Bendita poesia

Wilson Correia

“Tá legal, eu aceito o argumento / Mas não me altere o samba tanto assim” (Paulinho da Viola)*.

“... escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”**.

Quem leu com um pouco de atenção o livro de onde a citação acima foi extraída, "Minima moralia", de Adorno, compreende que o filósofo da Escola de Frankfurt estava preocupado com o perigo de a arte produzir uma assimilação que resultasse no esquecimento da brutalidade do holocausto pela via descompromissada com o acontecimento histórico. Mas penso que a poesia ainda está ali, onde a filosofia e a ciência entregam a palavra por não terem mais o que dizer sobre o existente.

Nisso, creio, a poesia realiza sua função de contribuir para a significação da realidade. Benditos, então, aqueles que ainda alimentam o sentimento nutritivo poético e a sensibilidade humana antenada para escrever poemas. A poesia, entre outras coisas, não está aí para fazer esquecer, mas, ao contrário, para lembrar, mostrar, apontar o dedo e nos chacoalhar diante dos absurdos com os quais não podemos e não devemos transigir.

Sim, porque na era do “politicamente correto” e das “inteligências múltiplas”, ainda urge evidenciar que os antagonismos permanecem à espreita. E é em meio a eles que pessoas e instituições são construídas. Aquelas, passáveis; essas, mais duráveis. Mas, claro, “passáveis” escrito assim, entre aspas, porque a instituição não é algo que forças extra-humanas plasmam diante dos nossos olhos. As instituições são um universo que catalisa o pensamento, a imaginação, o ato e a contribuição de cada pessoa que se objetiva em sua respectiva implementação e consolidação no tempo e na história de uma determinada sociedade. Não fossem as pessoas, existiriam as instituições?

Em “Perguntas de um trabalhador que lê”***, Bertolt Brecht evidencia isso com a mestria de quem rumina acontecimentos. Ele vai na nossa jugular: “Quem construiu a Tebas de sete portas? / Nos livros estão nomes de reis. / Arrastaram eles os blocos de pedras? / E a Babilônia várias vezes destruída / Quem a construiu tantas vezes? Em que casas / de Lima radiante dourada moravam os construtores? / Para onde foram os pedreiros na noite em que / a Muralha da China ficou pronta? / A Grande Roma está cheia de arcos de triunfo. / Quem os ergueu? Sobre quem / Triunfaram os césares? A decantada Bizâncio / Tinha somente palácios para seus habitantes? / Mesmo na lendária Atlântida / Os que se afogavam gritavam por seus escravos / Na noite em que o mar tragou. / O jovem Alexandre conquistou a Índia. / Sozinho?”

Não reduzidas ao aspecto visível, as instituições são construídas por tantos quantos derramam suor e sangue para que elas se ergam. Esse suor e esse sangue, vertidos em diversas formas, ficam impregnados nas instituições. Transformam-se em memória material de mãos e pés que a elas se dedicaram. Por isso, entre instituição e pessoas, essas segundas só são passáveis sob uma ótica bastante enviesada. Há que se abrir os olhos largamente para ver além do que a aparência cristaliza, do contrário a injustiça pode se materializar quando se afirma que “as pessoas passam e a instituição fica”. As pessoas ficam nas instituições que ajudam a construir.

Precisamos ser radicais para compreender isso. De outro modo: precisamos ir às raízes da história para não nos embriagarmos com a folhagem da superfície. Seja resistindo à violência simbólica ou da força bruta; seja praticando o egoísmo sábio que é o de construir instituições e poemas visando à salvaguarda da dimensão coletiva da vida, essa que a sociedade dos indivíduos insiste em negar e não se cansa de tentar mostrar que não temos outra alternativa existencial senão a do “salve-se quem puder”.

Como afirma Edgar Morin: “Cada qual age e interage, inconscientemente, no vir a ser do mundo”, “na luta simultânea contra a morte da espécie humana e a favor do nascimento da humanidade”****. Que a arte nos ajude nisso, preferentemente nos salvando da obtusidade.

__________

*Fonte: <http://letras.terra.com.br/paulinho-da-viola/48050/>.

**ADORNO, T. W. “Minima moralia”. Trad. L. E. Bicca. São Paulo: Ática, 1993, p. 26. “Auschwitz I –Campo de concentração original que servia de centro administrativo para todo o complexo. Neste campo morreram perto de 70.000 intelectuais polacos e prisioneiros de guerra soviéticos. Auschwitz II (Birkenau) –Era um campo onde morreram aproximadamente um milhão de judeus e perto de 19.000 ciganos. Auschwitz III (Monowitz) –Foi utilizado como campo de trabalho escravo para a empresa IG Farben. O número total de mortes produzidas em Auschwitz-Birkenau está ainda em debate, mas se estima que entre um milhão e um milhão e meio de pessoas morreram ali” (WIKIPÉDIA).

***Fonte: <www.iea.usp.br/iea/textos/konderbrecht.pdf>.

****MORIN, E. “Para onde vai o mundo?”. 2. ed. Trad. F. Morás. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 65.