O "homem cordial" brasileiro: Uma Reflexão sobre o Pensamento de Sergio Buarque de Holanda

Percebemos na obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda uma grande preocupação com a Identidade Nacional Brasileira e sua formação, bem como um protesto com relação a “cordialidade” brasileira, que nada tem a ver com o ser cordial no sentido do senso comum, mas, sim, com o típico “jeitinho brasileiro” como prática arraigada em nossa sociedade que atrapalha o desenvolvimento do país e deturpa nossos valores, crenças e cultura.

Holanda enfatiza a necessidade de separarmos o Público do Privado e de respeitarmos as hierarquias, como forma de cidadania, de conscientização real de nossos direitos e deveres, a fim de nos tornarmos um país verdadeiramente democratizado, em que não ocorram as práticas etnocêntricas (que em grande parte são incentivadas por este “cordialismo” e pelo comportamento do “homem cordial”), o favoritismo e a democracia “burra” que não alavanca o crescimento e desenvolvimento do país, antes, trás danos a sociedade, ao indivíduo e interfere diretamente na formação de nossa identidade.

"O conceito de “homem cordial” surgiu através do “jornalista, poeta, acadêmico e magistrado santista Ruy Ribeiro Couto (1898-1963). O velho Buarque só deu uma fundamentação sociológica ao termo. Outro reparo mais importante ainda: o “cordial” aí do conceito não é sinônimo de afetuoso, afável, simpático, polido, educado, cortês... Não, nada disso! Cordial é por conta de seu radical latino “core, cordis”, que significa “do coração”. O homem cordial de que falavam Ribeiro Couto e Sergio Buarque diz respeito ao caráter emocional, passional, do brasileiro. (...) Ele é emocional, age deixando a razão de lado, é pouco afeito às leis, confunde o público com o privado, abomina formalidades e despreza a ética, a civilidade e a cidadania.”. (MARCO. A Lenda do Homem Cordial. Disponível em http://antigasternuras.blogspot.com/2007/10/lenda-do-homem-cordial.html. Acesso em15 de março de 2012 às 01.37h).

Percebemos então que o “homem cordial” é produto histórico originário da colonização portuguesa e sua estrutura sócio-política-econômica, ainda hoje, preponderante derivada do pensamento patriarcal e escravista.

Essa “afetividade” ou “cordialidade” pode ser claramente observada em qualquer instituição pública ou privada, como por exemplo: você passa mal, vai a um hospital público, se tem algum parente que trabalha lá, ou conhece alguém importante no cenário político, ou possui alguma “influência” no meio social ou político, és atendido de pronto e com a qualidade que requer qualquer atendimento médico, entretanto, se não conheces ninguém e nem tens influência no local, vai para uma fila (isso quando consegue a “chance” de ser atendido) de “triagem”, após horas esperando, chega a sua vez, então a surpresa, o responsável pela triagem, geralmente mal humorado(a) lhe informa que seu problema não é emergência, portanto deverás procurar um posto de saúde próximo a sua casa, ou então, lhe manda esperar que serás chamado em breve, são mais umas seis horas no mínimo de espera e o médico na sua vez, nem levanta os olhos da ficha e diz: - você vai tomar uma injeção e pode ir embora! – Mas, Doutor... o que eu tenho afinal? – Uma virose, responde o médico.

Outro exemplo: Uma mãe vai procurar vaga na escola para a sua filha menor, não encontra, mas...se tiver um “conchavo” a situação está resolvida de pronto; Início de mês, seu salário é depositado em conta e você precisa ir ao banco pagar uma conta, o banco está lotado, o que o “homem cordial faz”? Dá um jeitinho de entrar na fila preferencial (de idosos, pessoas com crianças de colo ou grávidas), ou então, passa as contas para a mão do(a) caixa que é seu(ua) conhecido(a).

Realmente o povo brasileiro é bem “cordial”.

O “homem cordial” objetiva através do uso exagerado de diminutivos a quebra da formalidade, da rigidez, visando uma certa “intimidade” na busca por ascensão e pela sua sobrevivência numa sociedade marcada pelas aparências, pelos “favores”, pelas “influências” etc.

O autor destaca ainda que, “Por essa impossibilidade de afirmar-se por suas próprias forças como indivíduo, passa, em meio a esta teia de relações “a viver nos outros” (HOLANDA. 2000: 147).

O “homem cordial” se preocupa com a aquisição de “títulos” que servem como adorno de “respeitabilidade”, para inflar egos reprimidos, “mascarar” o mal caratismo e as suas deficiências, incompetências e frustrações.

Conforme afirma Nietzsche “Não vos suportais a vós mesmos e não vos amais bastante: então, quereis induzir o próximo a amar-vos, para vos dourardes com seu erro.”(NIETZSCHE. 2000: 87).

Esta “cordialidade” afasta o indivíduo de qualquer tipo de manifestação da individualidade e causa uma “robotização”, uma padronização do pensamento coletivo em detrimento ao individual.

Holanda destaca ainda que “Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, antes as leis da Cidade. Há neste fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão de hipóstases, pra falar como na filosofia alexandrina”.(HOLANDA. 1999: 141).

Na medida em que conseguirmos “romper” com estes padrões “colonizadores”, “escravocratas”, “patriarcais” e “coronelistas”, transformando o Estado num estado verdadeiramente administrativo, menos cordial e mais racional, conseguiremos de fato a formação de uma identidade nacional. Esta não é uma mudança fácil, mas intrinsecamente necessária, tanto no Estado quanto na Política e nos demais setores sociais.

A sociedade brasileira esta repleta de exemplos da dita “cordialidade”, através dos quais, a “cultura” dos “favoritismos”, do “jeitinho brasileiro” estão marcados em nosso dia a dia “impedindo” de fato a criação de uma identidade nacional e oprimindo a manifestação de nossa própria identidade.

Ao estudar o conteúdo didático disponibilizado pela disciplina, me deparei com o material acerca do movimento originado por Oswald de Andrade denominado Movimento Antropofágico que surgiu no ano de 1920 como manifestação artística brasileira, que julgo ter plena concordância com a obra de Holanda no que tange a necessidade da ruptura com o pensamento colonial e escravista ao qual o nosso país ainda não se libertou.

Primeiramente, torna-se necessário compreendermos o conceito de Antropofagia, para depois traçarmos um paralelo entre este conceito e o do movimento antropofágico.

De acordo com a WIKIPÉDIA (2012), “Antropofagia é o ato de consumir uma parte, ou várias partes da totalidade de um ser humano. O sentido etimológico original da palavra "antropófago" (do grego anthropos, "homem" e phagein, "comer") foi sendo substituído pelo uso comum, que designa o caso particular de canibalismo na espécie humana. Por sua realização em contexto mágico cerimonial ou patológico não deve ser classificada ou compreendida como um hábito alimentar, o que não se aplica ao canibalismo, na maioria das vezes associado ao comportamento predatório”. (WIKIPÉDIA, A Enciclopédia Livre. Antropofagia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Antropofagia. Acesso em 15 de março de 2012 às 00.52h).

O movimento antropofágico no Brasil surge com o objetivo de ocasionar justamente a “deglutição” da cultura externa (europeia, americana, portuguesa) para que enfim a nossa cultura pudesse vir a tona. O tal rompimento de que nos fala Sergio Buarque de Holanda.

Como Holanda, Oswald de Andrade também questiona o pensamento “cordial” brasileiro ironizando em suas obras o aspecto submisso e omisso das elites brasileiras com relação aos “países desenvolvidos”, através da qual nosso povo é oprimido e a individualidade suprimida em “benefício” de um ideal de adequação “maior”.

Retirei do Manifesto Antropófago alguns trechos que julguei serem pertinentes a este fórum:

(...) Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

(...) Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

(...) Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

(...) A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

Enquanto o Brasil for o país dos “homens cordiais”, do “povo cordial” e da “cordialidade” no sentido de sermos “adequados ao convívio” e de “tirarmos vantagens” das mais diferenciadas situações, o Brasil continuará sendo o país do “estrangeirismo”, do “favoritismo” e das “desigualdades”, sendo restrita a possibilidade de nossa “real identidade nacional” vir a tona.

Observação: Peço notarem que a expressão "real identidade nacional" se encontra entre aspas.

Andréa Vidal
Enviado por Andréa Vidal em 18/03/2012
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T3562150
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