Nosso desafio

Wilson Correia

Leio na mídia que o psicanalista Contardo Calligaris e a também psicanalista Anna Verônica Mautner fizeram referência à vida grupal na FLIP – Festa Literária de Paraty.

O primeiro disse: "Eu fui membro do Partido Comunista, mas hoje seria incapaz. Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal".

Penso ser extremamente complicada a atribuição dessa identidade ao mal, 100% depositado no grupo. Não podemos esquecer que só o veneno é 100%. E veneno significa morte.

Depois, tem o seguinte: quem disse que para se viver e pertencer a algum grupo teríamos que desistir “da nossa singularidade”? Não seria na dialética que medeia as relações “eu-tu”, “eu-nós”, “nós-nós” que se situariam as condições para a elaboração antropossocial de estilos existenciais?

A segunda afirmou: "Adoro ser transgressora, se não pertencer, como vou transgredir?"

De fato, quem pode o maior, pode também o menor. Aquele que participa, direta ou indiretamente, da elaboração de regras para a vida grupal torna-se criador da própria normatividade e, como tal, pode transgredi-la. Aliás, sem condições reais de transgressão a vida seria um verdadeiro inferno.

Mas a vida grupal parece não ser viável quando sua composição é preformatada, predefinida e predeterminada, como parece sugerir o “Discurso da servidão voluntária”, de Etienne de La Boétie, em que o “UM” condiciona a vida da “carneirada”. Um modelo societário em que a hegemonia do singular depende da escravidão de outrem é uma excrescência difícil de suportar.

Nessa perspectiva, é oportuno lembrar que o “super-homem” nietzscheano só seria possível se, lado a lado com ele, também concebêssemos as nulidades pigméias, os minimalismos humanos que legitimariam o humano titã que Nietzsche visualizou. Isso faria algum sentido?

Talvez nessa linha possa ser considerada a “ditadura do proletariado” proposta por Karl Marx e Friedrich Engels, em nome do socialismo, modo de produção material da vida em que a máxima seria: “De cada um segundo suas forças, a cada um conforme sua produção”; o qual, aliás, haveria de evoluir, deterministicamente, para o modelo societário fundado no comunismo, no qual a lei econômica máxima seria: “De cada um segundo suas forças, a cada um conforme suas necessidades”. No entanto, um sistema econômico e social que prioriza a vontade de justiça aniquilando a liberdade não passa de um absurdo.

Idealismos à parte, de direita ou de esquerda, liberais ou socialistas, o que uns e outros parecem não enxergar é que a vida humana se estende, repousa, reside e se dinamiza naquela dialética entre o particular (indivíduo) e o geral (grupo), entre o singular (pessoa) e o universal (humanidade, sociedade).

Por ser social e político, o humano é aquele que se encontra no berço da relação e do vínculo, razão pela qual a pertença é condição de possibilidade para que ele possa construir um estilo existencial coerente com a sua singularidade (liberdade), sem o que o outro não faz o menor sentido (justiça).

Não é sem motivos que, para nascer, cada ser humano necessita, no mínimo, de dois outros seus iguais. Do nascer ao morrer, o entrelaçamento do “meu” com o “teu”, do “eu” com o “nós” torna-se uma constante. Na predominância totalitária de um desses pólos é que reside o pior dos mundos possíveis.

Individualistas puros aniquilam o bem comum, a coisa pública, o “nosso”, que não tem um dono individual por ser de todos nós. Coletivistas puros matam o bem particular, a coisa pessoal, o “meu”, que não pode ser de todos porque condição indispensável a que a vida possa prosseguir.

Talvez seja oportuno lembrar Aristóteles: “A virtude está no meio”. No meio dialético que, não sem tensões e contradições, abre caminho à existência mediante a relação diuturna entre o pessoal e o social. Entender e praticar essa dialética aberta, que une justiça e liberdade, parece ser o único desafio que vale a pena considerar.