Por que as cotas excluem os excluídos VIII

Wilson Correia

“Wilson,

Não tive a intenção de ser desonesto como vc falou. Mas como de boas intenções o inferno está cheio, fui descuidado em não colocar mais precisamente que existia um problema colocado de fato pelo Prof. Glênon. Era o primeiro que eu tentei discutir. O segundo era no meu entender o colocado senão diretamente por vc, pelo menos aquilo que consegui depreender ou simplificar do problema, que é o do ainda constante uso do conceito de raça. Se eu não entendi vc, tudo bem, mas eu não tinha a intenção de ser desonesto. Achei que dos problemas que vc apontava o da raça era um deles, e por isso quiz discutí-lo, porque me senti mais tranquilo para tal. Mas, que eu seja punido pela desonestidade; retiro-me do debate.

Um abraço.

Gilfranco.”

“Ah sim, Wilson,

outra coisa é que, no que diz respeito a erudição, não tenho isso. Quando tentei discutir o conceito de raça, senti-me na obrigação, porque este é meu jeito de pensar em questões conceituais (meu ‘método’ por assim dizer), de tentar recuperar a história do problema. Tentei reler o texto de Kant e os textos referentes à história do racismo científico, para verificar de maneira mais detalhada, como esse conceito foi pensado por quase 300 anos de história, Achei que era relevante levar isso em consideração não por erudição, mas por recorrência a uma maneira de investigar que pode ser sem utilidade nenhuma para a discussão, já que os textos são muito antigos e o problema é novo, mas é a maneira talvez retrógrada ou equivocada como aprendi a pensar determinados problemas pontuais. Apenas disponibilizei o texto para tornar pública as fontes que eu próprio tive muita dificuldade de encontrar, assim facilitaria o acesso de quem por ventura tivesse algum interesse semelhante ao meu. No mais, espero que o debate em torno da questão da políticas de cotas possa ser continuado. Eu o entendo como um debate frutífero. Aprendi muito ao tentar pensar essas questões ao chegar aqui na Bahia e entendo que certamente ainda hei de aprender muito com o debate constante.

Outro abraço.

Gilfranco.”

Gilfranco, você sabe o quanto é profundo o afeto amigo que dedico a você. Sabe, também, o quanto o respeito como ser humano e como profissional. Eu reverencio, até onde minha consciência me possibilita, a seriedade com que você desenvolve seus estudos, pesquisas e assemelhados.

Mas, é como é: com os mais próximos talvez a gente tem a liberdade de dar o salto livre. Se minha veemência foi veemente demais, desculpas. Mas você há de convir que ela não foi gratuita. Vamos ver.

Há certa postura hermenêutica, se não for a sua você pode me corrigir ou esclarecer, que adota a atitude de “declarar” e “traduzir” com o intuito de fazer exegese tendo em mente o truísmo perante o pensamento do outro. Aí residem as operações cognitivo-discursivas que realizam o interpretar e o comentar. Logo, falo de um problema metodológico implicado na lide com textos.

Nesse contexto, usualmente, o que se faz é realizar esses mecanismos de modo a se prestarem ao "reenquadramento" do problema debatido pelo outro. Confesso que penso ser esse um procedimento altamente delicado, pois os limites entre a interpretação pessoal que faço do pensamento alheio e o teor desse pensamento pode se tornar tênues demais, até levar o que é o “meu problema” a se incrustar no problema do outro, não raro fazendo disso, na verdade, um novo problema, completamente diferente do que se quis discutir.

Não tive o propósito de punir, nem de propor que alguém se retire do debate. Essa não é a melhor postura na academia. O que me chocou foi ler algo que não bate com o que eu tenho dito. Vejamos:

Primeiro reenquadramento do problema: “A cota racial pode excluir um pobre branco”. Meu argumento, que está no título das minhas intervenções, indaga: “Por que as cotas excluem os excluídos?”. Estou tratando a exclusão “in totum”, não a recortando na perspectiva de nenhuma cor. Tanto é assim que, quando relatei a experiência vivida que me levou a essa excruciante indagação, relatei que tenho uma lista de 25 (vinte e cinco) candidatos à inserção em projeto de pesquisa, sendo que, desses, 23 (vinte e três) são potencialmente cotistas segundo a política de cotas atualmente vigente entre nós, ou seja, parte do conjunto de “ações afirmativas” cujo público-alvo são os negros. De vinte e cinco, apenas dois foram incluídos. Meu argumento vai no sentido de indicar que os considerados incluídos aí o são graças ao intento de se estabelecer um “capital” político de sustentação de certas propostas de “representação” política, aliás, uma necessidade do sistema capitalista. Mas, afora essa peculiaridade, sei que no termo “excluídos” estão compreendidos todos que não logram êxito ao tentarem a vivência de uma cidadania que requer participação e apropriação de bens materiais, sociais e culturais sob a ótica da justiça social e do respeito aos direitos individuais, sociais e políticos formalmente vigentes até em nossa Constituição Federal. Não estou a lamentar o fato de existir branco excluído, mas o fato de existir excluídos. E se, ademais, as cotas não passam de uma operação política do sistema capitalista para obter legitimidade político-ideológica, não as vejo com legitimidade para mais ninguém. Mas eu não estou acreditando em Papai Noel aqui: eu sei que o capitalismo precisa dessas operações para enfrentar seus antagonismos internos e que uma sociedade justa e fundada em direitos requer, de fato, uma revolução que mude os pilares materiais e simbólicos da sociedade, vale dizer: econômicos, políticos, ideológicos e culturais. Logo, o meu intento é problematizar a existência das cotas nesse contexto, implicadas no modelo societário capitalista, da sociedade liberal ou de livre mercado, essa que está a merecer nossa análise, tarefa, aliás, da qual, pelo que sinto, temos declinado sem a menor justificação.

Segundo reenquadramento: “O conceito de raça é impróprio para uma política de cotas”. Se o conceito de raça é impróprio para uma política de cotas, deve existir, então, um conceito que lhe seja apropriado. Ora, não é bem isso o que estou tentando dizer. Se eu dissesse isso, estaria aceitando a validade das políticas públicas que operam com as tais cotas, o que tenho colocado à parte por considerar isso, como disse acima, não mais que um dispositivo do poder político tendente ao alcance da hegemonia no plano das disputas partidárias. A economia política aqui, intentada por um partido político, seria alcançada mediante o manejo de benesses mitigadas aos excluídos todos, esperando-se, com isso, uma legitimidade representativa que, a bem da verdade, não foge do clientelismo historicamente instalado em nossas práticas partidárias de atuação em meio ao corpo político soberano da nação brasileira. Por isso, em uma das minhas intervenções, minhas preocupações se expressam de maneira rizomática, tentam mirar as raízes do nosso modelo societário e as do estilo existencial legitimado e amplamente aceito como o válido, o qual deve prevalecer entre nós, mesmo que, para tanto, lancemos mão dos regimes de verdade, algo consensuado por um misto de força de autoridade e força da força que é privatiza do Estado moderno. Políticas de cotas, no meu entendimento, serão sempre conjunturais, sempre superficiais. Jamais poderão, até onde minha limitada percepção me possibilita enxergar, mudar os pilares de nossa sociedade, razão pela qual eu as compreendo como ações de assistencialismo e voluntarismo dos operadores político-estatais que administram as coisas públicas entre nós.

É por essas e outras que fiquei realmente chocado com o reenquadramento dos problemas que tenho tentando discutir aqui. Mas confesso que também aprendo com esses debates. É isso o que entendo por processo de educação. Por isso entendo como salutar, pela enésima vez, esse tipo de produção docente, do cotidiano. Senão profundamente elaborada, ao menos traz nossos sustos e nossos enlevos, nossas admirações e nossos espantos para o plano do relato cotidiano sobre o que é fazer e sofrer a educação pelos quatro cantos do nosso Brasil.