A DESCARACTERIZAÇÃO DOS SISTEMAS CAMPONESES DE PRODUÇÃO: PERDA DA IDENTIDADE E DISTANCIAMENTO DA VIVENCIA CAMPONESA

Com bases fortes estabelecidas ao longo de centenas de anos de experiência na lida com a terra, na produção de insumos para o consumo da família e manutenção do mercado interno. Os sistemas camponeses de produção, mais especificamente a agricultura camponesa durante muito tempo garantiu o suprimento de alimento e por suas características determinou todo um jeito próprio de ser e de fazer de um povo. São inúmeras as pressões para que o camponês adote outro modelo de produção. Os adeptos da “agricultura de resultados” não poupam esforços para seduzir os remanescentes camponeses. Apesar da capacidade e resistência, muitas já foram as perdas em função das influencias do modelo capitalista de produção, comprometendo a continuidade dessa cultura de produção e relacionamento com a terra e com o meio. A conservação dos princípios e características que regem as relações nos sistemas camponeses de produção é determinante para a preservação de toda uma cultura de produção, relacionamento com o meio e com o outro, uma vez que, é na lida desse sistema de produção que se dá a construção e transmissão desse saber as novas gerações. A criança não “aprende” a lida, ela vive a lida camponesa no cotidiano da sua formação, no contado com a terra, com as plantas e animais, na observação e contato com uma tecnologia própria e apropriada da sua realidade. Analisar os impactos das mudanças nos sistemas de produção sobre a criança camponesa se faz necessário, uma vez que esse contexto é determinante para a sua formação e construção de sua identidade.

AGRICULTURA CAMPONESA

“A agricultura camponesa não é só um jeito de produzir no campo. É um modo de viver. É uma cultura própria de relação com a natureza. É uma forma diferenciada de vida comunitária” (GÖRGEN–2004 – pg. 11).

Esse trecho do livro Os Novos Desafios da Agricultura Camponesa de Frei Sérgio Antônio Görgen, traduz em poucas palavras a essência da agricultura camponesa, assim entendemos porque resistiu por tanto tempo em meio a tantas pressões. Não se trata de trabalhar a terra, cultivar, ou mesmo produzir alimentos, é uma relação de afetividade, de cuidado, de troca, de compromisso com a continuidade, com a preservação. Não é uma técnica ensinada, é um valor passado de pai para filho, um jeito próprio de fazer e se relacionar, que não se aprende nos bancos de universidade ou nos cursos técnicos e encontros de formação promovidos por governos ou multinacionais do agronegócio. A agricultura camponesa determina não apenas o suprimento alimentar de um povo, mas todo o seu modo de vida. Isso certamente se deve as peculiaridades que a distingui da agricultura latifundiária. Görgen destaca:

A agricultura camponesa, já no seu nascedouro, combina seis características, diametralmente opostas à agricultura latifundiária:

- Pequenas áreas de terra;

- Produção de subsistência, para o auto-consumo familiar;

- produção diversificada, policultivos, grande variedade de culturas agrícolas e grande variedade de criação de animais (pecuária);

- Trabalho familiar, utilização de mão de obra própria, autonomia da força de trabalho;

- Produção de significativo excedente voltado para o mercado interno, para as necessidades da população do país em construção;

- Controle da tecnologia utilizada, desde a seleção e conservação das sementes e mudas, o conhecimento dos ciclos agrícolas, o controle das doenças, as aptidões do solo, as especificidades da natureza e dos micro-climas, tecnologias industriais caseiras ou comunitárias dos embutidos às farinhas, construção dos próprios equipamentos, domínio de conhecimento em técnicas construtivas de casas, galpões, cercas, pontes pinguelas: tudo simples, mas eficaz e com controle dos próprios camponeses. (GÖRGEN-2004–pag 20)

O professor Bernardo Mançano Fernandes explica essa estrutura da seguinte forma:

“enquanto o agronegócio organiza seu território para produção de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu território, primeiro, para sua existência, precisando desenvolver todas as dimensões da vida” (MANÇANO 1999).

Desenvolver todas as dimensões da vida. A estrutura aparentemente simples, de praticas rudimentares próprios dos sistemas de produção camponeses favorece a construção de uma identidade própria.

IDENTIDADE CAMPONESA – UM JEITO PRÓPRIO DE SER E DE FAZER

Alguém que tenha dado os primeiros passos, num curral, galinheiro ou lavoura, não aprende a lidar com a terra plantas e animais, é muito mais que isso, há sentimento de pertença. A terra, os recursos naturais as plantas, os animais, não são mero objeto de exploração e consumo, são partes de um todo, do qual ele também faz parte. Existe uma relação de interdependência, cumplicidade, afetividade. O camponês não campeia o gado - como é próprio do latifúndio -, ele chama cada individuo pelo nome e eles comem em sua mão. Tem sempre o galo de estimação o boi de estimação, a ferramenta de estimação, essa relação se constrói na vivencia, no contado diário e continuo. A lida camponesa não faz “profissional” do campo, faz camponês, e ser camponês é muito mais que cultivar a terra, é cultivar a terra com afetividade, com respeito à vida, ao outro, com perspectiva de continuidade, de preservação dos recursos. A criação de animais não é apenas uma alternativa de renda, é uma mística. O levantar pela manha, o tirar leite, alimentar o porco e a galinha, o fazer artesanal próprio da roça, compõe a mística da ruralidade. Esse contexto de relações e de diversidade próprios do sistema de produção camponês é determinante na formação da criança camponesa. Produz uma identidade própria. Valores, hábitos, costumes, jeito especifico de ser e de fazer forjados na vivencia da família, da comunidade, na lida do sistema de produção. A criança camponesa ainda tenra tem contato no seu cotidiano com uma gama de informações que só se tem no contexto da lida camponesa, o contato com a terra, com as plantas, com os animais evolui para a construção de um complexo de relações. Conhecimentos básicos de manejo de culturas agrícolas e criações, máquinas e ferramentas, ciclo das chuvas, influencia da lua, variedades de plantas e animais produção de artesanatos, conservas e muitos outros são passados de pais para filhos sem nenhum esforço ou preocupação com o método, mas de forma eficiente, muitas vezes no diálogo silencioso da labuta.

7 A IDENTIDADE E A VIVENCIA DA CRIANÇA CAMPONESA

“Nós nos forjaremos na ação cotidiana, criando um novo homem com uma nova técnica”

(CHE GUEVARA)

“Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homem se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. (FREIRE 1970 pag. 39)

Apesar de citadas em contextos diferentes, as expressões ação cotidiana de Che e mediatizados pelo mundo de Freire – evidencia no pensamento, a concepção de formação a partir da pratica, da vivencia, da realidade. O professor Derli Casali faz o seguinte relato:

“Era menino e acompanhava meu pai pelos campos fazendo as colheitas das espigas de milho, ou de feijão, ou de arroz... Esse processo de aprendizado por meio da convivência, da observação se dava desde a infância” (CASALI 2004 pag. 04).

Os sistemas de produção camponeses são um espaço de imensurável valor formativo. A participação de todos no processo produtivo – inclusive as crianças - contribuiu de forma significativa para a preservação não apenas de uma forma de organização do trabalho, mas de toda uma cultura de produção, relacionamento com a terra e com o meio. Essa participação no processo produtivo é um eficiente mecanismo para transmissão e construção do conhecimento que faz a criança camponesa diferenciada, portadora de uma importante “bagagem” de conhecimento empírico, determinante para sua formação e desenvolvimento no contexto da escola do campo.

INFLUENCIAS E MUDANÇAS NA VIDA E NO MODELO DE PRODUÇÃO DA FAMÍLIA CAMPONESA

“O mundo nos nossos dias requer praticidade, agilidade e rapidez. O difícil se tornou inadequado, o velho, antiquado e o novo significa solução. Tudo que é novo, tudo que é prático, tudo que é fácil, é imediatamente aceito. “Já não se faz, se compra feito” (MATOS 2001)

Esse trecho de um texto que escrevi em 2001 traduz a máxima do comportamento nos nossos dias. Não se questiona nada. Origem qualidade conseqüências. Quem dita é a marca, a moda, a facilidade, a pronta entrega. Não importa as relações, o dialogo, a cultura, o simples botar a mão na massa. As receitas da vovó, as conservas, o polvilho, o bolo de aipim, o queijo, a goiabada, a vassoura de capim, as histórias, as cantigas, as reuniões de família, tudo velho e ultrapassado na lógica da “sociedade do consumo". A mídia – especialmente a TV e internet – cumpre muito bem o seu papel de difusora das “máximas" que regem o comportamento nos dias atuais e certamente que tem influenciado a família camponesa, seu jeito de ser e de fazer. A muito se diz que o camponês já não é o mesmo, mudanças profundas nos vários aspectos de sua vida, vem sendo estudadas por inúmeros pesquisadores. Derli Casali em recente palestra discorre sobre essas mudanças e suas influencias assim:

Até o início dos anos setenta, os povos da terra eram muito mais autônomos quando, ao seu modo, produziam e reproduziam seus valores, suas sementes, suas técnicas e seus filhos e filhas. Não compravam quase nada lá no mercado. Nestes últimos anos, depois que modernizaram os modos de viver, tornaram-se mais dependentes dos bancos, do mercado e dos conhecimentos. As crianças passaram a ter medo da natureza, dos bichos, enfim, foram educadas como algo a parte e não como parte da natureza, sem os sentimentos da natureza. Assim disse dona Anelita Pinheiro: "as crianças de hoje são bem diferentes das crianças de antigamente. Não conhecem nada. Não sabem fazer um carrinho de mão, uma canga, um canzil, construir tulhas e casas, nem sabem colher sementes, nem preservá-las; nem conhecem as fases da lua, nem suas influências na vida das plantas; não sabem quando a garapa atinge o ponto para virar rapadura. Não ousam ouvir os mais idosos. (Casali 2004 pag.02)

Gorgem (2004) aponta a revolução verde como principal articuladora desse processo de desestruturação e destaca duas conseqüências diretas sobre o jeito de fazer agricultura dos “pequenos” agricultores que conseguiram resistir na terra, são elas: a destruição da estrutura de produção que dava base para a auto-sustentação e mudança na cabeça do agricultor