A educação é prioridade?

Wilson Correia

O humanismo que o Ocidente produziu, do Renascimento ao Iluminismo (‘Aufklärung’ dos alemães, ‘Enlightment’ entre os ingleses e ‘Lumières’ para os franceses), pretendeu celebrar as potencialidades humanas conduzidas pelo poder da razão. Na mesma trilha enveredou o positivismo do século XIX e seu filho dileto: o tecnocientificismo.

Erasmo de Roterdã, em seu ‘Elogio da loucura”, não poupa ironia para reafirmar a crença medieval na ‘miseria hominis’ (miséria do homem), ao tempo em que lhe contrapõe sua grandeza racional. Giovanni Pico, conde de la Mirandolla, serve-se do louvor à liberdade para estabelecer a ‘dignitas hominis’ (dignidade do homem), não menos destacada em Erasmo e em todo o humanismo.

Esse movimento renascentista, que se consolida na Modernidade, encontra nos modernos a sua crítica cruel. Exemplo disso está no livro ‘Assim falava Zaratustra’, onde Nietzsche se faz ouvir pela voz de seu profeta às avessas: “Eu vos ensino o sobre-humano. O homem é algo que deve ser superado” (Lisboa: Relógio D’Água, 1998, p. 12). Assim, o Nietzsche que matou Deus é o mesmo que, agora, nos diz que o homem também está morto, aniquilado pela exagerada valorização da razão e da alma e pelo seu abandono do corpo, da vida e da Terra.

Nesse debate, coube a Sartre e a Heidegger afirmarem a tese de que defender o humanismo não implica defender o inumano. Heidegger escreve: “Porque se fala contra o ‘humanismo’, teme-se uma defesa do in-umano e uma glorificação da barbárie brutal”, mas “a oposição ao ‘humanismo’ não implica (...) a defesa do inumano” (Martin Heidegger. ‘Sobre o humanismo’. São Paulo: Abril, 1983, p. 166-167).

Entre uma e outra posição, vale lembrar: uma coisa é o elogio de um conceito de “humano”; outra, diferente, é a certeza de que o humano é um feixe de possibilidades. Sobre isso, Foucault afirma: “Penso que nosso futuro comporta mais segredos, liberdades e invenções do que o humanismo nos permite imaginar, na representação dogmática que fazem dele os diferentes componentes do espectro político: a esquerda, o centro e a direita” (‘Ética, sexualidade, política: ditos e escritos’. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 300).

Esse feixe de possibilidades futuras que o humano é não pode, nem deve, acomodar-se aos reducionismos da razão tecnocientífica e meramente instrumental. Mas as decisões políticas, sobretudo aquelas voltadas a projetos e programas de formação humana, estão tomando outra direção. Nelas, sequer o conceito fragílimo do que seja ‘humano’ tem lugar, que dirá a defesa das potencialidades humanas voltadas para o futuro.

Ilustram a afirmação do parágrafo anterior três exemplos: o do programa ciência sem fronteiras, o das licenciaturas internacionais e o caso dos concursos para contratação de profissionais da área educacional: em todos eles a filosofia (um dos saberes mais humanistas voltados para a mobilização do “feixe de possibilidades” que cada humano é) está ostensivamente excluída.

Se já se decidiu que em programas governamentais como os indicados acima e que em concursos para a contratação de professores o “pessoal das humanas”, particularmente o da filosofia, não terá lugar, dado que a prioridade é a formação e a contratação de tecnólogos em suas múltiplas formatações, então está justificada a educação como um “esquecimento” político com o qual temos que conviver. Contudo, tenho minhas dúvidas se esse desprezo de nossas potencialidades futuras é algo realmente bom para o nosso (ainda desejado) projeto de nação.