Qual o saber que está faltando para o povo saber e qual o papel do professor?

A escola não é um dado natural, foi construída recentemente. A educação é um terreno de grandes disputas e pluralidades, e a escola é crivo de hierarquização social, por isso é de muita importância os saberes que nela estão trabalhando. O texto de Thompson nos ajuda a pensar no papel do professor, do intelectual e da própria instituição universidade/escola. Ele questiona se há uma convivência harmônica entre a ‘cultura popular’ e a ‘cultura oficial’. Consideramos algumas características de uma e outra forma de cultura; a primeira de base oral; tradicional e costumeira; aprendida no dia a dia (misturada, de certa forma, com toda a vida da comunidade); a segunda de base escrita, científica, veiculada pela escola governamental. A cultura oficial, bem como a educação oficial, a língua oficial, nada disso é natural. Tudo isso foi historicamente construído, fruto de conflitos e lutas, e revela processos de dominação e resistência.

No diálogo entre ciência e saberes populares não existe neutralidade. O professor precisa ter clara a importância da educação pela experiência, a educação no cotidiano, de um ponto de vista não formal, extra escolar; pois a escola se afastou não somente das classes populares, como também da experiência: “Educação...quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. (...) Parece que essa educação que foi a sua tem uma força que tá nela e não tá” (BRANDÃO, 1984, p. 9).

Questões que tratam da formalidade da escola em contraposição à “escola da vida”; com o fato do professor dever se preocupar com a utilidade do seu estudo; e a valorização de um saber que foge ao espaço escolar, possuindo relação na roça, como citado por Ciço, mas também em outras culturas, como a indígena, devem estar sempre em discussão. Por exemplo, na tribo Kaigang, para eles, o saber mais importante está totalmente relacionado à educação tradicional Kaigang, “afirmação do idioma indígena e também afirmação da identidade étnica”: formas de contar a história- relação entre os mais velhos (mestres) e os mais novos.

Tentando acompanhar o pensamento de Ciço, no texto de Brandão, acerca do que é educação, chega-se a conclusão de que educação deveria servir ao ser humano e não ao mercado de trabalho, como vêm acontecendo. Há uma dicotomia entre o Executivo e o Legislativo, sendo que este não representa o povo para o qual governa. A escola trabalha na contradição da sociedade, portanto, precisa ter consciência dessa condição e ocupar os espaços. A escola não deve se limitar a ensinar a ler, escrever e contar. Existem tantos saberes, inclusive práticos e teóricos, que, juntos e em equilíbrio, podem ajudar uma geração a ter consciência de seus direitos e deveres, assim como a valorizar cada indivíduo presente na sociedade. Não basta apenas aceitar o que o senso comum e o Estado nos dizem, precisamos nos questionar. Nosso saber não pode se resumir a isso.

Precisamos nos emancipar do preconceito de que somente o mero conhecimento da leitura, da escrita e das contas possuem virtudes intrínsecas capazes de transformar cada indivíduo em fator social útil, de elevá-lo moralmente, de fornecer-lhe melhores elementos de conforto e felicidade. Sabemos, ao contrário, que a instrução pura e simples é uma arma, e, como toda arma, é perigosa. Sabemos também que incumbe a quem a entrega o dever estrito de preparar quem a recebe para manejá-la beneficamente, para si e para os outros. Saber ler e escrever não são, portanto, títulos suficientes à cidadania digna desse nome. Sendo assim, será que nós, professores, não pensamos a forma escolar com referencial em quem não está na escola? Se a educação não se faz só dentro da forma escolar, porque valorizamos tanto o saber acadêmico? Mais uma vez Thompson nos alerta da importância do equilíbrio entre os saberes acadêmicos, escolares e de experiência, entre conhecimento formal/escolar e cultura popular e a importância e a possibilidade de aproximação e diálogo entre essas culturas.

Nesse contexto traz-se a importância da formação do professor, mas também encontra-se a necessidade de ter claro que professor se quer ser, para quem e para que, e juntamente vêm a pergunta: Haverá lugar para a História da Educação na formação do professor, por exemplo? Penso que deverá, já que é impossível separar a pedagogia do cenário e da luta política e social.

Quais os sentidos históricos da educação para as classes populares? Se ela tivesse consciência do seu poder de atuação, se alguém mostrasse tudo o que ela já conquistou, será que teríamos alguma chance de reverter o cenário trágico que nos encontramos? É claro que a consciência traz uma reflexão, que traz, por sua vez, uma auto valorização. Precisamos valorizar o saber que trazemos de casa, da vida, e ver a beleza e a força que eles possuem, para fugir daquela intelectualidade que vai ao povo, mas que não é o povo, como retratado no filme “Cabra marcado para morrer”. Cabe aqui um trecho de “Operário em Construção”, de Vinicius de Moraes:

“E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção”.

Ciço fala, no texto de Brandão, sobre as educações desiguais, sobre a hierarquização do saber, mas não desvaloriza o saber da escola, mas, ao contrário, valoriza o diálogo com o professor Brandão. Pensando ainda em quais os sentidos da atuação do professor na educação do povo, temo, às vezes, estar correndo em direção a uma utopia, e para isso precisamos tomar muito cuidado. Ainda assim, indago-me sobre como ensinar o mundo como ele é, como coloca Ciço, no texto de Brandão. Todavia, acredito que essa resposta ninguém a tenha ao certo. Outra questão deve-se ter claro, como professores, de que não estão ali só para ensinar, mas também para aprender. É de fundamental importância não esquecer-se disso.

“Só que a sua lhe fez. E a minha? Que a gente aprende mesmo, pros usos da roça, é na roça. É ali mesmo; um filho com um pai, uma filha com a mãe, com uma avó. Os meninos vendo os mais velhos trabalhando(...) Não é uma escola; não tem um professor assim na frente, com o nome “professor” (...) Não tem um estudo, mas tem um saber” (BRANDÃO, 1984, p. 9).

No filme Narradores de Javé, os moradores poderiam se sentir inferiores e subordinados se não valorizassem seus saberes, por exemplo. Nele, podemos ver o quanto o diálogo entre acadêmico e experiência acontece (analfabetos versus letrados).

“Uma das razões ou dificuldades apontadas por historiadores para “ouvir o discurso dos sem voz, isto é, a gente “normal”, “simples”, “despolitizada”; o discurso da maioria silenciosa, as tão desprezadas – tanto na política quanto na historiografia – “massas desorganizadas”, é que o povo comum em “sua vida normal, quase não produz papel e, portanto, permanece esquecido”. Por essa razão, afirma Silva, as massas populares só emergem para a história em momentos excepcionais, seja em ‘explosões periódicas’ (greves, revoltas, quebra-quebras etc.) ou por meio “de movimentos organizados (partidos políticos, associações de trabalhadores, de moradores etc.)” (SILVA, 1988, p. 26-27 apud MACIEL, 2006, p. 207).

Quantas diferentes realidades e contextos existem dentro de uma mesma escola, dentro de uma mesma instituição? Penso que inúmeras. As crianças, os alunos, nos têm tanto a ensinar, a ajudar e a pedir ajuda. Espero que eu possa ter os olhos e a mente aberta para eles, sempre, afinal, o aluno nunca será passivo.

“A democracia acontecerá por si mesma - se acontecer- em toda a nossa sociedade e em toda a nossa cultura e, para que isso aconteça, as universidades precisam do contato de diferentes mundos de experiência, no qual ideias são trazidas para a prova da via (...) universidade: uma porta de saída para o conhecimento e as competências, uma porta de entrada para a experiência e a crítica” (THOMPSON, 2002, p. 45).

Por fim, falta o saber das diferenças, da igualdade de direitos e a valorização e a clara consciência desses dois saberes, que devem andar juntos em qualquer esfera social, principalmente na educação. Cabe ao professor alertar aos seus alunos a importância desse convívio e as consequências que a desigualdade social, e as injustiças, cometidas em grande parte pelo poder político, trazem; destacando a hierarquização de culturas e saberes, que privilegiam somente uma pequena parcela da população.

“A aprovação social do sucesso educacional é assinalada de uma centena de modos: o sucesso traz recompensa financeira, um estilo de vida profissional, prestígio social. Ela se apóia numa apologia completa da modernização, necessidade tecnológica, igualdade de oportunidades. Não é preciso trabalhar muito tempo dentro de uma universidade para se descobrir que até mesmo os membros mais humanos dos corpos docente e discente acham difícil não equiparar o progresso educacional a uma avaliação do mérito humano. E muitos dos que estão fora das universidades, dos que não conseguem provar a si mesmos serem suficientemente iguais para galgar os degraus da oportunidade, têm gravada sobre si mesmos, de maneiras opostas, umas sensação não de diferença, mas de fracasso humano” (THOMPSON, 2002, p. 42).

Falta também entender que a diversidade pode enriquecer uma população inteira, fazer um país crescer em todas as suas potencialidades. O professor também, nesse cenário, precisa fazer refletir em seus alunos o poder da união para poder reivindicar o seu espaço e os seus direitos. Falta um saber e um ensino capazes de destilar o senso comum. Falta o saber de onde viemos, das nossas raízes e antepassados, saberes que a cultura acadêmica, muitas vezes, faz questão que nos esqueçamos: “A liberdade real virá quando nós nos libertarmos da dominação da educação ocidental, da cultura ocidental, e do modo de vida ocidental” (Mahatma Gandhi). Assim podemos também descobrir quais outros saberes estão faltando saber.

Referências Bibliográficas

Narradores de Javé. Direção de Eliane Café, Brasil, 2004.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Prefácio. In: A Questão Política da Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 7-10.

MACIEL, Laura Antunes. Do “O povo não sabe ler” para uma história dos trabalhadores da palavra. In: MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto; KHOURY, Yara Aun (org).Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d'água, 2006.

THOMPSON, E. P. Educação e Experiência. In: Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Raquel de Freitas Branco
Enviado por Raquel de Freitas Branco em 29/01/2019
Código do texto: T6562190
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