Por que as cotas excluem os excluídos? III

Wilson Correia

Como seria bom se a pergunta acima pudesse ser excluída! Excluída do alcance de nossa visão. Extinta por um decreto de vontade individual. Apagada por nos incomodar e nos incitar ao doloroso processo de pensar e formular o pensamento. Mas essa seria a atitude mais sensata a tomar?

Talvez, não! A opção pela exclusão tem sido a resposta aligeirada das sociedades erigidas pelo “homo sapiens”, enquanto o apelativo da realidade mantém vivos diante de nós não apenas a pergunta, mas, sobretudo, os excluídos, sei lá quantas outras vezes, sempre alijados da vida social ativa.

Ademais, excluir tem sido o típico comportamento de quem se recusa a considerar a complexidade. E como o dominante está em nós, como afirmou Paulo Freire, ao excluir essa pergunta eu estaria na pele daquele que sempre entendeu que há humanos mais humanos do que outros, como George Orwell cunhou em sua “A revolução dos bichos”.

Dito isso, caímos, neste debate, no conceito de raça, o qual tem sido manejado com base em dois elementos: o biológico e o cultural. Biologicamente, o que os estudos da área dizem é que o conceito de raça, fundado na diferenciação pelo DNA (ácido desoxirribonucléico), é profundamente trôpego e claudicante. Ele não nos dá condições para afirmarmos que existam raças, no plural, uma vez que o que diferenciaria um asiático de um latino não passaria de “acidente fenotípico”, deixando intacto aquilo no qual ambos se reconheceriam como humanos: o fato de serem portadores de inteligência simbólica. Por esse viés, desconsiderando características acidentais, existiria apenas uma raça, essa que denominamos de “homo sapiens”, cuja distinção perante outros viventes se daria com base na racionalidade e na capacidade de pensar, gênese da cultura, o modo de ser no mundo que suplanta a objetividade natural pelo saber simbólico.

Sobra, então, o conceito amparado no aspecto sócio-cultural, ao que agregamos o termo “etnia”. Grupos étnicos diferentes podem estabelecer maneiras diferentes de lidar com a cultura simbólica, tanto quanto podem instaurar esquemas próprios para o exercício do poder, do mando, do disciplinamento, do controle e da submissão. É aqui, então, que, novamente, membros de diversos grupos étnicos se encontram, com as características biológicas fenotípicas que herdaram.

Essas marcas biológicas distintivas não dão a condição para que exista um sujeito ex-índio, ex-branco ou ex-negro. É o princípio da identidade biologicamente considerada. Porém, o ex-pobre, o ex-analfabeto e o ex-não filósofo podem ser encontrados entre nós. Logo, a questão leva nosso pensamento para aquele segundo elemento: o dos aspectos sócio-culturais. E, no cerne dele, o modo como levamos adiante nossas práticas de exercício de poder. Por isso, noto que a busca da solução –e todos participantes deste debate parecem demonstrar buscá-la– mais apropriada não seria pela trilha da raça, mas, sim, a que nos leva à análise estrutural da sociedade em que vivemos.

Está explicada, aí, a razão pela qual a categoria “classe” nos ajuda a ampliar a visão, a ser mais coerentes com a realidade na qual nos inserimos, pois, ainda que questionada, “classe” é a categoria que nos auxilia a pensar sobre as sociedades liberais. Essas que, por ser estruturalmente injustas, devem ter seus pilares políticos, econômicos e culturais levados ao tribunal da razão.

Eu não sou pura e simplesmente contra as cotas. Eu sou contra a atitude de se contentar com elas e vê-las como o caminho da transformação social. Voluntarismo e assistencialismo sistêmicos de Estado não farão a transformação radical da sociedade. Eu não comungo, ainda, é com os ideais de uma sociedade na qual o livre só é livre à custa da escravidão de outrem; em que a mesa farta de um é sustentada pela morte por fome (de doze crianças ao redor do mundo, diariamente, segundo a FAO); e em que a qualidade de vida de uns poucos é conseguida por meio da miséria de incontáveis multidões.

O que eu manifesto é o meu descontentamento com um dispositivo político imposto por um sistema econômico, este que, para manter seus intentos, fagocita o Estado, as instituições e os direitos, transformando-os em estratégia espúria para a manutenção de uma hegemonia “ad eternum”.

É por isso que vejo coerência na opinião do estadunidense Charles Lamb: “A espécie humana, de acordo com a melhor teoria que eu posso estabelecer, é formada por duas raças distintas, as pessoas que emprestam dinheiro e as que pedem emprestado!”. Vindo de um estadunidense, está coerente sim. Nós é que temos dificuldade de compreender o que realmente eles desejam com as cotas, bolsas e quejandos.