O decálogo da preocupação

Wilson Correia

“O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta o número de letrados e diminui o de intelectuais. Não é este um dos dramas atuais da sociedade brasileira? Tais letrados, equivocadamente assimilados aos intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou, encontrando a verdade, não a dizem, renegando a função principal da intelectualidade, isto é, o casamento permanente com o porvir, por meio da busca incansada da verdade” (Milton Santos).

A conjuntura atual em meio à qual vivemos pede-nos: não o alheamento, mas o engajamento; não a agnose, mas o ato de pensar; não o silêncio, mas a boca no trombone; não a indiferença, mas a ação política nutritiva capaz de nos dar a dimensão do que somos e fazemos e do que podemos ser e fazer em benefício de nossa própria história.

Pensando nisso, registro aqui os dez pontos que me trazem preocupação sobre o momento histórico e político porque estamos passando.

UM: Os partidos políticos

Partido político no Brasil está se constituindo de maneira a se guiar pela indiferenciação programática e pragmática. Sem um projeto de nação e sem compromisso com uma ética republicana, os partidos políticos vivem de um ativismo desqualificado cuja luta pelo poder se torna a única justificativa para suas existências. Até o Partido dos Trabalhadores (PT) se rendeu a esse enredo insípido, inodoro e incolor.

Esse partido, tendo subsumido o discurso de esquerda, por muito tempo serviu de abrigo aos segmentos que faziam a crítica do capitalismo e do capital. Porém, a identidade de verdadeira esquerda, que se opõe ao sistema e ao “statu quo” do liberalismo e do neoliberalismo, essa esse partido nunca concretizou de fato. A ação política petista e seu efeito deletério para a verdadeira causa dos trabalhadores ainda está por ser contada.

DOIS: A abdicação ideológica

Um dos efeitos tóxicos do PT nas últimas décadas brasileiras pode ser identificado como um movimento que esse partido liderou rumo à abdicação ideológica. Claro, ideologia, não como consciência falsificada, mas, sim, como conjunto de ideias que assimile os direitos, as bandeiras e as causas das camadas populares de nossa sociedade. Ao abandonar uma ideologia assim configurada, o PT promoveu o entreguismo da causa das classes populares, jogou na arena dos leões do capital todo trabalhador e toda trabalhadora que, massificados, deixaram de contar com uma voz pública reconhecida para fazer valer suas causas no cenário do embate político.

Se for verdade que a democracia se faz com partidos fortes, o partido forte não e faz sem ideologia também robusta, que empunhe um projeto de sociedade-nação que programe políticas estatais, e não ações de governo, partidárias, portanto, uma vez chegado ao poder. Mas não! No poder, é exatamente isso o que o PT fez e está fazendo, além de ter exaurido o pensamento e a ação crítica de poder e contrapoder elementares à democracia republicana. Daí termos que constatar, aqui e ali, cá e acolá, inclusive na universidade, as seguidas denúncias sobre o conhecido “silêncio dos intelectuais”, assimilados às pragmáticas econômico-políticas do capitalismo, e por ele beneficiados e, consequentemente, por ele amordaçados.

TRÊS: A tirania do capitalismo

A economia fagocitou a política e asfixia toda ação em meio ao corpo político a ponto conduzir a política-partidária ao reducionismo que a circunscreve em uma carreira profissional apenas, na qual a fome por bens materiais vê apenas o cifrão à sua frente, indiferente que é aos bens simbólico-culturais e sociais de que uma sociedade necessita para se consolidar como democrática, republicana e plural, onde o Estado cuida das coisas comuns e evita regular a vida individual.

Hoje, não! O Estado, governado pela economia capitalista, aborta o poder de gestão que seria próprio aos partidos políticos. Dá-se ao cuidado estremado com as coisas do capitalismo, regulando-as, disciplinando-as e controlando-as, em nome das quais se faz grande para a economia e raquítico para os direitos sociais. Aliás, por manter uma solene indiferença para com os direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores, esse Estado também regula, disciplina, controla e explora até o osso todo e qualquer trabalhador, justo aquele que deveria contar com políticas estatais para a manutenção de seus direitos vitais.

QUATRO: O silenciamento da consciência crítica

Nessa conjuntura, vivemos um tipo de totalitarismo discursivo que não deixa margem ao contradiscurso, essencial em uma democracia. Hoje, ariscar-se a fazer autocrítica e crítica do sistema é estar a perigo. Contra os atuais hereges da religião do capital é destinada toda sorte de ataques, perseguições e silenciamentos.

Intelectuais críticos não encontram espaços para veicularem seu pensamento. Universidade, professores e estudantes estão sendo tratados como verdadeiros bandidos, tamanha tem sido a criminalização da consciência inquieta, crítica, que apenas quer se colocar rumo à busca da verdade. Por isso, o nosso é um momento histórico de profunda gravidade, e isso tem de ser compreendido em toda a sua extensão e intensidade.

CINCO: O governo das massas submissas

A relação Estado-sociedade tem sido conduzida de uma forma populista: os agentes estatais dirigem-se às massas, exatamente àquelas que não têm meios, instrumentos e recursos para fazerem a análise criteriosa das ações governamentais. Assim, esses agentes passam ao largo daqueles segmentos sociais que, dados à produção e movimentação dos bens simbólico-culturais e sociais, podem fazer o movimento de valorar as políticas governamentais em voga. Nesse vácuo, prosperam as falácias, os discursos infundados, as ideologias benéficas aos malefícios do capital.

Desse modo, apoiados em uma massa impedida de pensar e de veicular suas ideias e de empreender ações políticas consequentes, os políticos submetem a sociedade inteira e ficam livres para fazerem o que bem entendem a título de gestão pública do bem comum, o qual é, em grande medida, privatizado pelo capital sob a conivência do Estado, do entreguismo criminoso dos partidos políticos e demais instituições sociais e indivíduos que comandam essas instituições.

SEIS: O clientelismo, o patrimonialismo e a bolsificação da sociedade

O novo clientelismo tem sido praticado sob a capa da autonomia do cidadão, o qual, com um cartão em punho, relaciona-se com o Estado mediante inserção em políticas de assistencialismo que não vão além do “antes pingar do que faltar”. Na outra ponta dessa relação desvirtuada situam-se os agentes de um patrimonialismo que prospera sob o manto da justiça, a qual abençoa privilégios, denega direitos sociais e desrespeita tanto a lei quanto a ética que seriam saudáveis à vida republicana.

Exemplo disso é o movimento de bolsificação da sociedade a que temos assistido nas últimas décadas, a qual se reverte em capital político para partidos desideiologizados e pragmatistas, que lutam uma lutam em que impera o poder pelo poder, e não pelo poder como meio para se construir outra possível sociedade. Aí, a reificação dos resultados das pesquisas de opinião torna-se outro assassino do debate e da ação política, uma vez que o alto número de aprovação atribuído a um político é tomado como motivo suficiente para transformá-lo em um titã, incólume, incriticável, intocável, imbatível e em poderoso chefão que aponta o dedo, manda, prende e arrebenta ao próprio bel prazer, constituindo-se, assim, em personagem altamente nefasto e tóxico para os pulmões de nossa incipiente democracia.

SETE: O vale-tudo da política

É por essas e outras que o vale-tudo na política se tornou uma excrescência sem par entre nós. Em nome do pragmatismo da luta que se resume a querer o poder pelo poder, rifam-se histórias, personagens, sujeitos, identidades e, o pior de tudo, princípios e valores que seriam imprescindíveis ao nosso regime democrático que ainda engatinha. Quanto menos ideias um partido e um político tiverem, quanto menos conteúdo programático eles ostentarem, quanto mais venais forem, quanto mais despudorados, espertalhões, locupletadores do bem comum eles sejam, mais valiosos se tornam nesse jogo do vale-tudo.

Nem a ficha criminal de sujeitos que expropriaram os trabalhadores e o bem comum; nem o histórico criminoso de quem torturou, matou e perseguiu em um regime ilegítimo pesam na hora de se fazerem as tais “alianças” – basta que quem tenha tudo isso em seu currículo ofereça alguns minutos na televisão para ele logo ser acolhido, cumprimentado e abraçado como um grande irmão. Isso, claro, deseduca, violenta e espezinha aqueles que ainda valorizam o brio, a honra, a dignidade e um mínimo de bom senso ao homem público.

OITO: A repressão à consciência crítica

São graves as ocorrências de perseguição, criminalização e repressão à consciência crítica em nossos dias. Essas ações tem sido empreendidas por agentes públicos, os quais, cegos para a necessidade de autocrítica, mobilizam o aparato repressivo do Estado para fazerem calar todos aqueles que ainda se indignam e clamam por um pouco de lucidez.

Toda a investida truculenta contra nossas comunidades acadêmicas, jornalistas, juízes, formadores de opinião e demais sujeitos sociais que tentam entabular a avaliação crítica do capitalismo e do Estado que se faz servil ao capital só reforçam o quanto o tal pensamento único cresce e se volta contra nós como se tudo pudesse sobre nossa vida e nossa morte.

NOVE: O expurgo dos quadros

Por conta disso tudo, não importa se um quadro do partido, do sindicato ou de entidades análogas tenham histórico de luta em favor de causas sociais dignas; desde que ele se torne incômodo para quem ocupe o poder, para o partido, o sindicato ou para o gestor público, ele precisa ser expurgado imediatamente.

Querer sempre mais dos mesmos iguais é uma medida política a que estamos assistindo, o que, de resto, empobrece o debate político, a vida política e a ação política em nossa sociedade. Desse modo, incapazes de fazerem a autocrítica, governantes, gestores e administradores daquilo que deveria se inscrever na lista do bem comum terminam perdendo o fio da meada de suas ações, abrindo mão do sentido histórico de seus quefazeres e da razão social de ser de si próprios, das instituições de que fazem parte e até do Estado a que deveriam servir.

DEZ: A urgência de um novo engajamento

Todo esse cenário, esses sujeitos e o jogo de forças que mobilizam nos dão um panorama preocupante, demasiadamente grave. Uma nova forma de engajamento social se torna urgente. A carência de novos atores e sujeitos torna-se dramática. Nunca a urgência de uma reinvenção de nossa ação política se fez tão premente.

Conforta-nos saber que o ser humano pode ser o protagonista desse processo, consertar o que de errado está a fazer e criar o novo para que a vida, e não a morte, possa ter a primazia, se fortalecer e prosperar. Que um novo movimento social possa nascer para nos mostrar que tudo isso não é sonho, delírio ou inócua utopia. Mas... como? Com que forças? Com quem? Onde? Quando? Por quem?