Cotas: diferença não é desigualdade

Wilson Correia

Parece-me que o debate sobre adoção ou não das cotas nas políticas públicas e instâncias administrativas estatais brasileiras traz em seu bojo a questão relativa às relações entre Estado e sociedade.

Sabemos que à concepção jusnaturalista de Estado opôs-se o entendimento teórico de que o Estado é social e historicamente construído.

Se assim é, como, nos dias atuais, representantes políticos legisladores estão moldando a face do Estado brasileiro, que em nada pode ser naturalizado?

Em uma democracia, não há espaço para outra forma de Estado senão a do Estado legal, constitucionalmente concebido, erigido e obediente à vontade soberana do povo, harmonizado com a história que esse povo faz e voltado para o atendimento das necessidades que esse mesmo povo apresenta.

E nossa “Constituição Cidadã”, de 1988, garante-nos que o Brasil constitui-se de cidadãos detentores de direitos universais, sem distinção de raça, condição sócio-econômica, credo religioso, ideologia e afiliação política, dentre outras características.

Claro que um igualitarismo absoluto seria algo tirânico, assim como é tirânica a sobreposição do direito de um grupo de indivíduos em detrimento do direito universal de todos.

Mas o Estado brasileiro atual parece incursionar por trilhas particularistas, criando, assim, jurisprudência deletéria para a República, a qual deve ser universalista em seus marcos legais (se o Estado é um mal necessário, que ele trate dos universais, interferindo o menos possível na vida particular e concreta de cada cidadão, de cada cidadã).

Nessa linha, penso sobre a questão dos pretos, pardos e indígenas (etnicamente diferentes, economicamente desiguais). Considero, aqui, que essas formas de lei nada mais fazem do que cingirem ao âmbito jurídico a tutela da criação de oportunidades formais, baseadas em diferenças, quando, na verdade, a sociedade deveria valer-se do auxílio do Estado para criar condições econômicas e materiais objetivas a todos e a todas. Entendo que é no âmbito da economia que se situa a gênese da desigualdade entre homens e mulheres em nossos dias. Por isso, querer corrigi-la pelo contorcionismo jurídico fundado em particularismos secundários é desejar que paliativos consertem aquilo que só princípios ativos reais podem dar jeito.

Como, no capitalismo, segurança e justiça sociais universais são sempre sacrificadas em nome da liberdade individual, formalmente estabelecida, o que o Estado mínimo neoliberal anseia é mitigar tensões sociais mediante práticas político-partidárias-eleitoreiras garantidoras da legalidade de direitos aos diferentes, mas sem atacar as fontes da desigualdade: a das relações voltadas para a produção da vida material concreta.

Essa discussão relativa ao modelo societário e ao tipo de homem e mulher que deve sustentá-lo parece-me anterior ao debate sobre as políticas de ações afirmativas, que foram muito incentivadas pelos Estados Unidos da América, os quais, agora, estão revendo suas ações assentadas nesse conceito, sobretudo após uma branca considerar-se impedida de entrar na universidade por conta das cotas para negros.

Sou sensível à questão das diferenças étnicas (pretos, pardos, índios). Porém, não compreendo como essas diferenças possam ser tomadas como parâmetro para a correção de desigualdades que são de ordem sócio-econômicas. Essas que possibilitam a pretos, pardos e índios continuarem a excluir pretos, pardos e índios com o fito de se considerarem incluídos em nosso modelo societário excludente.

Como superar o modelo sócio-econômico excludente de todas as minorias: essa é que deveria ser a nossa real preocupação, reservando ao Estado relações mais arejadas com a sociedade e que dessem aos indivíduos concretos mais condições objetivas de vivência de relações mais justas, livres e humanas entre si, sempre juridicamente iguais em suas diferenças.