Sexualidade: para além do biológico

Wilson Correia

Quando, em 1949, Simone de Beauvoir afirmou que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2008, p. 9), ela chamou a nossa atenção para o fato de que identidades e subjetividades de “homens” e “mulheres” não podem ser reduzidas à dimensão meramente biológico-corporal.

Nascer com um corpo biológico não é acontecimento suficiente para os humanos estabeleceram o gênero dos indivíduos, uma vez que homens e mulheres são seres culturais e se fazem a si próprios historicamente, no seio de uma cultura simbólica prenhe de ideologias e práticas econômicas e políticas.

Isso equivale a dizer que: nascemos, crescemos e vivemos em meio a atitudes, comportamentos, costumes, fantasias, gestuais, hábitos, linguagens, normas, princípios, representações sobre desejo e prazer, regras, rituais, tradições e valores. Esses elementos formam os dispositivos que informam o modo como cada um percebe-se a si e se apresenta nos âmbitos domésticos e da vida social.

Ao produzir sua obra “História da sexualidade”, Michel Foucault afirma: “a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico” e que “não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar” (FOUCAULT, 1988, p. 100).

E o que Foucault denomina com o termo “dispositivo”? Mediante o emprego desse termo, Foucault tenta demarcar “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 1979, p. 244).

Como em um “jogo”, esses “elementos” que compõem o “dispositivo” referente à sexualidade seriam todos cambiantes, mudando continuamente de posição e funções, variando conforme o momento histórico e suas urgências. Daí o entendimento sobre o processo de construção histórica da sexualidade, o qual implica mudanças culturais prenhes de (des)continuidades, (ir)regularidades e múltiplas formas de manifestação, além da instabilidade advinda de seu caráter duradouramente provisório.

Dessa maneira, construída histórica e culturalmente, a sexualidade se configura diretamente implicada nas questões e práticas de poder. Maneiras de produzir, reproduzir e exercer o poder, o qual não se localiza apenas na relação entre dominantes e dominados, mas, sim, nas micro-relações em que se faz capilarmente presente , em meio às vivências cotidianas.

Por isso, para alem do dado biológico, e por relacionar-se com história, cultura e poder, a sexualidade também tem a ver com educação, ética e política, campos nos quais podemos buscar aquilo de que precisamos para fazer de nós mesmos o que somos ou podemos vir-a-ser.

Referências

BEAUVOIR, S. “O segundo sexo”. v. 2. Trad. S. Milliet. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

FOUCAULT, M. “Microfísica do poder”. Trad. R. Machado. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, M. “História da sexualidade: a vontade de saber”. Trad. M. Thereza Albuquerque & J. A. G. Albuquerque. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.