Capoeira: O Cortiço de Aluísio Azevedo!!!

O Cortiço XVI (final)

E o rolo fervia!

Mas no melhor da luta, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do "Cabeça-de-Gato". Era o canto de guerra dos Capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos Carapicus pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.

XVII

Mal os Carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu 'a sua casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e matar. Um só impulso os impelia a todos: já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas.

Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder á musica barbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para por um cinto de Nenen, em que o pequeno enfiou a faca de cozinha. Um mulatinho franzino, que até ai não fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada de mãos limpas, á espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão , além de tudo estava rindo.

Os Cabeça-de-Gato assomaram afinal no portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu a ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa.

Aguenta! Aguenta! Faz frente clamavam de dentro os Carapicus.

E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dançar como selvagens.

As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.

Os Carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia á estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de Capoeiras um contra o outro.

E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crespúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor.

Là na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando militar.

E os Cabeça-de-Gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares.

Dez Carapicus sairam em frente; dez Cabeça-de-Gato se alinharam defronte deles.

E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém.

Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés. Par a par, todos os Capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza, que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe.

De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças abrindo furo 'a vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha; imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o nº 88.

E agora o incêndio era a valer.

Houve nas duas maltas um espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte.

Um clarão tremendo ensanguentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva.

Os Cabeça-de-Gato, leais nas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso.

E nenhum dos Carapicus os feriram pelas costas.

A luta ficava para outra ocasião!

FIM