Por que as cotas excluem os excluídos? IV

Wilson Correia

Acordemos que mapa não é território. Mapa é uma representação, muito limitada, do território. “Um mapa enuncia a ideia que se tem do mundo, não sua realidade” (Onfray). Por isso, quando o estadunidense afirma que há apenas duas classes no mundo, a que empresta dinheiro e a que toma dinheiro emprestado, ele está sendo coerente com a representação promovedora do reducionismo que as lentes econômico-financeiras estadunidenses promovem ao tentarem enxergar o mundo (se é que enxergam).

Meu argumento, aqui, tem se lastreado no entendimento de que são os modos de exercício de poder que orientam ações de domínio e submissão. Estamos de acordo quanto ao fato de que a inferiorização, a escravidão, a segregação, a discriminação e a exclusão são crimes de “lesa humanidade”. Jamais deveriam ter sido criados e, uma vez constatadas suas emergências entre nós, jamais deveriam ter sido tolerados, nem culturalmente suportadas.

Ocorre que as estruturas culturais de uma sociedade não existem, reificadas, em si mesmas. Quem as mantém é o ser humano. É em meio à cultura que esse humano produz e sustenta que formatamos ou desenhamos nossos esquemas de poder. É aqui que começam as questões mais intrigantes desse debate: as cotas democratizam as estruturas do modelo societário hegemônico ou decorrem da ideologia dominante que os Estados Unidos querem fazer imprimir nas mentalidades, fazendo-as suas colônias simbólicas ao redor do mundo?

Até onde consigo entender, as cotas não conseguem ser outra coisa senão a realização de uma inclusão pobre, parca e que só contribui para dividir e excluir os excluídos, mantendo-os sempre à margem da sociedade ativa. Como, ideologicamente falando, não me filio a nenhuma forma de ideologia que tenta justificar a tolerância a qualquer forma de exclusão, e como as cotas excluem os excluídos, e não apenas no capitalismo, penso que elas, como medida de curtíssimo prazo, não podem ser entendidas como estratégia de superação do atual modelo societário no qual nos encontramos.

O meu anseio, utópico, é verdade (mas a utopia serve como fonte de motivação para a luta concreta cotidiana), é o de intentarmos um modelo societário que inclua em uma sociedade inclusiva. Incluir em uma sociedade excludente é tolerar o fato de que alguns terão sua inclusão custeada pelo suor e pela vida de grandes multidões de excluídos. Isso fere o senso profundo de justiça. Aniquila a percepção da vontade de liberdade.

Não creio que corrigiremos erros históricos com meias soluções, com paliativos, com placebos econômicos (bens e serviços das sociedades liberais). Por isso, inquieta-me a recusa de se analisar as estruturas estruturantes da sociedade liberal, as quais as cotas não alcançam porque são uma decorrência delas. Se as cotas não tocam os aspectos estruturantes de nosso modelo societário, logo elas não têm o condão de procederem à estruturação de nada para além do que já está estruturado. Elas não têm o poder de gerar o novo. Mas repetem, e de forma perversa, as estruturas excludentes que nos açoitam todos os dias: falseiam tanto a “inclusão” quanto a exclusão.

Como já disse anteriormente, se estamos de acordo que o capitalismo vige e deve prosperar, e que as cotas resultam em um mecanismo político que esse sistema dominante utiliza em nome do controle político de que ele necessita para alcançar esse seu intento, então não temos nada que debater. As coisas já estão previamente decididas, e pronto.

O intento aqui é o de exercitar o desejo de encarar o desafio de pensar outras vias para outra sociedade possível, para outro mundo possível, para instaurarmos outras mentalidades, desprovidas das justificativas ideológicas para os crimes que uns humanos se acham no direito de perpetrar contra aqueles nos quais deveriam ver a condição de possibilidade do reconhecimento de sua própria humanidade.

De minha parte, vivo a contradição do meu tempo. Ela está conflituosa em mim. Nesse sentido, vejo a reparação urgente, mas sei que ela não é suficiente. Se entendêssemos a legitimidade desse impasse, já teríamos dado significativo passo à frente em nossas mentalidades: uma tarefa inarredável para quem lida com as coisas da educação.