A quem pertence a criança?

Wilson Correia

Fazíamos o doutorado na UNICAMP quando um palestrante contou que Joãozinho, tendo feito poucas e boas na escola, motivou o recado da professora à mãe do aluno nos seguintes termos:

– “MÃE, hoje O SEU FILHO passou da conta: beliscou todos os coleguinhas, derrubou a merenda na Joaninha, xingou a professora e mandou nossa devotada Diretora para os quintos dos infernos. Dê um jeito nele!”.

Qual não foi a surpresa da ensinante quando, no dia seguinte, recebeu a resposta:

– “PROFESSORA, na tarde de ontem O SEU ALUNO não foi um bom menino: colocou fogo no rabo do gato, bateu nos vizinhos e, ainda por cima, xingou o pai e os avós. Dê um jeito nele!”.

A quem mesmo pertence Joãozinho? Ou seja, quem é o responsável pelo acompanhamento e pela educação desse menino?

Hannah Arendt, ao analisar o divórcio entre mundo adulto e mundo infantil, alertava: “A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tão pouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT, H. ‘Entre o passado e o futuro’. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 247).

Arendt sugeria, aí, que a relação entre adultos e novatos é fundamental em um processo educativo. Parece desamor à criança jogá-la no mundo e deixá-la à própria sorte.

Mas evitar esse desamparo, asseverava Arendt, não cabe apenas às pessoas, mas, também, à sociedade. Afirma ela: “Assim, o que torna a crise educacional (...) tão particularmente aguda é o temperamento político do país [Estados Unidos], que espontaneamente peleja para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos, entre dotados e pouco dotados, entre crianças e adultos e, particularmente, entre alunos e professores. É óbvio que um nivelamento desse tipo só pode ser efetivamente consumado às custas da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado entre os estudantes” (ARENDT, H. ‘Entre o passado e o futuro’. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 229).

Mundo adulto que é forçado a deixar de lado a convivência com o mundo infantil e uma sociedade cujas estruturas não possibilitam condições reais que viabilizem a superação desse divórcio: eis os problemas que afetam a educação das novas gerações, incidindo diretamente na autoridade de pais e professores frente às crianças.

Pois eis que me chega uma nota de repúdio. Ela tem a ver com esse assunto. Trata-se de uma manifestação da “Marcha Mundial das Mulheres” contra um parecer do Conselho Nacional de Educação brasileiro, órgão do MEC, que, no dia 7 de julho, aconselhou o fechamento das creches durante o período de férias.

Diz a nota:”A falta de creches prejudica muito o direito das mulheres ao trabalho. São elas que deixam seus empregos por não terem com quem deixar as crianças, que pagam com seus baixos salários uma escola particular ou outra mulher para cuidar dos filhos, ou ainda ficam dependendo de favores de parentes. Soluções individuais, as quais somos contra, uma vez que garantir creches públicas para todas as crianças é um dever do Estado”.

Triste sociedade cujas mães colocam no teto de seus direitos as condições mínimas para trabalhar e que não consegue garantir a convivência entre adultos e novatos humanos! Um regresso, às avessas, à 'República' platônica, na qual não há família porque os filhos pertencem ao Estado?

Mas... e o pertencimento humano, onde é que ele foi parar?