charge e do cartum está também assentada no uso pré-determinado das marcas circunstanciais. Quando numa modalidade for possível notar mais acentuadamente a causa, é muito correto que o leitor esteja diante de uma charge. Isso ocorre pelo seguinte motivo: quando o autor constrói uma charge ele tenta flagrar o “sujeito referente” na instância de uma ação ridícula. Para que fique claro ao leitor a qualidade do caráter desse referente, motivo hipotético pelo qual teria brotado a ação, o desenhista vai deixar na figura traços bastante peculiares, marcadores e causadores da ação condenada de início pelo artista e que, segundo sua ótica, deveria ser condenada, agora num segundo momento, também pelo público leitor.

Por outro lado, caso o texto visual apresente traços mais marcados da conseqüência, é bem mais provável que se trate de um cartum. É próprio dessa categoria focar o sujeito sofrendo as ações não dele, mas de uma força externa a ele. Portanto, a causa não está nele e as ações causadoras já ficaram no passado, deixando na presença do leitor apenas o sujeito sofrendo as contradições dessas ações.

Contudo, não se pode dizer que o uso de uma determinada circunstância neutraliza a presença da outra. Trata-se apenas de reconhecer como mais importante a relação adverbial que tem maior relevo no texto. Se na expressividade das imagens o desenho de um determinado político é acrescido de um nariz maior que o da sua matriz, ou seja, do que o nariz do sujeito em si, é quase certo que o desenhista quer dizer que o sujeito representado no desenho mentiu, ou mente. A mentira está fora do texto, mas na intratextualidade está o nariz comprido, a causa, marca que universaliza os seres mentirosos, numa apropriação das histórias infantis. Então, o nariz comprido que aparece colado à figura da base seria o índice da causa. A mentira seria a conseqüência. Esta é evocada para a interioridade da leitura por uma relação de inferência da parte do sujeito leitor.

No caso do cartum não seria diferente. Ocorreria basicamente uma inversão que, por sua vez, marcaria distinção no plano da expressividade. Ou seria um ser em farrapos; ou alguém de cuja expressão o leitor abstrairia o caráter do ser sofrendo; ou por uma imagem ligada ao texto por uma relação metafórica e assim por diante. O ser deixado numa ilha, por exemplo, pode significar isolamento social ou familiar, solidão humana ou de idéias, ser em estado de carência e muitas coisas mais. Mas a representação será sempre uma conseqüência, cuja causa deve, pela mesma forma, ser colhida pelo leitor na relação do texto com a sua exterioridade.

11. Charges e cartuns: da relação circunstancial ao jogo dos implícitos

A natureza das charges e dos cartuns, levando em consideração a presença mais marcada de uma determinada circunstância e o quase apagamento de outra, abre-nos mais uma possibilidade de reflexão, desta vez, no tocante ao uso dos implícitos textuais, entendidos como pressupostos e acarretamentos.

É a razão de o chargista trabalhar na evidência da causa no plano da expressão, que nos permite dizer que o seu ofício está focado no pressuposto. O acarretamento ficaria então no extracampo. E o leitor chegaria até ele pela sua, maior ou menor, capacidade de inferência em relacionar o desenho ao seu determinado contexto.

O cartunista, por sua vez, no tocante ao plano da expressão faz justamente o contrário. O foco de seu texto é o ser em condição de estado, portanto, inserido como acarretamento de ações que estariam no extracampo. Mais uma vez, o resgate da compreensão estaria a cargo do leitor na sua relação com o contexto do desenho. Mas seu olhar agora estaria voltado para os pressupostos acerca das ações que teriam levado o sujeito, personagem ou ambiente, àquela situação referenciada no cartum.

Portanto, a leitura da charge e do cartum é a leitura dos implícitos na sua relação contrária. A charge oferece ao sujeito uma causa, por assim dizer, um pressuposto, fazendo com que o mesmo busque compreender o texto pela pesquisa, relação de inferência, à conseqüência, vista aqui como acarretamento. No caso do cartum, o comportamento é exatamente o contrário.

12. Um pouco de metodologia para a situação escolar

As charges e os cartuns não são discursos isolados na cadeia comunicacional. Sua utilização em contextos escolares é, por isso, bastante produtiva, pois coloca o aluno frente ampla discussão que não incide apenas ao nível da linguagem no seu sentido restrito. Uma das riquezas dessas formas textuais está justamente no que elas contribuem para as diversas abordagens. É possível analisar uma charge ou um cartum sob três perspectivas diferentes: intratextual, intertextual e extratextual. A intratextualidade contemplaria a abordagem formal, características de produção do autor, recorrência às figuras de linguagem, relação de causa e conseqüência, enfim, representação formal dos temas no interior mesmo dos textos. A abordagem intertextual permitiria ao professor realizar o cruzamento do assunto da charge ou do cartum com as diferentes áreas do conhecimento, principalmente com a história dos livros e dos jornais. É muito comum e bastante produtivo fazer correspondência dos quadros de textos visuais com a literatura, o folclore e a música. Mais simples das três formas de abordagem é a extratextual, mas talvez a que mais importa para se fechar o ciclo da análise do texto visual. Essa análise consiste no olhar do leitor do texto para a sua exterioridade e da exterioridade para dentro do texto. É, pois, nesse processo dialético, dentro e fora do texto, que o leitor vai construir as relações significativas da vida com aquilo que lhe comunicado pelas imagens.

13. Conclusão

Advogar pela construção de um método de leitura das charges e cartuns parece ser a ambição do trabalho exposto. Todavia, este será possível somente a partir do momento em que o leitor conseguir separar os dois modelos textuais em todos os níveis. Esta é a razão porque as diferenças possíveis foram colocadas no presente trabalho como pares opostos. A idéia de dividir as duas formas textuais em subgêneros do “gênero texto visual” é uma tentativa de colocar um pouco de ordem naquilo que é produzido e abordado nessa área e, assim, dar ao estudo um traço mais peculiar de funcionalidade.

As observações levantadas neste estudo não é uma verdade sobre a qual nada mais se possa dizer ou cujas idéias não se deva refutar. Ao contrário, são postulados apenas, dado ao vazio teórico visto nesta área, pois nem os estudos de literatura, nem os de lingüística e mesmo os da arte do desenho ou da pintura têm dado o devido crédito ao texto visual no que concerne à charge e ao cartum. Assim, enquanto cuidam dos objetos tidos como específicos por essas correntes, deixam uma enorme lacuna nos estudos de produção textual e relegam toda a produção dos desenhistas, que se dedicam diariamente a esse modelo discursivo nos jornais, revistas e, mais recentemente, nos sites de Internet, a uma existência marginal no campo da linguagem. E é justamente a ausência do pesquisador da presença desses textos que tem acarretado prejuízos enormes para a formação escolar, uma vez que toda a produção discursiva deve ser levada para o contexto de sala de aula. O teor crítico de que são portadores os textos dessa natureza é importante para a evocação de leituras e análises, contribuindo para a formação de um leitor crítico e observador da sua realidade social.

14. Referencial bibliográfico

1. ARISTÓTELES. A Poética Clássica. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

2. BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.

3. BAUDELAIRE, Charles. Caricaturas de Honoré Daumier por Charles Baudelaire. Porto Alegre: Editora Paraula, 1995.

4. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

5. CAMPOS, Gedeon Pereira. Humor Visual: leitura de charges, cartuns e tiras de humor. Relatório de pesquisa: PIBIC-PROLICEN. Goiânia: UFG, 2001.

6. DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 1. ed. Rio de Janeiro: Difel, 1998.

7. ECO, Humberto. A estrutura ausente. 7.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

8. FARIA, Maria Alice. Parâmetros curriculares e literatura: as personagens de que os alunos realmente gostam. São Paulo: Contexto, 1999.

9. FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. Leitura sem palavras. 4. ed. São Paulo: Ática, 2000.

10. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 14. ed. São Paulo: Cortez, 1986.

11. FREUD, Sigmund. Os chistes e a sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

12. HELBO, André. Semiologia da representação: televisão, teatro, histórias em quadrinhos. São Paulo: Cultrix, 1975.

13. JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1970.

14. MASSIRONI, Manfredo. Ver pelo desenho: aspectos técnicos, cognitivos, comunicativos. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

15. PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.