As cotas em parábola

Wilson Correia

O Olho Esquerdo entrou em debate com o Olho Direito. O primeiro dizia ao segundo: “É melhor abrir nossas janelinhas porque o sistema real é bem mais que nós dois”. E ambos, em uma passeata, foram para a rua. Disputavam a autoria da melhor visão estratégica para que aquele movimento social em luta tivesse a melhor mirada sobre como vencer o inimigo sistêmico. Enquanto digladiavam, cada um se esforçando para fazer valer a própria melhor visada, o “spray” de pimenta veio na direção deles, fê-los cegos e deu-lhes uma tremenda rasteira.

Outra parábola, de Bertold Brecht, intitulada “Turandot ou o Congresso das Lavadeiras”, conta-nos o seguinte:

“Mestre: Si Fu, nomeie para nós as questões centrais da filosofia!

Si Fu: Será que as coisas são fora de nós, por si, mesmo sem nós, ou será que elas estão em nós, para nós, não sem nós?

Mestre: Que opinião é a correta?

Si Fu: Não se chegou a nenhuma decisão.

Mestre: Para que opinião tende, por fim, a maioria de nossos filósofos?

Si Fu: As coisas estão fora de nós, por si, mesmo sem nós.

Mestre: Por que a questão permaneceu sem ser resolvida?

Si Fu: O Congresso, que deveria tomar a decisão, teve lugar, tal como acontece há duzentos anos, no Mosteiro Mi Sang, que se acha às margens do Rio Amarelo. A pergunta era: o Rio Amarelo é real ou ele só existe em nossas cabeças? Durante o Congresso, contudo, houve um degelo nas montanhas, e o Rio Amarelo ultrapassou suas margens e arrastou consigo o Mosteiro Mi Sang com todos os participantes. Assim, a demonstração de que as coisas são fora de nós, por si, mesmo sem nós não pôde ser realizada”.

Juntando essas parábolas, vemos que aquele olho que dizia que o sistema é maior do que nós estava com a melhor visão das coisas.

Ora, enquanto as cotas mitigam direitos, o sistema continua permissivo com relação aos privilégios dos que se sentem por cima da carne seca mediante o aparelhamento dos movimentos sociais, que se valem da força de trabalho alheia para lucrar, acumular riquezas, consumir e viver cinicamente expropriando, excluindo e alijando da vida ativa concreta e real contingentes imensos de seres humanos.

Ora, o capitalismo sempre se valeu da máxima “Dividir para governar”. E ele o faz cunhando a competitividade de todos contra todos. O mais perverso nisso tudo é quando o sistema coloca dominados contra dominados, querendo que nos convençamos de que o esforço individual compensa a injustiça social. Isso tem custado a nossa dignidade. Sem dignidade, não podemos ser mais livres e mais justos.

Mas nós, feitos Olho Esquerdos e Olho Direito, iguais aos filósofos no Congresso das Lavadeiras, continuamos na luta, tomando-nos uns aos outros como adversários, quando o verdadeiro inimigo continua a dar rasteiras homéricas em todos nós.

É na esteira disso que vale a pena indagar: vale a pena incluir em uma sociedade estruturalmente excludente? Algo altamente questionável, pois enquanto o incluído depender da existência de um só excluído para se sentir parte da sociedade ativa, a justiça e a liberdade continuarão como sempre, ao largo e longe de todos nós. E a servidão voluntária terá sido tudo o que pudemos colher.