Nós, autocriadores

Wilson Correia

Encontramo-nos em um universo aberto e em expansão. Para sabermos o que isso significa, pensemos em um caça a jato. Esse avião, alcançando a tripla velocidade do som, faz um quilômetro por segundo. Nessa velocidade, o jato levaria um milhão de anos para chegar à estrela mais perto do Sol, a ‘Proxima Centauri’. Olhando de lá, constataríamos o humano literalmente ‘ausente do mapa’.

Por conta disso, entre nascimento e morte, vagamos nós, grãozinhos finíssimos da poeira mais sutil em que se pode pensar. E essa é a realidade incômoda, a qual tentamos contornar mediante invenções de intermináveis artifícios: religação com as origens, pertenças consanguíneas, familiares, étnicas, geográficas, ideológicas, políticas e assemelhadas.

Tudo quimera, talvez dissessem as personagens de Albert Camus, o filósofo para quem o único problema realmente justificável em filosofia é aquele que nos interpela: a vida merece ser vivida?, formulado em ‘O mito de Sísifo’ e que também, parece-me, se faz presente em outra de suas obras: ‘O estrangeiro’.

Concebido num período de guerra (1940), ‘O estrangeiro’ desnuda a tragicidade da condição humana, absurdamente cunhada no tempo e no espaço possível entre o nascer e o morrer. Aí, assassínio, morte, amor, diversão, violência, maldade, desgraça, praia, prisão, processo, insensibilidade, ausência de alma, estranhamento social, pena capital, indiferença, amoralidade, imoralidade, cinismo, vazio, desamparo, impotência perante a vida que segue o próprio curso, independente da vontade e da escolha humanas, tudo sinaliza para aquilo de que não queremos tomar conhecimento: o sem-sentido governa a vida.

Mersault, a personagem que passa por todas essas vicissitudes, jogado daqui para ali e de lá para cá, não é herói, nem anti-herói. Ele simplesmente está à mercê de um mundo, sem propósito, rumo, sentido ou significado; desprovido de certo e errado, de bem e mal, maturidade e imaturidade, razão e emoção. Um mundo onde tudo é permitido porque tudo se equivale no mais cru niilismo erigido sob o absurdo.

Mersault não explica nada, apenas descreve. Quase sempre se entrega ao silêncio. Não tendo o que dizer, nada quer ouvir. Quando fala, a verdade crua brota de sua boca, passando ao largo do reino da mentira. Aí ele se faz ferino, cáustico, impiedoso. O que simplesmente é.

Simplesmente somos. Somos estrangeiros de nós mesmos em nossa condição existencial. Estrangeiros neste mundo, igualmente o seríamos após a morte, em imagináveis céu e inferno, onde nossa condição terráquea sempre estaria a nos lembrar que nossa gênese se deu aqui, nesse infinito universo em movimento e na condição de poeirinha da poeira que o olho nu não enxerga quando colocado como vizinho do Sol.

Talvez o que Albert Camus e seus personagens absurdos nos apresentam seja o desafio de atuarmos como autocriadores: se ninguém e nem nada são por nós, sejamos para nós mesmos nossos primeiros inventores.