Docência com consciência

Wilson Correia*

Após informar que a “Greve de jogadores [de futebol] adia início do Campeonato Espanhol”, um colega elabora o seguinte argumento: “Os jogadores da NBA estão em greve a algum tempo (sic), agora á vez (sic) do jogadores de Futebol da liga espanhola (sic), é a prova da gravidade da crise econômica capitalista, que atinge inclusive os atletas milionários. Pensemos o quanto estão sofrendo os trabalhadores que vivem com baixos salários, esse é um dos motivo (sic) das ações na inglaterra (sic), e no norte (sic) da África. Nenhuma perda de direito para os trabalhadores, a culpa dessa crise não é nossa!! (sic para todo o texto)”.

Em criança, jogávamos o jogo: “De quem é a culpa?”, espontaneamente estabelecido. Éramos iguais a Adão e Eva, o casal que, na infância da infância da humanidade, lançou mão de sua infantilidade para jogar na serpente a culpa por algo que, até onde vai nosso entendimento, não tinha nada a ver com cobra. A cobra acabou entrando de gaiata no enredo.

Certa vez, um dos meus irmãos escreveu um palavrão “inescrevível” bem ao lado da porta principal de nossa casa. Meu pai achou aquilo um despropósito e começou a indagar um a um: “Foi você?” –esse era o aperto que colhiam os ouvidos de pelo menos quatro de nós (somos nove irmãos). De negativa em negativa, meu pai chegou ao verdadeiro autor do palavrão, mas o “escrevente”, como fora o último a ser indagado, teve tempo suficiente para “bolar” seu álibi. Então, ao ouvir: “Fulano, esta letra é tua”, ele argumentou: “Foi sicrano, pai, que teve a ousadia de alterar a própria letra para ela se parecer com a minha e me incriminar”. Como meu pai não era de deixar passar batido, despejou sobre os quatro, todos culpados, a descompostura e a espinafração que, em verdade, cabia só a um de nós.

O caso de Adão e Eva e esse episódio do qual me lembro mostram que essa história de “procurar culpado não funciona”. Pode ser uma resposta infantil para “coisas de adultos”. No caso específico aqui em pauta, a crise do capitalismo seria culpada por baixos salários, greves e paralisações dos processos produtivos. Há a inferência, também, de que nós, professores, não estamos nem entre os que recebem altos salários nem junto àqueles que recebem baixos salários, mas supostamente confortáveis.

Primeiramente, nesse caso, o argumento de que não seríamos culpados não nos tiraria a responsabilidade. Se não fôssemos culpados, seríamos responsáveis. E isso se compreende facilmente: “Quem pode o maior, pode o menor”. Explico-me: na gênese lógica das coisas, foi o sistema, o capitalismo e a crise que criaram o homem ou foi o homem que criou o sistema, o capitalismo e a crise? Se fomos nós, os humanos, os criadores disso tudo (maior), então podemos efetivar as ações necessárias para modificá-lo, alterá-lo, transformá-lo, e até revogá-lo (menor). Mas, no fundo, essa análise revela que, nesse caso, somos tanto culpados quanto responsáveis.

Além disso, o argumento falacioso acima apresenta outros problemas, lembrando que falácia ou paralogismo é o argumento que apenas na aparência é coerente, correto e certo, mas que, nas perspectivas formal e material, revela-se incoerente, incorreto e falso. Vejamos!

Mesmo que não fôssemos culpadas, seríamos responsáveis pelo estado atual de nossa vida profissional. Mas somos as duas coisas e, por elas, temos que responder –e, aí, até braços cruzados tornam-se uma resposta (de indiferença, é claro, mas uma resposta).

Depois, há uma “essencialização” do capital e da crise, como se eles fossem “autossubsistentes”, que existissem de si, por si e para si mesmos, independentemente de nós. O capital e a crise seriam coisas “fora de nós” e de nosso alcance, como se contra eles nada pudéssemos fazer. Na verdade, nós somos o capital e forjamos o álibi da crise para nos safarmos tanto de nossa culpa, quanto de nosso dever de dar respostas sobre ela.

Ademais, nós, professores universitários, pagos pela sociedade para desempenhar a tarefa de pensar sobre essa sociedade, não temos o direito a tamanho fatalismo, a tão absurdo derrotismo em face de algo que nós mesmos criamos, mas que queremos na lista daquelas “coisas do destino”, determinadas e inatingíveis.

Se a sociedade que nos remunera para que pensemos e procuremos soluções para os problemas humanos, sociais e outros que essa sociedade vivencia nos vê incompetentes para pensarmos sobre a nossa própria carreira, para buscarmos soluções para os problemas que nos afligem, o que mais ela poderá esperar de nós?

Para complicar, não estamos sendo tratados com o respeito que a dignidade de nossa função pública exige nem pelos governos de plantão nem pelas entidades representativas de nossa categoria. Nas atuais negociações com os professores das Ifes do Brasil, o governo adota a estratégia de ensinar o cinismo e o desrespeito ao nos tratar como “coisas” procrastináveis. Ele marca reuniões para marcar outras reuniões, como se a educação não fosse paga pelo povo, mas coisa particular. Como se nós pudéssemos ser levados adiante com lábia e barriga. Depois, essas mesmas autoridades serão aquelas que irão adotar a retórica de “valorização do magistério”, da “qualidade na educação” e do “respeito ao professor”, esquecendo-se que seu exemplo em contrário é que, de fato, funciona perante a sociedade.

Nossas entidades representativas, à medida que se aparelharam, partidariamente falando, abriram mão de lutarem em prol daquilo para o que existem: para fazerem a defesa dos interesses da categoria. Figuramos entre a classe assalariada e, perante o capital, também somos explorados e escorchados. Já passou da hora de termos entidades sindicais autônomos e independentes, às quais fossem proibidas as ações partidarizadas com a finalidade de somente fazerem o jogo político, e nada mais.

Especificamente sobre a crise, vale lembrar que, nesse modo de produção material da vida, quem nunca esteve ou está em aperto é o capital, que “vai muito bem, obrigado!”, razão pela qual não caio nessa conversa de “crise”. Os pouquíssimos humanos que se locupletam com o capitalismo nunca estiveram em crise. “Crise” é um termo retórico e ideológico sempre colocado em uma posição imponderável, fora de nós, algo contra o que nada poderíamos, tão-somente para se justificar os desmandos do sistema capitalista que nós mesmos alimentamos. Quanto a encontrarmo-nos em zona de conforto, isso, creio, cada um pode dizer com maior propriedade.

Em face de tudo isso, parece que aquilo de que precisamos é de “docência com consciência”. Não é hora, penso, de assistirmos a colegas ao nosso redor tirando o “olho” da reta. No fundo, aquela serpente de Adão e Eva ainda está por aí, à espreita. Ela pode não ser culpada de nada, mas está doida para cegar. Louca para encontrar um “olho” fora da reta para adentrar. Não é sem motivos que os “negociadores” de Brasília revelam-se verdadeiros encantadores de serpentes, essas que eles não vão querer ter em mãos, mas enfiar em algum “olho” professoral.

Sim, docência com consciência, até porque não temos o direito de sermos infantis. Ou será que, em meio a todo esse imbróglio, nós podemos requentar nosso antigo jogo sobre “De quem é a culpa?” ao qual, em criança, entregávamos com uma ingenuidade angelical?

* Wilson Correia é Adjunto em Filosofia da Educação no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.