A escrita na História da Humanidade - 4

Sobre as origens do alfabeto

Segundo Higounet, “o alfabeto pode ser definido como um sistema de sinais que exprimem os sons elementares da linguagem” (2003, p. 59). Este sistema, com suas técnicas e instrumentos, configura outra redefinição no processo da comunicação escrita, que não consiste primeiramente na invenção de uma série de signos gráficos, mas na decomposição da palavra em sons simples, em que cada qual é representado por um só signo. Não mais a pictografia, ou a ideografia, desenhos representando idéias, mas sinais que, evoluindo daqueles desenhos, representam diretamente os sons da fala. Cagliari demonstra algumas evoluções de formas pictográficas que mais tarde se tornariam as letras do alfabeto como as conhecemos hoje:

"O a era a representação da cabeça de um boi na escrita egípcia. Em grego, o alfa se escreve α; O b era a representação de uma casa egípcia. O d era a figura de uma porta. O m era o desenho das ondas da água. O n era o desenho de uma cobra. O era a figura de um olho. O x representava o peixe, e assim por diante (CAGLIARI, p. 108)."

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O Alifato e seus derivados

Uma representação mais próxima de um alfabeto surgiu com o aparecimento do Alifato(5), que ao contrário dos escritos egípcios, não se restringiu a uma região. O

Alifato se configurou na Síria, Fenícia e Palestina, constituído por 28 letras e escrito da direita para a esquerda e também derivou outros sistemas de escrita. Era dividido em dois subgrupos: o fenício, que derivou o alfabeto grego; e o aramaico, derivando o alfabeto hebreu e o árabe. As vogais não eram totalmente representadas em alguns desses alfabetos(6). Este sistema de escrita incide decisivamente na história das grandes religiões. Traduzindo os textos sagrados de seus derivados aramaico e hebreu, transcreveu alguns textos dos livros do Antigo Testamento.

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Fenícia, berço dos alfabetos?

A Fenícia se situava na planície costeira do que é hoje o Líbano e a Síria, no Mediterrâneo oriental (Wikipédia, verbete Fenícia). O historiador grego Heródoto atribui aos fenícios as primeiras inscrições de fato alfabéticas (Nicholas Fabian, www.kfssystem.com.br/loubnan/fenicio.html), mas pesquisas atuais têm mostrado vestígios de um alfabeto anterior, chamado escrita proto-sinaítica, utilizado na península do Sinai. O alfabeto fenício apareceu pela primeira vez em Biblos(7) e é considerado

a origem dos alfabetos atuais. Apesar do pretenso pioneirismo fenício, não há literatura ou registros escritos em materiais resistentes ao desgaste do tempo. O que

se sabe da sua escrita provém de curtas inscrições em pedra. Com os dados que se apresentam hoje, pode-se entender que a construção das palavras, assim como o

alfabeto árabe e o hebraico, não tinham símbolos para representar sons de vogais. Cada símbolo representa uma consoante. As vogais precisavam ser deduzidas no

contexto da palavra.

Com 22 sinais, esse alfabeto foi utilizado por volta do final do século 12 antes de Cristo. Consistia-se em sinais com precisão de formas, que dispostos ordenadamente em determinada combinação representavam graficamente, cada um, o respectivo som dos fonemas de uma linguagem oral. Por essas qualidades, muitos historiadores consideram que este alfabeto, composto de vinte e duas consoantes, chegou próximo da perfeição:

"Em seu livro 'O Choque do Futuro', Toffler afirma que 95% das invenções do homem se realizaram no decorrer do Século XX. Entre os 5% dos tempos antigos, figura o alfabeto fonético de Biblos. A invenção desse alfabeto operou uma revolução. Com menos letras, obtém-se maior precisão e mais clareza. Podemos descrever os sentimentos da alma, analisar o pensamento. As outras escritas não podiam propiciar essa fidelidade absoluta" (Extraído do texto O Alfabeto, do site www.libano.org.br/pagina47.htm , da embaixada do Líbano no Brasil).

Os paleógrafos(8) acreditam que os fenícios foram responsáveis pela expansão desse sistema de escrita pelo mundo antigo. Pode-se afirmar que o assunto vagueia entre o real e o mítico, na história do rei Cadmo9. Nessa história, alfabeto e poder militar são intrínsecos, como expressa Emanuel Dimas de Melo Pimenta:

“Cadmo, o mitológico rei que terá introduzido as letras do alfabeto na Grécia, semeou os dentes de um dragão com o qual lutara. Desses dentes nasceram homens fortemente armados”.

Cadmo não sabia como controlá-los e tratou de atirar pedras, de forma tribal, sem planos, aleatoriamente, fazendo com que aqueles homens

desconfiados de si próprios matassem uns aos outros.

Só depois, com apenas cinco sobreviventes, Cadmo conseguiu assumir a autoridade da liderança.

Como mostrou McLuhan, o alfabeto significava para a Grécia Antiga o poder, a autoridade e o controle de estruturas militares a distância. Cadmo representa uma transição de tecnologias. Os dentes do dragão semeados geraram o poder que acabou com as cidades-estado e que permitiu a exuberância do Império Romano. Foi o "ruído" produzido pelas pedras de Cadmo o responsável pela desarticulação daquele exército” (trecho de Natureza, artefactos e percepção sensorial).

Embora a mitologia propale que Cadmo seja o herói que inventou e difundiu o alfabeto, uma versão, menos abstrata, porém bem possível, é a de que os gregos – assim como outras civilizações – tivessem mais facilidade de apropriação do alfabeto fenício em relação aos demais alfabetos por uma questão prática de contato comercial com aquele povo. Os fenícios eram os mais desenvolvidos na técnica das embarcações e no comércio, o que permitia manter intenso comércio marítimo com outros povos:

"Ora, o comércio é a atividade econômica que mais exige o registro de suas transações: assinaturas de contratos, recibos de mercadorias etc. Assim, da necessidade de simplificar as escritas já existentes (egípcia e mesopotâmica) surgiu o alfabeto fenício, que tornou possível uma difusão maior da habilidade de escrever, até então privilégio de uma minoria" (AQUINO e outros, 1980, p. 123).

De fato, os avanços tecnológicos marítimos possibilitaram o desenvolvimento do comércio, e tanto, que Rubim Santos Leão de Aquino (1980, p. 122) recorre a uma passagem bíblica advertindo a soberba dos fenícios, por causa do desenvolvimento comercial e marítimo: “(...) foste cheia de bens e te glorificaste

muito no meio dos mares” (Livro do profeta Ezequiel, 27, 25).

Aquino também sugere uma relação entre os processos avançados da escrita e uma outra advertência onde “Pela extensão da tua sabedoria, pelo comércio aumentaste o teu poder; e eleva-se o teu coração por causa do teu poder” (Ezequiel, 28, 5. Itálicos do autor). Uma análise sobre este versículo e um questionamento de Aquino sugere que estão implícitas as relações entre o domínio da escrita e o poder. O autor interage com o leitor: “Agora, pense um pouco... Seria essa maior difusão da habilidade de escrever que Ezequiel procurou expressar quando falou: “pela extensão da tua sabedoria”? Talvez sim, talvez não, mas não deixa de ser uma forma de interpretá-la. Você teria outras?” (p. 123).

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(5) Primórdio do alfabeto árabe. Sua letra inicial, o alif, origina o seu nome.

(6) Permita-se aqui um parêntese interessante: há uma semelhança entre a escritas hebraica e algumas palavras nos chats da Internet. O alfabeto hebraico não possuía vogais. Nos chats, por questão de dinâmica, palavras como “também”, “você” e “beijos”, não só perderam as vogais, como algumas consoantes, mas que são perfeitamente compreensíveis pelos internautas.

(7) Primeira cidade fenício-libanesa estabelecida, situada 37 quilômetros ao norte de Beirute. Nela, Cadmo inventou o alfabeto fonético. O nome Biblos tem origem na comercialização intensa do papiro na cidade. Biblos deu seu nome à Bíblia.

(8) Especialistas na arte de decifrar escritos antigos.

(9) Cadmo é um misto de personagem real e mitológico. Filho do Rei da Fenícia, foi o primeiro rei de Tebas, cidade fenícia. Segundo a tradição grega, Cadmo legou aos gregos o uso do alfabeto, ensinando-lhes a ler e a escrever.

(continua)

Eduardo Escreve
Enviado por Eduardo Escreve em 19/07/2012
Reeditado em 19/07/2012
Código do texto: T3785698
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