Por que as cotas excluem os excluídos? II

Wilson Correia

Reafirmo a minha pergunta-título: Por que as cotas excluem os excluídos? Mas, primeiramente, penso ser louvável neste debate (tarefa diária dos agentes públicos de uma instituição pública de ensino) sobre se cotas incluem ou excluem o fato de que estamos nos mexendo. Intriga-me uma instituição votada à educação que não se faça um semeadouro. Sim, porque a educação passa pelo corpo e alcança a alma, mas tem como tino a mentalidade –as mentalidades, para ser mais preciso. Até onde consigo compreender a ordem das coisas, a mentalidade é casa da educabilidade.

Neste processo, os atos de pensar e dizer se prestam ao nobre propósito de mover rumo à comunicação implicada na compreensão. O não kom-pre-en-dê-r é que gera a “in-ko-um-ni-khas-são” (Drummond).

Mas, pensar e dizer de que lugar, de que ponto? Os ocidentais vemo-nos em inominável dificuldade quando o desafio é lidar com a articulação entre o uno e o diverso. Travados aí, admirados e espantados, mas miscigenados, as peias aparecem quando temos que tentar entender essa nossa co-fusão (confusão?).

Nesse embate, a História mostra que temos optado por um tipo de articulação entre “saber” e “poder” forjador de “regimes de verdade” (Foucault). Quem tem o poder nas mãos faz suas crenças, e deixe que essas crenças façam de nós o máximo do que pudermos ser até a fronteira daquilo em que escolhemos legitimar, aceitar por meio do acreditar.

Talvez, por isso, que a característica de revelo do pensamento ocidental seja a marca do “centrismo”: teocentrismo, geocentrismo, eurocentrismo, brancocentrismo, machocentrismo e outros tantos ismos funcionais à implementação da hegemonia, do domínio do outro, do escravismo e da servidão.

Outra operação ético-política é a que encurta o caminho que nos coloca em meio à diversidade rumo à possível miscigenação complexa: aí, o gesto simples e simplório é o de transformarmos diferenças em desigualdades.

Desigualdade sustentada por um maniqueísmo rasteiro: “Se o diferente não apresenta as características aparentes que ditam minha condição humana no mundo, então ele é do mal. O bom é o que está do meu lado. E quem não está do meu lado, está contra mim”.

E haja desigualdade entre superior e inferior, branco e negro, branco e índio, branco e branco, negro e negro, índio e índio, entre outras combinações nada palatáveis nessa seara desarrazoada.

Amiúde, não percebemos que somos brancos e negros, brancos e índios, amarelos e azuis. Positivistas, separamos a parte e queremos que a parte ganhe legitimidade (hegemônica) como o novo todo que deve pontificar sobre o universo.

Não raro, isso se passa ao custo de muita pirraça, essa que atravanca o diálogo e a compreensão, abortando qualquer possibilidade para o estabelecimento da educação mais nutritiva: o aprendizado da minha humanidade reconhecida e legitimada na humanidade do outro.

E, com cara deslavada, aristotelicamente falando, optamos pelo “acidente” (o que não é vital ao ser), relegando a “essência” (o fundamental à constituição ôntica de cada um) porque o essencial é mais difícil de ser solucionado. Embriagamo-nos na multiplicidade (que deveria ser a nossa maior riqueza) e postamo-nos no mundo iguais a baratas completamente zonzas.

Quem bolou esta existência aqui tinha que fazer todo esse quebra-cabeça e nos jogar no coração dele? E com a tarefa de montar peça por peça? Talvez isso não tenha sido uma pontinha de maldade, mas um gesto para nos motivar à atitude dialógica: “Eles que são miscigenados, que se entendam!”. E cá estamos nós, zonzos ou orientados.

Birrentos, não queremos fazer a “tarefa de casa”. Negamos a mistura. Aferramo-nos ao puro, mesmo que ele nos intoxique. Entregamo-nos com indisfarçável prazer ao “jus esperniandi”, o direito de espernear. Nesse esperneio, “Saia da frente, pois tenho minha pele, minha mentalidade, meu saber, meu poder, minha verdade e quero provar que esse conjunto operativo é mais verdadeiro do que o seu”. Abandonamos o reino da compreensão e caímos no mundo bruto da força, suplantamos o conceito e viramo-nos com os nossos inconfessáveis preconceitos. Em uma expressão: diabolizamos a vida, isto é, apartamos, separamos, cindimos e cindimo-nos.

Nesse ponto não há diálogo que funcione. Monologamos para fingir partilhar palavras. Não entendemos que isso pressupõe ceder e acolher concessões. Aí a educabilidade vai para o espaço e fica restando-nos a colheita da crença recrudescida, pequenificada, encurtada. Limitados meu pensar e meu dizer, limitado também se torna o diálogo, estreito se delineia o meu mundo (Wittgenstein).

Nossos pés pisam nosso “marco zero” comum: nossa diversidade. À frente, miramos a meta: a possível convivialidade com justiça e liberdade. E o método filosófico que lança ante nossos olhos esses extremos, na condição de método, talvez nos ajude a pensar no que se passa entre um pólo e outro.

E, aí, voltando às cotas. Lembro-me daquele que foi um lampejo de compreensão: Milton Santos. Segundo Santos, no Brasil nunca houve cidadania porque a elite sempre gozou as benesses dos privilégios, ao passo que as camadas empobrecidas nunca tiveram seus direitos respeitados (branco, negro, índio e outros incluídos, obviamente).

No atual contexto da sociedade em que vivemos, as cotas significam uma permissão mitigada para se aceder ao privilégio de ter privilégios, também mitigados. Não é sem motivo que elas nasceram como obra dos estadunidenses, aqueles daquela sociedade maniqueísticamente dividida entre perdedores e ganhadores.

Estamos contentes que os Estados Unidos da América do Norte sejam nosso poço. Estamos alegrinhos por sermos Narcisos deles. Desde que o capital prospere, que a divisão impere. Que a diversidade seja vista como calamidade. Que as diferenças se empobreçam com cada uma em seus devidos quadrados.

Por que se tornou incômodo pensar nos pilares econômicos, culturais e políticos, no modelo societário no qual nos encontramos? Por que nos ajeitamos na espuma da conjuntura quando o que nos aniquila são as bases da estrutura? A mediocridade (no seu sentido etimológico) do meio caminho é o suficiente para nos dar contentamento?

À parte esse mecanismo ideológico que nos bate e nos abate, em meio a ele até, sou da opinião de que é eticamente saudável saciar fomes conjunturais. Há reparações que são mesmo dependentes de ações de curto, curtíssimo prazo. Se as cotas vieram para isso, está bem: estamos admitindo que não somos capazes de criar condições justas objetivamente mais universais, no sentido do “para todos”, da isonomia republicana fática que almejamos.

Se abrimos mão dessa luta maior, que nos baste incluir na sociedade excludente. Aí o incluído chega ao seu máximo privilégio: vestir a roupagem daquele que exclui e reproduzir o excluidor para que ele se perpetue. Se o índio, o negro e outros querem se igualar aos dominantes de todos os matizes por essa via, então estamos muito mal. O alcance de nossa visão está seriamente reduzido.

É oportuno, mais uma vez, lembrar o ditado: “Na luta entre a onda e o rochedo, o marisco é que apanha”. E o marisco aqui, para nosso bem ou para nosso mal, não é puro coisa nenhuma. Somos mesmo é tudo junto e misturado!

Por isso, meu amigo, não me venha com sua verdade, e pronto. Calma! Mais importante do que o ponto de vista é a vista que se tem do ponto (parafraseando Boff).