Comênio: a todos o que é de todos

Há, no pensamento de Comênio (1592-1670), um desejo com força de premonição e excitação de utopia. Vivesse o autor da Didática Magna no século XXI e veria o saber, em tese, à disposição de todas as pessoas do planeta. O professor, cientista e escritor checo, em pleno movimento de ascensão da burguesia no mundo moderno, defendia ideias que ainda hoje se fazem presentes como formas de direcionamento no processo ensino-aprendizagem.

Uma das suas teses mais importantes é quanto à abrangência: todos deveriam ter direito a todo o saber, a todo o conhecimento humano científico e artístico. A partir de um ensino (que fosse do mais simples ao mais complexo, do mais concreto ao mais abstrato), sempre com os pés na realidade empírica e cotidiana, as crianças aprenderiam com prazer e com eficiência.

Uma das máximas ligadas à pedagogia (e também à didática) moderna é a de que as pessoas se interessam em aprender quando as práticas e os conteúdos fazem sentido para elas. O que Comênio propunha era, a meu ver, que as coisas fizessem sentido para os educandos. Quando alguma coisa faz sentido para alguém, isso significa que essa “coisa” passou a pertencer a esse alguém, o que, por sua vez, acabou de se formar um pouco mais, ganhou autonomia com sua aquisição, com sua aprendizagem.

É claro que a sociedade moderna, empreendedora e prática, necessitava desse tipo de comportamento humano. O ideal é aprender a aprender e aprender a fazer. As revoluções industriais certamente não teriam ocorrido sem essa cosmovisão. Ao estimular a ação voltada para a ação, Comênio defendia ideias atualíssimas, como a de que é fazendo que se aprende a fazer: a leitura se aprende pela leitura, escrever se aprende escrevendo etc.

O espírito religioso de Comênio, entretanto, propunha que ao conhecimento sucedia-se a virtude e, por fim, a piedade. Valores caros ao surgimento do espírito de l’honnête homme. No corpo de suas ideias estava instalada a utopia a que fiz referência no início: homens sábios, virtuosos e pios. A própria modernidade que ajudou a consolidar viria a pulverizar o desenvolvimento das duas últimas qualidades. Quanto à primeira, infelizmente, às vezes, caminha sozinha, sem par. Parodiando Drummond: “Outra fonte não tem a tristeza do homem”.