A LITERATURA COMO VETOR PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA VISÃO DO MUNDO CRÍTICA EM SALA DE AULA

A LITERATURA COMO VETOR PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA VISÃO DO MUNDO CRÍTICA EM SALA DE AULA

Marília Pereira da Cruz (Mestranda em Literatura Comparada-USP)

Resumo: O trabalho apresenta formas práticas da aplicação da literatura em sala de aula. Esse projeto surgiu devido à preocupação da falta de significado que a literatura tinha para os alunos. A ideia inicial foi trabalhar a literatura com os gêneros textuais, uma forma de contextualizar na prática a literatura. O primeiro gênero textual foi o jornalístico, a partir da leitura de textos literários os alunos criavam notícias para seus jornais. As obras escolhidas foram de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Jorge Amado, Carolina Maria de Jesus entre outros. O resultado foi excelente, tanto os jornais quanto as apresentações mostraram a apropriação da literatura pelos alunos, visto que eles comparavam e problematizavam o conceito social da época da escrita das obras com a atual, como diz Antônio Cândido “a literatura confirma, nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CÂNDIDO, Antônio. 2013). O outro gênero textual que teve resultado positivo foi o folhetim, desenvolvemos um folhetim com entrevistas a personagens das obras “Bom dia camaradas de Ondjaki” e “A bolsa amarela de Lygia Bojunga”. A criatividade dos alunos foi significativa, pois eles deveriam criar perguntas que as respostas estivessem na fala dos personagens, eles também escreveram relatos de passeios no qual relatavam a experiência de um passeio na cidade de São Paulo com os personagens das obras. Dessa forma, a literatura teve um papel importante na formação crítica dos estudantes, através dela eles puderam refletir o papel social e político de cada indivíduo na sociedade, como diz Michèle Petit (2009) “a leitura ajuda a explorar melhor a experiência humana”. CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos: O direito à literatura. 6ª ed. Rio de Janeiro, Editora: Ouro sobre azul, 2013. Petit, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à diversidade. São Paulo: Editora 34, 2009.

Palavras-chaves: Literatura; Leitura; Prática.

Introdução

O trabalho apresenta formas práticas da aplicação da literatura em sala de aula. Devido à preocupação da falta de significado que a literatura tinha para os alunos, foi desenvolvido diversos projetos voltados à leitura. A ideia inicial foi trabalhar a literatura com os gêneros textuais, uma forma de contextualizar na prática a literatura. O primeiro gênero textual foi o jornalístico, a partir da leitura de textos literários os alunos criavam notícias para seus jornais.

O outro gênero textual que foi desenvolvido foi um folhetim com entrevistas a personagens das obras “Bom dia camaradas de Ondjaki” e “A bolsa amarela de Lygia Bojunga”. Eles deveriam criaram perguntas que as respostas estivam na fala dos personagens, eles também escreveram relatos de passeios no qual relatavam a experiência de um passeio na cidade de São Paulo com os personagens das obras.

Este trabalho é um relato da aplicação dessas literaturas em sala de aula.

Como tudo começou?

Começarei citando as palavras de Antonio Candido em sua entrevista sobre “O ensaio direito à literatura”. Ele nos diz: “Se a literatura existe em todas as sociedades, se ela é uma necessidade fundamental, ela é um direito de todo homem” (CANDIDO, 2014). Pensando que a literatura é um direito de todos, decidi criar um projeto que a tivesse como vetor para transformação em sala de aula.

O projeto aconteceu quando eu trabalhava na Escola Estadual Padre Sabóia de Medeiros. Desenvolvi um projeto de leitura chamado “Poetizar”, o qual ocorria em todos os espaços possíveis, na sala de aula, na sala de leitura e na biblioteca pública próxima à escola.

Esse projeto teve como foco a oralidade e a interpretação subjetiva, o objetivo era que os estudantes tivessem um contato direto com os livros, pegando manuseando, vendo resenhas, títulos e temas. Só assim eu poderia analisar quais eram suas dificuldades e quais eram seus interesses.

Esse projeto foi se expandindo e logo todas as turmas da escola começaram a participar. As rodas de leitura e discussão foram maravilhosas e eu descobri que “meus alunos gostavam de ler sim”, apenas precisavam de alguém que mediasse o contato deles com à leitura.

Jornal Literário

O jornal literário foi desenvolvido com o objetivo de despertar o interesse dos meus alunos pela leitura de obras clássicas da literatura brasileira (CÂNONE). Observando que a maioria dos alunos tinham interesse por outros tipos de literatura, mas não se interessavam por obras canônicas, decidi criar um projeto onde trabalhasse a leitura, a criatividade e os gêneros textuais através da literatura. (Ensino Médio)

O primeiro gênero textual trabalhado foi o jornalístico, a partir da leitura de textos literários os alunos criavam notícias para seus jornais. Dessa forma, os estudantes precisaram ler as obras escolhidas para construir o seu projeto, que seria o “Jornal Literário”. As obras escolhidas foram de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Jorge Amado, Raul Pompéia, entre outros. Além dessas obras consideradas “cânones”, trabalhamos também com a escrita de Carolina Maria de Jesus.

As obras foram selecionadas tanto por estarem no currículo da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo quanto por sua temática, pois o objetivo seria contextualizar e trabalhar temas que precisam ser discutidos em sala de aula, como por exemplo, a homossexualidade, preconceito, violência, as desigualdades de classe, gênero e raça, etc.

A falta de humanização da sociedade é o principal fator na desconstrução desses jovens, desmotivando-os de estudar ou de fazer qualquer outra coisa e até mesmo induzindo-os a situações perigosas como tráfico e roubo.

O papel da literatura é transformar, como nos diz Antonio Candido “ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente” (CANDIDO, 2013, p.177).

O propósito é fazer da leitura fonte de informações, de lazer e um instrumento poderoso da aprendizagem. Nós professores precisamos e podemos tornar nossos alunos capazes de uma leitura ampla, crítica, significativa e inventiva. Dessa forma, a literatura fará sentindo na vida deles.

O processo

Na sala de aula apresentei as obras e a biografia dos autores que iríamos trabalhar, apresentei o projeto e abri espaço para sugestões. Assim, o jornal literário foi construído com a participação de todos e semanalmente nos reuníamos na sala de leitura para discutirmos sobre o projeto e sobre as obras.

Líamos juntos, separávamos os fatos interessantes para notícias, problematizávamos com o mundo a nossa volta. Foram momentos de trocas e posso dizer que aprendi muito com eles. Como diz Paulo Freire “a linguagem do mundo pelo ato de ler”.

Alguns trabalhos possuem erros ortográficos porque alguns alunos apresentavam muitas dificuldades na escrita, mesmo assim eles conseguiram realizar a atividade, decidi não rasurar o trabalho, pois a proposta era o entendimento da literatura.

Através da leitura canônica, eles ampliaram o vocabulário, pois buscavam o significado de palavras e expressões que desconheciam. A busca por fatos e notícias das obras fez com que eles descobrissem algo que desconheciam, “a arte de ler”.

O jornal foi todo montado com trechos das obras, eles também buscaram imagens que se relacionaram com as notícias criadas e com as obras, também inovaram e usaram seu contexto social e suas vivências.

Ações importantes

Para a construção desse projeto, precisei também buscar meios que tornassem a literatura mais viva e presente na vida deles. Entrei em contato com o “Museu Afro Brasil” e apresentei meu projeto, os coordenadores da biblioteca “Carolina Maria de Jesus” organizaram uma visita e deram uma palestra sobre a vida e obra de Carolina Maria de Jesus. Meus alunos ficaram encantados.

Também convidei o escritor Roberto Amado, sobrinho de Jorge Amado, para uma conversa com meus alunos, ele apresentou fatos, curiosidades e lembranças do tio escritor e fez uma palestra apresentando as obras de Jorge Amado.

Essas ações foram significativas para o processo de aprendizagem e interação da leitura das obras, pois os alunos puderam ter um contato mais efetivo com os escritores e suas obras, esses passaram de personagens a pessoas reais.

Jornal literário interdisciplinar

A partir da primeira proposta do Jornal Literário, decidi ampliar a proposta do projeto, agora seria com uma turma de 9º ano no “Colégio Almeida Santos”. O jornal literário já não abordaria apenas o componente de Língua Portuguesa, agora ele seria interdisciplinar, adaptei o projeto para integrar as áreas de Artes e História.

Apresentei a proposta para as professoras e decidimos como iríamos desenvolver esse trabalho em sala de aula. Foi decidido que deveríamos utilizar apenas duas obras para este projeto, um seria o “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus e o outro seria “O cortiço” de Aluísio de Azevedo. O objetivo seria trabalhar a lei 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história da África e cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio.

O componente de Artes desenvolveu com os estudantes uma animação com base em uma das obras escolhidas de cada grupo. O componente de História trabalhou com o contexto histórico e social das obras, eles relacionaram com o contexto da escravidão e abolição no Brasil, também foi solicitado que eles apresentassem a situação do negro na contemporaneidade interligando com os processos de independência dos países africanos.

Como nos diz Michéle Petit: “Em todas as culturas existem narrações que associam os eventos, instauram uma continuidade em uma história posta em cena, em perspectiva” (PETIT, 2009, p. 126).

O resultado foi excelente, tanto os jornais quanto as apresentações mostraram a apropriação da literatura pelos alunos, visto que eles comparavam e problematizavam o conceito social da época da escrita das obras com a atual, como diz Antonio Candido: “a literatura confirma, nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, Antonio. 2013, p. 177)

O jornal literário foi o caminho que utilizei para trabalhar com as obras canônicas e também literaturas que denunciam as desigualdades sociais e raciais. Através desse projeto, consegui despertar o interesse de leitura dos meus alunos e o mais importante foi vê-los discutir sobre essas obras e contextualizar os temas. Muitas vezes subestimamos a capacidade dos alunos, eles precisam de um caminho que os conduza ao entendimento dos textos literários, como diz Michéle Petit: “precisamos de mediações, de representações, de figuras simbólicas para sair do caos, seja exterior ou interior” (PETIT, 2009, p. 115).

O trabalho em equipe, a prática pedagógica pautada na escuta sensível, no diálogo e no compromisso, a paciência e o respeito, são essenciais para este processo de construção do indivíduo. Como nos diz Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 31).

Relato de viagem: vamos viajar com literatura

Outro gênero também utilizado para o projeto de leitura foi o “relato de viagem” (turma de 6º ano). Esse projeto teve como objetivo despertar a criatividade e a escrita documental. O propósito desses registros foi utilizar a literatura e a arte histórica de uma forma prática e real. As obras escolhidas foram “Bom dia Camaradas” do escritor angolano Ondjaki e “A bolsa amarela” de Lygia Bojunga.

A ideia era incentivar os alunos a fazerem um passeio com os pais nos locais culturais da cidade de São Paulo, os locais indicados foram: Itaú Cultural, Casa das Rosas e Mirante Sesc Paulista, mas eles poderiam escolher outros locais também. Eles deveriam registrar esses passeios como um relato de viagem. E deveriam imaginar que estivessem acompanhados pelos personagens das obras indicadas, o objetivo era tornar os personagens das obras pessoas reais no imaginário dos alunos. Eles também entrevistaram esses personagens.

Na sala de aula nós trabalhamos o gênero relato de viagem e à leitura das obras indicadas, fizemos rodas de leitura e discussão, problematizamos e relacionamos com a vida de cada um. Além da leitura, tivemos música também, alguns alunos que faziam aula de música levaram os instrumentos musicais para fazer a trilha sonora enquanto os demais liam.

O livro “Bom dia Camaradas” proporcionou uma viagem à Angola, discutimos as relações entre Brasil e África, como também contextualizamos a história cruel do colonialismo e como se deu nesses espaços.

O livro “A bolsa amarela” despertou questões de aceitação familiar, muitos alunos diziam sentir o mesmo que a menina Raquel. E o galo dela foi presente em todos os relatos de passeios.

O resultado foi muito positivo, os alunos apreciaram os passeios e relataram detalhadamente essa experiência em seus textos, vimos também um empenho por parte dos pais em apoiar esse trabalho. Foram momentos importantes para eles e para mim, através desse projeto percebi como a literatura pode ser um vetor para a construção de uma visão crítica em sala de aula.

Uma entrevista diferente

O trabalho teve como objetivo o gênero textual “entrevista”, com o propósito criativo entre a literatura, a escrita e o processo histórico. Esse trabalho foi interdisciplinar (componentes de português, matemática e história). Através da leitura do livro “Bom dia Camaradas” do escritor angolano Ondjaki, desenvolvi um trabalho (com o 7º ano) que englobasse várias áreas do conhecimento, o foco era conhecer a história e a literatura de Angola, como também a variação da língua portuguesa nos países que a tem como língua oficial, o desafio proposto foi criar uma entrevista onde as respostas estivessem no diálogo dos personagens. Esse trabalho teve o formato de folhetim, um pequeno livro de entrevista.

A leitura do livro começou durante as aulas (separei 2 dias por semana), discutíamos muito sobre o contexto social e político de Angola, a curiosidade posta pela leitura de determinados eventos no livro, teve como efeito a pesquisa sobre esses eventos. No dia da leitura de determinada parte, eles apresentavam as pesquisas sobre aquele evento, como por exemplo, o motivo de professores cubanos em Angola, a questão política quando se passava o presidente, entre outras.

A discussão mais acalorada foi sobre a hipótese do caixão vazio. Eles afirmavam suas suposições como se estivessem presenciando a situação de fuga dos alunos. Para os alunos foi uma surpresa ter homens trabalhando como empregados domésticos, de cara se afeiçoaram ao “camarada Antônio”, o qual foi o mais entrevistado. Eles gostaram tanto da obra do Ondjaki que ao final do livro se emocionaram e ficaram tristes. Sofreram com a separação das crianças travessas do livro, com a partida dos professores cubanos e simplesmente pelo livro ter chegado ao fim.

Conclusão

Essas experiências em sala de aula provam que a literatura tem um papel importante na formação dos estudantes, através dela eles puderam refletir o papel social e político de cada indivíduo na sociedade, como diz Michéle Petit (2009) “a leitura ajuda a explorar melhor a experiência humana”.

Também friso a importância da busca dos professores por conhecimento, foi através de pesquisas e leitura de teóricos que tive base para pensar nesses projetos, como diz bell hooks:

“Aliar a teoria e a prática a fim de afirmar e demonstrar práticas pedagógicas engajadas na criação de uma nova linguagem, na ruptura das fronteiras disciplinares, na descentralização da autoridade e na reescrita das áreas limítrofes institucionais e discursivas onde a política se torna um pré-requisito para reafirmar a relação entre atividade, poder e luta”. (hooks, 2013, p. 173)

Afinal, ensinar é um ato político!

REFERÊNCIAS

BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. 22ª ed. Rio de Janeiro: Editora AGIR, 1993.

CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos: O direito à literatura. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora: Ouro sobre azul, 2013.

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 10ª ed. São Paulo: Editora: Ática, 2014.

LAJOLO, Marisa. Linguagem e letramento em foco: Linguagem nas séries iniciais: Meus alunos não gostam de ler...o que eu faço?. São Paulo: Ministério da Educação, 2005.

ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Editora: AGIR, 2006.

PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009.