Torquemada vive em São Paulo?

Wilson Correia

Ao conceder entrevista recente a Heródoto Barbeiro, o jurista Wálter Maierocitch aventou a possibilidade de o espírito de Torquemada estar orientando as autoridades paulistas quando elas, com as vestes da brutalidade, atentam contra estudantes da USP, indivíduos da Cracolândia e ex-moradores de Pinheirinho.

Mas, quem foi Torquemada? Tomás de Torquemada era religioso da Congregação Católica dos Dominicanos (domini canes = cães do Senhor). Ele contribuiu para o trabalho da Santa Inquisição, órgão no qual se notabilizou como um dos inquisidores mais cruéis de que se tem notícia (Grande Inquisidor).

Torquemada nasceu na Espanha, Valladolid, em 1420. Morreu em 1498, também na Espanha, na cidade de Ávila. Enquanto viveu, além de ser confessor da rainha Isabel, a Católica, foi o Grande Inquisidor dos reinos de Castela e Aragão. Sempre atuou como fanático portador da verdade e pressupondo que o resto do mundo estava errado.

Inquisidor-Geral nomeado pelo papa Inocêncio VIII (inocente?), pôs-se no encalço de banqueiros, agiotas, bígamos, bruxas, comerciantes, judeus, de gente com práticas sexuais então consideradas fora dos padrões e de todo e qualquer um que sinalizasse a menor nesga de heresia em seu modo de vida. A perseguição, a tortura e a morte eram suas mestras, às quais obedecia às cegas.

Esse frade dominicano foi implacável. Ele tinha o desplante de rezar enquanto, nos calabouços da Igreja Católica, os cães servis da Inquisição interrogavam “suspeitos”, entre açoites e sevícias, com requintes da mais crua desumanidade. Durante esses interrogatórios, carrascos católicos submetiam polegares a parafusos, arrancavam unhas e dilaceravam a pele dos presos com ferros em brasa.

Se a suspeita de bruxaria fosse atribuída a uma mulher, ela era despida para que os algozes católicos procurassem no corpo dela as marcas (tatuagens) do diabo (stigmata diaboli), em vilipêndios durante os quais a torturada, como todos os submetidos a esse tipo de tratamento, não tinha alternativa senão confessar suas “heresias”.

Obtidas as confissões, os “hereges” todos eram levados à praça pública para julgamento, em eventos denominados “autos-de-fé”, durante os quais milhares de pessoas foram condenadas à fogueira, acendida na própria praça em que havia transcorrido o tal julgamento e sob os olhos da população. Um espetáculo funesto sem precedentes.

A sanha assassina de Torquemada chegou a assustar o próprio Vaticano, que ordenou moderação ao religioso. Quem disse que Tomás obedeceu? O jeito, então, foi destituí-lo de suas funções, o que se deu no ano de 1494.

Refugiado em um convento, Torquemada viveu o resto da vida magoado por ter sido impedido de perpetrar suas atrocidades. Ele morreu em 1498, enquanto dormia. Sua morte foi indolor.

Seria esse espírito o que estaria a inspirar as autoridades paulistas quando vilipendiam direitos de estudantes, drogados e moradores indefesos daquelas cercanias?

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Fonte: http://maniadehistoria.wordpress.com/tomas-de-torquemada-personagem-sinistro-do-catolicismo/.

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Torquemada e a ação na Cracolândia, por Maierovitch

Enviado por luisnassif, seg, 23/01/2012 - 08:10

CartaCapital

Wálter Maierovitch

Cracolândia

O torturante método de São Paulo

Os historiadores contam que Tomás de Torquemada, torturador-mor da Inquisição e falecido em 1498, era muito vaidoso. Numa pintura encomendada a um artista famoso, Torquemada aparece em genuflexão entre os adoradores de um Menino Jesus a brincar. Essa pintura está exposta na igreja romana de Santa Maria Sopra Minerva.

'A tortura para se alcançar uma meta predeterminada'. Foto: Luiza Strauss

O Plano de Ação Integrada Centro Legal executado pelo prefeito Gilberto Kassab e pelo governador Geraldo Alckmin na Cracolândia paulistana inspira-se no torturante método de Torquemada. A tortura para se alcançar uma meta predeterminada. A propósito, revelou um agente da autoridade de Alckmin, com aval de Kassab: “Como você consegue fazer com que as pessoas busquem tratamento? Não é pela razão, é pelo sofrimento. Dor e sofrimento fazem a pessoa pedir ajuda”.

p>A dupla Alckmin-Kassab não usou a Tortura da Roda de Torquemada, mas a Rota e o comando-geral da Polícia Militar (PM). A PM foi incumbida de prender traficantes-varejistas da Cracolândia. Isso para acabar de imediato com a oferta e provocar, nos dependentes, crises de abstinência. Governador e prefeito imaginaram que os dependentes químicos fossem, pela dor, correr em busca de ajuda médica. Detalhe: não havia adequada oferta de assistência médica aos viciados.

O tendão da Rua Prates, ao custo de 8 milhões de reais, não está pronto. Idem quanto às Assistências Médicas Ambulatoriais (AMAs) e os Centros de Apoio Psicossocial (CAPs) para dependentes de álcool e drogas). Só depois do quarto dia de atuação violenta da PM, Alckmin destinou 286 leitos para os dependentes da Cracolândia. E o seu secretário prometeu, em futuro próximo, vagas em 33 instituições no interior de São Paulo. O sucesso quanto aos programas de recuperação e a reinserção dessa “terceirização” para comunidades terapêuticas são desconhecidos.

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Diante do localizado problema de saúde pública e de exclusão social, a dupla Alckmin-Kassab partiu, com a tropa da PM, para uma “limpeza de área”. Não faltaram bombas de efeito moral, tiros de borracha e golpes de cassetete. Uma bala de borracha disparada com fim punitivo lesionou a boca de uma toxicômana menor de idade que se recusava a deixar a rua. Quanto à rede de abastecimento a distância da Cracolândia nada se investigou.

Uma lembrança. Nas discotecas exploradas empresarialmente na capital de São Paulo, as drogas sintéticas ilícitas são abundantemente fornecidas por redes operadas a distância por traficantes que nunca são incomodados pelas polícias de Alckmin. Talvez sejam as mesmas redes da Cracolândia, só que para lá enviam a mais barata e poluída das drogas. Uma análise comparativa entre os dependentes da Cracolândia e os usuários das discotecas exploradas comercialmente revela comportamentos diversos. Na Cracolândia, o consumo é para escape, fuga do abandono e da desestruturação. Nas discotecas, usa-se a droga como participação, tendência. Na ânsia de virar o Capitão Nascimento dos paulistas, Alckmin não percebe distinções fundamentais.

Pela legislação, as polícias devem fazer prevenção à oferta e à repressão ao tráfico. As duas polícias, no entanto, se metem em escolas para realizar inadequada prevenção ao consumo, tudo a tomar lugar de educadores e operadores da área sanitária. Para apressar a “limpeza”, o usuário da Cracolândia na posse de 1 grama de crack virou traficante. Alckmin chancela uma presunção contra miseráveis e a sua Polícia Judiciária, a contrariar a jurisprudência dos tribunais, lavra autos de prisões em flagrante. No popular, “cana” para quem demora a desocupar a Cracolândia. Um cordão sanitário foi criado na operação da Cracolândia para evitar a migração de dependentes para os bairros do Bom Retiro e de Higienópolis. O cordão emprega 150 policiais e conta com aporte de cães, helicópteros e viaturas da Rota.

Diante dessa opção de Alckmin-Kassab por Torquemada, recordo uma conversa que tive com o humanista Luigi Ciotti. Ele é respeitado em toda a Europa pelo exemplar e exitoso trabalho realizado no Gruppo Abele, de acolhimento, tratamento e reinserção de dependentes. Don Ciotti, educador por formação salesiana, preocupa-se também com a repressão ao narcotráfico. Nesse campo, Ciotti preside a maior rede europeia antimáfias da sociedade civil, ou seja, a Libera – Associazioni nomi e numeri contro le mafie: são 1,3 mil organizações filiadas.

Desde 1965, Ciotti luta para “dar voz a quem não tem voz” e prefere a rua (strada) à sacristia. Tanto isso é verdade que Ciotti foi pioneiro na criação de uma Università della Strada, que forma educadores sociais e agentes de saúde pública. Aproxima-se dos dependentes “sem desmoralizar, demonizar e assustar”.

Pano rápido. Ciotti, de vitoriosa greve de fome em 1975 para mudar a legislação que criminalizava e marginalizava o dependente químico, dá um alerta fundamental: “O dependente químico é um ser humano que não consegue encontrar um sentido para a sua vida. É aquele que se sente isolado, é frágil na relação consigo próprio e com os outros”.

Fonte: http://advivo.com.br/blog/luisnassif/torquemada-e-a-acao-na-cracolandia-por-maierovitch.

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1 de fevereiro de 2012 às 10:42

Emiliano José: A população de São Paulo há de acordar

por Emiliano José, em Carta Maior

Fiquei refletindo esses dias sobre uma série de acontecimentos, todos em São Paulo, e me perguntando, quase inocentemente, se seriam um acaso. Será que o Estado de São Paulo é perseguido pelo desatino, pelo autoritarismo, pelo destempero dos governantes, pela insanidade, pelo governo sem freios, pelo uso das armas e da brutalidade pelo Estado? Pensei em Hannah Arendt e na banalidade do mal. Mas, falar em banalidade do mal é falar também em quem o produz, em quem o torna uma banalidade, e o mal se afirma não pela conjunção de personalidades perversas, mas pela política, pelo exercício da política. Comecei, então, nessa reflexão, a me desvencilhar do pecado da inocência, a descartar acasos, e pensar então que pudesse haver alguma lógica em tudo aquilo.

Afinal, foi em São Paulo que massacraram estudantes da Universidade de São Paulo, numa violência inaceitável, incompreensível, intolerável. Por que tantos policiais, por que uma operação daquele tamanho para enfrentar, é, eles pensaram assim, em enfrentar, como numa guerra, aqueles jovens desarmados? Pois é, mas aconteceu. Depois, veio o pogrom da Cracolândia, um dos mais terríveis episódios de desrespeito aos seres humanos que se tem notícia no Brasil recente. A referência aos pogroms nazistas não é uma tentação panfletária. E mais recentemente, o ataque de tropas da Polícia Militar e de contingentes da Guarda Municipal contra a comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos, para salvaguardar os interesses do conhecido especulador Naji Nahas.

Será que o destino do PSDB é converter-se mais e mais no oposto daquilo que foi pensado pelos seus fundadores, e destaco aqui a figura de Mário Covas como um político que, creio, tinha de fato ideais profundamente democráticos? Não quero personalizar, não quero dizer apenas e tão somente que o governador Geraldo Alckmin é um homem conservador, um homem da extrema-direita, um cultor da Opus Dei. De que adiantaria? Afinal, Serra, na campanha, fez tudo o que a Opus Dei queria, chegou, quem sabe, a ir além, ao vestir a persona de um autêntico Torquemada, a perseguir mulheres que abortassem. Nem adianta dizer que Fernando Henrique, por exemplo, é a favor da descriminalização das drogas. Onde está uma única palavra dele condenando o pogrom da Cracolândia? É o partido que se unifica nesse tipo de política que se desenvolve em São Paulo.

O que está em curso em São Paulo é um programa. Um pensamento. Uma filosofia. Afastar pela violência, pela bestialidade das armas do Estado, tudo aquilo que contrariar o pensamento dominante no Estado, e dominante já há algum tempo. Afastar o que eles consideram fora da ordem – os estudantes que incomodam, os drogados que sujam a cidade, os moradores de Pinheirinho que contrariam os interesses especulativos. Por que não pensar em dialogar exaustivamente com os estudantes e criar as condições democráticas da desocupação da USP? Por que não imaginar uma política consistente de saúde para enfrentar o problema dos seres humanos usuários de crack? E uso o termo seres humanos porque necessário nesse caso, como lembrança. Por que não negociar à exaustão para resolver o drama de uma população inteira, em Pinheirinho, que só queria fazer valer o direito de morar?

Há muito tempo que o PSDB desacostumou-se com o diálogo. Fernando Henrique Cardoso começou com isto. Não há quem não se lembre dos ataques a trabalhadores da Petrobras no seu primeiro governo. Ele copiava Margaret Thatcher. O PSDB em São Paulo deu prosseguimento a essa visão, com absoluto rigor e disciplina. Me recordo da reação de um representante do governo Alckmin a respeito do pogrom da Cracolândia, que é revoltante: “Como você consegue fazer com que as pessoas busquem tratamento? Não é pela razão, é pelo sofrimento. Dor e sofrimento fazem a pessoa pedir ajuda”.

Da mesma forma que se descartam políticas de saúde, tratamento para pessoas dependentes do crack, dispensam-se as armas do diálogo, da conversa, do convencimento dos estudantes ou dos pobres que viviam em Pinheirinho – e aqui, como já disse, para saciar a fome especulativa de um Naji Nahas. É como se nunca houvesse outra saída que não a da porrada. Todos devem se convencer de que o governo tem a força, bruta, e ponto final. Que detém o privilégio de usar as armas e fazer as pessoas sofrerem. Que sofrendo, em todos os casos, elas entenderão o que o governo quer, e, assim, obedecerão.

Esta é a lógica, o pensamento, a filosofia do PSDB. Não fosse, e certamente apareceriam tantos parlamentares, tantas personalidades do partido a condenar o que Wálter Fanganiello Maierovitch chamou, em artigo recente publicado na revista CartaCapital, inspirado nas lembranças de Tomás Torquemada, de “o torturante método de São Paulo”, e, como disse anteriormente, esse torturante método espraia-se em diversos acontecimentos, e eu lembrei aqui apenas três deles. O que me impressiona é assistir ao governador Alckmin falando com tanta placidez na televisão sobre o salário-aluguel que daria aos desalojados pelo seu torturante método. Parece que foi uma operação trivial, e não outro pogrom, como o foi Pinheirinho.

A população de São Paulo, penso, há de acordar. Não é possível assistir passivamente a tanta violência, desrespeito aos direitos humanos, ao Estado de Direito, que sempre pressupõe diálogo. A democracia não pode conviver com tanto autoritarismo. E não se pense que torcemos para que essa escalada na direção do pensamento autoritário do PSDB prossiga. Mesmo como adversários de nosso projeto político, gostaríamos de tê-lo como um partido democrático, capaz de governar à base do diálogo, de compreender os movimentos sociais como um fenômeno positivo. Infelizmente, até agora, só temos visto este partido se contaminar por um pensamento conservador e autoritário, digno do medievo trevoso. Infelizmente.

Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA).

Fonte: http://www.viomundo.com.br/politica/emiliano-jose-a-populacao-de-sao-paulo-ha-de-acordar.html.