Fofoco, logo existo!

Wilson Correia*

“VER – OUVIR – FOFOCAR. Como é fácil imaginar o que ELE vive fazendo! –Também, que posso ver de mim sem meu espelho –que é o outro?” (GAIARSA, J. Â. “Tratado geral sobre a fofoca: uma análise de desconfiança humana”. São Paulo: Summus, 1998, p. 7).

Uma amiga me conta e eu fofoqueio neste tópico frasal: Deus inventou a verdade, o Diabo sobrepôs-lhe a mentira.

Relata minha amiga que Deus encarregou São Pedro de contratar o maior carro de som que havia nas plagas celestiais. São Pedro –aquele que traiu Cristo sei lá quantas vezes, mas veio a lograr santidade– perguntou qual a serventia para tal veículo. Ao que o Todo-Poderoso respondeu:

– Para botar na rua, antes das sete da manhã, como é costume em certa cidade lá do Recôncavo, e anunciar que eu acabei de criar a verdade.

Foi aquela correria para atender ao ordenamento divino. Antes mesmo de as pessoas acordarem, lá estava a rua infernizada pela poluição sonora, estourando tímpanos a martelo grave e agudo:

– Todos, todas! Venham à Praça Central do Céu hoje, às 17 horas. O Criador fará esplêndido ritual para anunciar e celebrar a sua mais nova criação: a verdade. É o “Show da Verdade”, meu compadre, minha comadre. Não perca! Hoje, na Praça Central do Céu.

O Diabo, irritado por ter sido acordado com aquele palavrório invasivo todo, retrucou aos seus coadjutores:

– Deixe comigo! Quem tem boca, vaia Roma!

Então, bem na hora marcada, com a Praça Central do Céu completamente apinhada, eis que, detrás do palco central onde Deus procederia ao ritual de anunciação e celebração da verdade, me sai um imenso trio elétrico de doze eixos e um sistema de som capaz de abraçar todo o universo. Com o super-hiper-máxipotente microfone na mão, eis que se dá a epifania do Diabo, esgoelando:

– Perdeu, “Seu” Criador. Perdeu, “meirmão”. Acha que a verdade haveria de prevalecer? Jamais, Camarada! O que vai ganhar o mundo é a minha retumbante, estonteante, sufocante e asfixiante criação: a fofoca!

Desde então, a diva e a divisa do homem, da mulher e de outros sexualmente orientados passou a ser: “Fofoco, logo existo!” (Loquens, ergo sum).

À parte o chiste decorrente desse embate, há um entendimento consensual mais ou menos estabelecido de que pessoas razoavelmente sãs (dos miolos), quando têm algo de desconfortável com relação a outrem, procura esse “outrem” e com ele acerta suas abóboras. Atende, assim, à regra das relações interpessoais que garante: “Se seu problema é com ‘A’, fale com ‘A’”. Mas nós, envolvidos com qualquer questiúncula com ‘A’, vamos sempre falar com ‘B’. Não raro, com o alfabeto inteiro.

É como se o outro do outro com quem se fofoca fosse mais abalizado para falar sobre o primeiro do que o primeiro mesmo. Resultado: azedume, muito nariz entortado, muita cara virada, muita maledicência, veneno abundante, grosso falseamento da reputação alheia, farta autorrevelação do “si mesmo” pela legião de embusteiros pueris e infantes que fofocam para mais se colocarem na fofoca verbalizada do que picharem a imagem da circunvizinhança. Afinal, além do fato de que “A boca fala do que está cheio o coração”, o “Outro sempre será meu lago, para o qual sempre serei o Narciso preferido”.

No âmbito do serviço público, a ação e as atividades, as atitudes e comportamentos profissionais, sociais e políticos de seus agentes, na condição de “públicos”, não estão livres de ser publicamente avaliados, analisados, criticados ou elogiados. Faz parte do “mister” aí aludido. Por isso, qualquer análise de conjuntura inevitavelmente acabará enfocando decisões e práticas desses agentes. Porém, por imaturidade, parvoíce, cretinice, má-fé ou criancice mesmo, muitos confundem esse tipo, saudável até, de ocorrência com o ato de “falar mal dos outros”. E saem espalhando o joio, a cizânia, como se isso levasse a algum lugar ou contribuísse para algum empreendimento construtivo.

Quanto a esse tipo de energúmen@, enquanto el@ não saneia os próprios miolos, o melhor a fazer é não cultivá-lo, mas mantê-lo necessariamente a uma distância confortável para a língua dele e para o nosso bem-estar. Claro que isso não resolve toda a encrenca porque quem nasceu para fofocar não sabe existir de outra maneira, mas, pelo menos, afasta toxidades inúteis e pode abrir espaço a encontros mais nutritivos para nossas almas e corações.

Tem vezes que, ao contrário do que disse Sartre, “O inferno são os outros”, como eu sou o outro dos outros, eu é que acabo sendo o inferno para meu ambiente. Mas... quem disse que o fofoqueiro contumaz pensa dessa maneira? Quem disse que ele está certo de que, como a lâmpada ilumina-se a si mesma antes de clarear o ambiente, o veneno que ele vomita, antes, contamina a sua própria língua?

De minha parte, tenho por regra não dizer nada longe de outra pessoa que não dissesse pessoalmente, na frente dela. Também alimento o propósito de não passar adiante fofocas que me chegam aos ouvidos. Cuidar da minha própria vida, contribuir quando eu puder e não estorvar quando eu não puder são outros propósitos que tento observar. “Tento” porque sou humano, não sou o Todo-Poderoso.

Tirando isso, sei que Deus e o Diabo (palavras ricas na semântica, na simbologia) permanecem em pugna por suas criações. Sei, também, o quanto é vital saber de que lado eu posso estar.

* Wilson Correia é Adjunto em Educação no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.