Antes dos 7 x 1

Quando publiquei este artigo em 2001 na Tribuna da Imprensa (creio que no Jornal dos Sports também), talvez o FBI já estivesse investigando com alto sigilo. Por aqui, nenhuma autoridade se preocupava com os indícios. Relaxados ou “sócios”?

FUTEBOL JOGADO NA LAMA (vulgo “tem capim na pizza”) - 1997

Dezenas de profissionais esportivos bem intencionados, ao longo de suas experiências no ramo, costumam comentar as causas que estão levando clubes do Rio a uma situação real de falência não necessariamente financeira. Pense na falência de credibilidade. São citados fatores do tipo : violência urbana, dificuldades de trânsito, preços dos ingressos, imagens pela TV, tabelas mal elaboradas, desconforto nos estádios, péssimas arbitragens, falta de patrocinadores, regulamentos confusos e outros. Não somos inocentes. Não temos dúvidas que são fatores importantes. No entanto, existem causas mais profundas (as mesmas que estão afundando nosso país), que não são enfatizadas e a população de baixa cultura não tem meios de perceber, pois passa a maior parte do tempo pressionada pela necessidade de sobreviver, mesmo sem dignidade. Se, na Côrte (de onde deveriam partir os melhores exemplos), são praticados horrendos desmandos que terminam em pizza com marmelada, é claro que muitos dirigentes de clubes – alguns usaram o esporte como trampolim para obter uma cadeira na Casa do Povo (?) – patrocinam barulhentas torcidas organizadas para se manterem (ou chegarem a algum) no cargo dentro do clube.

Preferem alimentar a atual estrutura, que encobre contabilidade obscura de na famosa “caixa 2”, lavagem de dinheiro e afins. Por que estes fatos não são citados com a veemência necessária ? O bom jornalista nem sempre vai receber apoio do dono do jornal ou da emissora de TV para ficar insistindo no assunto. As orientações dos incomodados terminam por pressionar a entidade a se desviar para outros escândalos. Nem mesmo um fato filmado por uma câmera secreta, produz material para punirmos aos que manipulam a boa fé do público. Imagine a simples palavra de um honesto jornalista. Ele vai ficar esbravejando sozinho? O atual espírito de conformismo que tomou conta da sociedade, não lhe dá ânimo para empunhar esta bandeira. Quem pode decidir está comprometido de alguma forma. Quem tem boa intenção é impedido de chegar ao poder para tentar mudar esta estrutura. A partir do topo, pelo efeito cascata, 90% dos segmentos de nossas vidas seguem este modelo podre. E da mesma forma que a violência estampada na 1ª página já não causa mais espanto, o fato de alguns dirigentes e empresários tirarem a sua comissão numa transação de jogadores já é considerado um acontecimento natural. Afinal, estes bondosos sujeitos sacrificam a sua vida particular em prol do clube que tanto amam. São raposas convertidas tomando conta de galinheiros entupidos. E a galera que se sacrifica por este sonho e paga (ingressos, TV a cabo, produtos estampados nas camisas), acredita cegamente nos esforços que eles fazem para elevar o nome do clube. Os dirigentes das federações também possuem seus esquemas de arrecadação: criam ligas fantasmas para votarem neles, montam torneios sem sentido em paralelo ao Campeonato Brasileiro (para confundir o torcedor) para obter comissões das TVs e sobre os espaços publicitários dentro dos estádios. Se os jogadores (e os torcedores) ficarão saturados com tantos jogos se atropelando, não importa. O objetivo é fazer com que altas cifras estejam sempre circulando, para que a lavagem de dinheiro seja feita tranquilamente.

Nas profundas e inabitáveis minas, estão os desejados veios de ouro. Mas os donos delas vivem a milhares de quilômetros de distância. No Brasil, a cada ano, surgem dezenas de novos valores no futebol. Mas os empresários donos de seus passes, rapidamente os levam para negociá-los no “Mercado Persa”, faturando milhões. Quando o produto (jogador) está com o prazo de validade quase vencido, é revendido à origem com o rótulo de experiente, criando falsas esperanças entre os desiludidos torcedores daqui. Em 90% dos casos, ele já está financeiramente seguro e já não é pressionado para correr com a mesma ansiedade que domina milhares de jovens nativos, que nem sempre despontam por não terem padrinhos nos clubes onde vão tentar a sorte. Os clubes mais tradicionais, que viveram numa era romântica em que abastados beneméritos doavam verbas para a compra de um belo jogador, caso não entrem no esquema, em breve serão engolidos pelos vorazes leões na arena da miséria. Se o país não oferece oportunidades nem aos jovens com algum preparo universitário, quanto mais a atletas que passaram quase 15 anos jogando, sem tempo nem para curtir a família nem estudar um pouco que fosse. Daí, eles aceitam esta regra de pertencerem a gananciosos proprietários de seus passes. É o mesmo modelo que controla a produção de alimentos: o que custa X no campo, depois de três ou quatro atravessadores (carinhosamente chamados de empresários) passa a custar 5X. Jogadores do tipo Afonsinho (idos de 1970) não são bem recebidos, pois oferecem o risco de contaminar as cabeças dos demais atletas do elenco, com ideias arrogantes.

Da mesma forma que o governo (?) culpa o salário dos trabalhadores pela alta da inflação, os dirigentes dos clubes alegam que o time não está bem em função do esquema tático usado pelo treinador, mesmo não sendo ele o que perde três a quatro gols por jogo a 5 metros da baliza do time adversário. Jogador não pode ser queimado, pois é mercadoria. Treinador, ninguém está comprando no momento. Algumas vezes colocam um massagista no comando da equipe e ele dá certo, pois cai nas boas graças da rapaziada, fazendo algumas concessões do tipo: redução do treino físico, carteado pela madrugada e outros eventos não editáveis.

Alguns poucos dirigentes saudosistas ainda imaginam que os atletas somente jogam por amor à camisa. Eventualmente, há uma coincidência de o jogador estar recebendo seus salários do clube que ele adotou quando criança. Porém, se suas necessidades básicas não estão sendo atendidas em virtude de salários atrasados, o pensamento do sujeito não consegue se fixar na sua atividade profissional e o rendimento fatalmente desaba. Mesmo com as contas em dia já tem sua atenção desviada: se começa a se tornar destaque, boatos sobre altos contratos no estrangeiro surgem à sua volta. Se ele é apenas um atleta regular e um colega que começou com ele recebe um aumento ou um craque é contratado para ganhar cinco vezes mais do que o resto do time, naturalmente o espírito da desunião aflora e quebra a harmonia que contaminava o grupo. Este é o pensamento que começa a se alastrar, numa época em que na hora da comemoração do gol, o autor corre em direção à placa de propaganda do seu patrocinador, para garantir a renovação no próximo período.

Se numa empresa existem muitos caciques e poucos índios, ela tende a ruir. Se diretores de clubes começam a dar palpites na escalação, o time tem poucas chances de dar certo, pois fica evidente a falta de comando. Os jogadores tendem a buscar no técnico, a segurança de um pai severo (mas justo). Se as empresas destes cavalheiros fossem administradas como seus clubes, já teriam se transformado em banca de marreteiro (camelô) há muitos anos.

Se dirigentes de federações se eternizam no poder através de ligas fantasmas ou de bons conchavos com alguns influentes dirigentes de clubes, não há oxigenação de ideias. O cheiro de mofo se alastra e contamina os participantes deste universo. Alguns poucos jornalistas denunciam e gritam, alertando sobre os desleixos que nos afundam. Quem pode decidir não se mexe, pois de alguma forma tem algo nebuloso no passado que o outro sabe ou está levando um percentual no esquema em vigor. Há quantos anos a mídia denuncia a evasão de renda nos estádios? O que foi feito até agora para solucionar o problema? Será que só os roleteiros estão levando?

Os escândalos de papeletas coloridas e CPIs de apitos e cornetas já foram esquecidos, assim como os: Comind, mandioca, ferrovia do aço, bicicletas, Sivam, precatórios, pasta rosa (não a que serve para limpeza doméstica). As investigações sobre resultados montados nas loterias esportivas, já foram arquivadas sem pena para os culpados.

Se o código de Justiça é convenientemente mantido obsoleto pela Côrte (para garantir a impunidade de filhos que queimam índios e atropelam trabalhadores em pontos de ônibus), é claro que o código penal esportivo segue o mesmo modelo. O botinudo pode bater à vontade e o indisciplinado pode afrontar o juiz sem susto, pois o dirigente bonzinho vai dar um jeito de enquadrá-lo num artigo mais ameno para que a pena seja convertida em multa.

Numa época em que os salários estão estacionários, várias empresas estão optando pelo justo modelo da participação dos empregados nos lucros obtidos. Os empregados recebem um salário mensal e seus ganhos só podem aumentar se a empresa obtiver alguma lucratividade em função do aumento da produtividade decorrente do empenho e dedicação de cada sócio da empresa. De forma similar, cada jogador deveria ter um salário menos afrontoso em relação ao operário (este sim, herói brasileiro) e receber uma participação nos lucros do clube, conforme gols marcados pelo time, vitórias obtidas e títulos conquistados. Nas derrotas, caso algum jogador tivesse sido expulso (deve ter contribuído para a derrota) por reclamação junto ao árbitro, todo o time seria descontado devido às despesas feitas com advogado para defendê-lo. O elemento expulso ainda teria mais um desconto por cada jogo que ficasse suspenso, além de ter de comparecer ao estádio no dia do jogo. A partir daí, estaríamos realmente começando a praticar um futebol mais profissional e responsável.

Eventualmente (e ousadamente) comparamos quatro ou cinco clubes nossos aos melhores europeus, confundindo popularidade (em função dos ótimos jogadores que possuímos) com estrutura (retratada pela quantidade de sócios de cada agremiação de além-mar). Não é preciso ir lá para sabermos que um clube de 2ª linha de lá, dá de 5 x 0 em qualquer um dos nossos que se rotulam como ilha de excelência. Como dizemos há mais de 50 anos, nosso futebol só serve de modelo, dentro das quatro linhas. Nossos dirigentes, para manterem o secreto caixa 2, criam obstáculos a uma administração transparente que certamente tirariam os clubes do caos de dívidas e permitiriam um trabalho social mais abrangente a favor da comunidade carente que ao invés de produzir cidadãos através do esporte, multiplica pivetes através dos crimes impunes. Os esportes olímpicos poderiam servir para a elevação do caráter de cada jovem, mas é “convenientemente” relegado a quinto plano.

Se os governantes (?) nos cobram altos impostos e nos devolvem ruas esburacadas, falta de segurança, escolas e hospitais, por que dirigentes esportivos fariam melhor (não devemos nos esquecer que muitos deles estão lá na Câmara dos Defuntados)? Quem paga ingresso sente falta (em 95 % dos estádios) de higiene, fiscalização séria nos bares, acomodações adequadas, iluminação mínima, sistema de som audível, telefones públicos, socorro médico, placas de sinalização, horários adequados, transporte e outras dezenas de detalhes. Da mesma forma que a Côrte não efetua plebiscito junto ao povo para obter a opinião dos pagantes de impostos, as federações nunca pesquisaram junto aos torcedores que tipo de competição eles desejam acompanhar, em que condições. Eventualmente, algumas emissoras de rádio ou jornais realizam pesquisas ligeiras, mas os resultados não são encaminhados a quem deveria se preocupar com o fato. Quem defende o torcedor?

Este é o obscuro cenário atual do país e do esporte em geral. Somente jovens (que ainda não perderam a esperança e estão cheios de vitalidade) e a imprensa honesta (com suas poderosas armas), poderão iniciar um trabalho lento e estafante para reformular este quadro. Passamos a maior parte do tempo ouvindo relatos sobre desmandos e apenas concordamos dizendo: “vamos ver se ano que vem melhora”. Não temos de esperar até o próximo ano, pois o hábito vai nos dar a impressão que o fato irregular parece normal. É o ditado do cachimbo que entorta a boca pelo uso constante e inadequado. Lembra?

Se o preço da carne está elevado e nossos resmungos não comovem aos gananciosos, deixemos de comê-la por uma semana. Só que para isto, é preciso o apoio da imprensa, que contacta a todos (e molda opiniões) em segundos. Já que se fazem de surdos aos nossos apelos, vamos abrir mão de algumas mordomias (comida hoje em dia é mordomia?) por algum tempo, e deixá-los apreensivos vendo seus cofres menos abarrotados. Parem de entrevistar dirigentes por duas semanas e eles vão perceber que suas bolas estão murchas.

Se relatarmos todos os fatos do nosso cotidiano que refletem no futebol, este ensaio vai se transformar em livro. O que podemos esperar de um país onde o povo aceita passivamente que o governo (?) não cumpra as determinações judiciais e as leis sejam aplicadas aos faltosos conforme sua classe social? O que esperar de entidades públicas que pouco se importam com seus usuários, obrigando-os a enfrentar filas na chuva e exigindo documentos diversos para que a vítima obtenha um benefício que lhe é devido? Se um turista estrangeiro chegar ao Rio no Galeão às 7h de um sábado, vai rir de leve, ao saber que o serviço de auxílio ao turista funciona em Copacabana de segunda a sexta-feira entre 8h e 17h. Mas vai gargalhar muito, ao ser informado que o regulamento de qualquer campeonato de futebol (normalmente disputado em cinco turnos com quatro fases em cada turno), permite que um time A, que conseguiu somar 90 pontos, seja campeão, ao invés do time B, que acumulou 120 pontos no mesmo período!

Neste resumo temos material suficiente (pelo menos três meses) para debates que antecedem os jogos aos domingos. Mas debater apenas não resolve. Seria ótimo que após as conclusões (reforçadas pela participação dos ouvintes), algum material fosse editado e encaminhado a quem comanda (?) para que ficasse ciente (oficialmente) do que o público deseja.

Juntando estas “joias” com as práticas de criação de ligas fantasmas que perpetuam dirigentes no comando das entidades estaduais, regulamentos confusos, falsificação de certidão de nascimento de atletas, alteração de súmulas de jogos, roubo nas rendas dos jogos, compra e venda de jogadores pelo “caixa 2”, escândalos de “papeletas coloridas” e outras sujeiras que escurecem nossos gramados, o futuro de nosso esporte popular é tenebroso. Em breve estaremos exportando jogadores ainda com chupetas.

Pelo que ocorre nesta área, dá para visualizar o futuro do povo manietado, tendo em vista que as leis são escritas por esta mesma turma que apenas visa ao aumento de seu patrimônio pessoal, mesmo que à base de desvios de verbas destinadas ao bem da comunidade.

As minas (florestas, peixes, metais etc) se esgotam em progressão geométrica. Se os bons jornalistas esportivos de visão esclarecida não se juntarem para pressionar os dirigentes desde já, brevemente o mercado não será suficiente para novos profissionais. Muitos programas esportivos já foram eliminados da mídia ou tiveram seu tempo reduzido.

A força do futebol está baseada em três fatores principais:

a) regulamentos claros e inalterados;

b) a beleza do espetáculo proporcionado pelos artistas em campo;

c) a coreografia sem ensaio de apaixonados torcedores, dentro de um clima respeitoso de competição, criado pela imprensa sadia.

NOTAS DO AUTOR:

1. Escrito em 1997. Publicado em 2001. Válido até o momento.

2.Esta matéria foi publicada na coluna de Hélio Fernandes na Tribuna da Imprensa (RJ – jornal já extinto) em dois dias consecutivos no início de 2001. Ele mesmo complementou alegando que os membros da CPI do futebol deveriam ler este texto ANTES de iniciarem os trabalhos de apuração das irregularidades que cobrem nosso esporte preferido. A tal CPI da bola.

3. Agora em 2015, diga-nos quantos elementos participantes das irregularidades apuradas foram devidamente encarcerados. Se você disse zero, acertou, se bem que tentaram prender um porteiro da CBF que parece ter dormido uma noite num dos corredores da entidade por estar impossibilitado de chegar à sua casa devido às chuvas naquela noite. Quando descobriram que ele não capturou nenhum documento comprometedor, lhe deram uma advertência verbal e o caso foi encerrado.

Um único legislador será capaz de contaminar um grupo no sentido de dar andamento à uma investigação séria?

4. Toda esta onda deverá ter consequências nos continentes onde as Leis são aplicadas com rigor. Aqui, dentro de 2 meses estaremos falando de sambas para o próximo Carnaval. Os escândalos da Petrobras, CBF e outros menos famosos sairão das manchetes e continuaremos pagando impostos docilmente mesmo sabendo que mais da metade não é aplicado nas áreas sociais.

5. Que empresa atrelaria seu nome a este cenário sujo?

6. Na próxima copa vamos torcer para não levar nova goleada.

Haroldo P. Barboza – Vila Isabel / RJ – maio/2015

Autor do livro: Brinque e cresça feliz.