O que a tolerância pode tolerar?

Wilson Correia

Certa vez entrei em sala de aula com um texto de uma autora XX. A aula era de ética geral para uma turma que cursava ciências jurídicas. Lá no fundo, um senhor aluno levantou a mão e disse que XX não tinha moral para ensinar aquela matéria, sem contar que princípios éticos são relativos.

Entre outras coisas, pois essa história é muito longa, respondi ao aluno, bem mais vivido do que eu à época, que se os valores são relativos nós poderíamos estudar os valores dele próprio ou, então, os meus. E se fosse para usar os meus, a partir daquele instante ele, meu interlocutor, estaria reprovado na disciplina.

Ele próprio e a maioria da turma se levantaram com o argumento de que minha atitude seria injusta. Mas eu retruquei que, se não existem valores que valham para todos, então seria legítimo valerem os meus, pois fui interpelado por um discurso que me afirmava serem relativos todos os valores. Relativo por relativo, prefiro os meus, acrescentei.

O debate foi rico. Entre leitura da autora XX, conversas, diálogos e pesquisas à base da mutualidade chegamos ao entendimento de que deve existir um “mínimo ético inegociável” válido para todos, do qual ninguém pode ou deve abrir mão. É esse tal “mínimo ético inegociável” que se choca com certo conceito de tolerância que vige entre nós.

Gandhi foi (in)tolerante contra o quê? O que mesmo Luther King Jr. (não) tolerou? A injustiça é tolerável? A escravidão é tolerável? O racismo é tolerável? O sistema que leva à riqueza pornográfica de uns e à morte por pobreza de outros é tolerável? A manipulação do povo é tolerável?

Na esteira dessas indagações, vale observar o seguinte: expressões como “politicamente correto” e “tolerância”, tanto quanto “multiculturalidade”, são conceitos prenhes de uma ideologia mistificadora daquilo que realmente podemos suportar e daquilo que, de fato, temos que rechaçar.

Há coisas que tolerância alguma pode tolerar. Sobretudo aquelas que afetam a vida, golpeiam a potencial liberdade das pessoas, estilhaça qualquer senso de justiça comumente construída, detona a pluralidade e aniquila a dignidade da pessoa humana –a pessoa fática, concreta, que olha nos meus olhos.

Porém, certo uso do conceito de tolerância pede que toleremos o intolerável. Pede-nos vistas grossas para certas grosserias e para o grotesco que em nada condiz com o respeito humano. Também esse tipo de provocação nós não podemos tolerar. Há que se dar um basta a tudo aquilo que nos desenraíza de nós mesmos e do senso de pertença ao gênero humano. E é preciso coragem para declarar isso, em alto e bom som.

É muito cômodo para quem domina pedir tolerância para com suas práticas intoleráveis. O difícil é quando essa tolerância nos pede em troca a nossa honra, a nossa dignidade e a nossa vida.

Aí entendemos que o relativismo da tolerância hoje em voga e do politicamente correto atualmente hegemônico podem ser tão retrógrados quanto os dogmas que querem nos roubar a liberdade de construir e compartilhar os princípios éticos que podem nos fazer bem.