Capoeira no Pará: Mestre Mundico de Belém conta suas Histórias! (resumo imperdível)

A Linguagem é muito poderosa. Ela não apenas descreve a Realidade. Ela Cria a Realidade que descreve.

ArceBispo Desmond Tutu

Busquei esse Histórico para acrescentar aqui aonde estou tendo mais visitas:

JUSTIFICATIVA

Raimundo Pereira de Araújo, conhecido como Mestre Rai, nasceu em 07 de agosto de 1957, no bairro da Sacramenta em Belém, iniciando a prática da Capoeira ainda na infância, por influência de sua avó, Inês Pereira, filha de escravos.

Ainda bem pequeno, inventou seu primeiro golpe, gingando as cabeçadas marajoaras, ensinadas pelo pai.

De formação autodidata, Mestre Rai diz que os pontos mais altos de sua carreira em busca de conhecimento foram a descoberta do livro “Capoeira Sem Mestre”, no final da década de 60. (@)

Já no início da década de 70, quando foi apresentado a dois capoeiristas baianos, fugitivos da repressão do regime militar, ele consolidou sua opção definitiva pela prática desta importante manifestação cultural e esportiva.

Mestre Rai, pela prática da capoeira, sofreu perseguições ao longo de sua carreira, quase tendo sido preso por diversas vezes, perdendo em algumas todos os instrumentos.

Em 1973, conheceu o Mestre Bezerra, outro grande expoente da Capoeira, recém-chegado a Belém. Com ele desenvolveu um amplo trabalho de difusão da Capoeira, transmitindo esses ensinamentos aos seus quatro filhos e seis netos.

Hoje, mestre Rai é Gran Mestre, o mais alto nível técnico de capoeira. Responsável pela formação de mais de 70 mestres, dentre eles, o Mestre Silveiro, o Mestre China, o Mestre Paulo, o Mestre João Pula-Pula, e muitos outros.

Sua casa é tida pela comunidade da Sacramenta, como ponto de desenvolvimento cultural, onde gratuitamente crianças e adultos recebem os belos ensinamentos da Capoeira.

Palácio Cabanagem/ALEPA, 12 de junho de 2013.

EDMILSON RODRIGUES

Deputado Estadual do Pará – PSOL

Fonte:

https://www.edmilsonpsol.com.br/titulo-de-honra-ao-merito-ao-mestre-rai/

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CAPOEIRA sem mestre

Lamartine Pereira da Costa

Edições de Ouro – Tecnoprint Gráfica S.A.

Edição 1962 – 116 pags.

O livro que abriu o canto da capoeira na segunda metade do século XX, foi referência da juventude ávida para saber o que era capoeira. Note-se que ele antecede à publicação do livro de Waldeloir Rego – CAPOEIRA ANGOLA - 1968 (capoeiranews comentará este livro em breve).

A POTÊNCIA ATIVA DE MESTRE RAY, DE BELÉM: DO CARNAVAL À CAPOEIRA, NA COMUNALIDADE-MUNDO

24/02/2009

(afinsophia)

Na capoeira, ele é corpo-afecção da Capoeira Regional, modalidade desenvolvida a partir da mescla da capoeira de Angola com outras artes, incluindo a misteriosa luta de cabeçadas da ilha de Marajó, onde Mestre Ray aprendeu...

Mundico, como é conhecido entre os capoeiras, é considerado um dos fundadores da capoeira em Belém.

Reconhecimento, apenas os dos amigos, que não são poucos, e uma medalha, conferida pela câmara municipal de Belém.

Deixaremos que o próprio Mestre Ray nos leve na sua conversa

É aqui então que nasceu a capoeira de Belém…

“Aqui é que é a área dos capoeiristas. De vez em quando vem um, vem muita gente de fora, de outras cidades. No ano passado veio um rapaz lá de Cametá. Veio ele, um grupinho dele, que ele montou para lá. Chama-se Paulinho Cametá. E trouxe os meninos para me conhecer.

“Nessa casa bem aqui defronte estão morando 27 baianos que vieram trabalhar numa demolição de um shopping center aqui em Belém. O shopping é lá da Bahia, e contratou eles. Então eu conheço alguns deles, e eles queriam até vir treinar capoeira aqui, e eu disse: “Rapaz, a Bahia não é a terra da capoeira? Então eu que tenho que aprender com vocês, e não vocês comigo”. Mas é que um tá meio ‘durinho’, e o resto não sabe nada. Eu disse que para aprender comigo, eu vou cobrar 50 reais a hora/aula, disseram que está muito caro, mas é o valor de um mestre. E eu não estou tendo tempo. Se eu fosse abrir a mão e cobrar 5 reais por cabeça, estavam tudo aí, querendo aprender capoeira.

SOBRE A CAPOEIRA

“Então aqui em Belém, a capoeira propriamente dita, que eu digo que tenha começado ela, foi em 1971. Comecei antes, mas eu registro como 1971. Porque na época, no governo militar, os jovens iam de uma ponta a outra do Brasil com o lema “sem lenço e sem documento”, e eu praticava capoeira, mas praticava a esmo, não tinha muitos fundamentos. Até porque na época não existia televisão, pelo menos aqui no bairro não existia televisão. Então o que ocorreu? Hoje em dia se chamam hippies, mas naquela época eram dois jovens que vieram da Bahia, e ficaram um mês radicados ali na Presidente Vargas, na Praça da República. E eles praticavam capoeira no calçadão em troca de um trocado, alguma coisa para a sobrevivência deles. Então, no horário de meio-dia, uma hora, eles queriam que eu arrumasse alguma bóia, alguma comida pra eles. E em troca eu iria aprender um pouco mais com eles. Então eu ia jogar um pouco de capoeira com eles lá, aprendendo a técnica deles. Eu tinha a minha técnica, mas era muito arcaica. Até porque eu sou um autodidata, e não tinha muito conhecimento sobre a ginga, sabia dar umas pernadas, mas não tinha aquela técnica. Então eu suguei um pouco desses camaradas, durante um mês eu levava a minha bóia lá pra eles, colocava a minha própria bóia dentro de uma latinha e levava, e em troca, sugava um pouco da técnica deles. Na época não existia capoeirista aqui em Belém. Depois de um mês, eles subiram no rumo de Macapá. Pegaram carona num navio e partiram. Aí eu adquiri mais desenvoltura na capoeira, e com isso fui tendo seguidores. Eu não me julgava mestre de capoeira”.

“Para vocês verem como é a coisa. Eu não tinha nem conhecimento de como se fazia um berimbau. A primeira criação minha de berimbau foi assim, de goiabeira. Eu vi que a verga era flexível e dura, só que depois que eu colocava o arame ela ficava. Se tirava, ficava do mesmo jeito. Eu tive a ideia de começar a torrar no fogo, pra ela vergar, e quando soltar, voltar de novo. Eu não tinha noção mesmo de como era feito um berimbau antes de conhecer esses dosi rapazes. E eu botei ouriço de castanha como caixa de ressonância, e aquilo é pesado pra dedéu, saía som mas ficou pesado. Até que eu fui pesquisando, e cheguei na Cuia-Pitinga, de onde deu um som melhor, e aí eu comecei a construir berimbau com galho de goiabeira torrado no fogo com cuia-pitinga”.

“E eu levava meus seguidores para a Praça da República. E numa dessas vezes, e aqui em Belém era uma inovação na época, por que existiam mestres da década de 60 pra lá mas foi coisa muito rara, Mestre Pé-de-Bola, Mestre Castanha do Pará, apareceram e sumiram. E eu estava começando um novo ciclo da capoeira ali na Praça da República. E quando a gente estava fazendo a roda de capoeira lá, era época militar, e existiam os guardas que eram chamados cosme e damião, que andavam em dupla. E aconteceu um fato, eu digo até histórico, porque passaram umas mocinhas lá, e os guardas mexeram com as mocinhas, e elas não ligaram pra eles. Então o que aconteceu? As mocinhas não deram atenção aos policiais e vieram assistir a roda de capoeira, e eles se sentiram humilhados, ou alguma coisa assim, e vieram direto em mim. Quer dizer, na roda. E chegaram lá, isso entrou na história, perguntando, quem é o mestre aí. Os meninos com medo apontaram: “é ele!”. E ó, me deixaram no fogo lá com os policiais. E eles já vieram com algemas e tudo, que aquilo era proibido, que a gente estava pisando na grama, inventando uma série de artifícios para tentar me prender. Trouxeram até a pulseira do Roberto Carlos, e eu disse “aqui ninguém vai botar pulseira do Roberto Carlos não!”, e vai pra lá, e vai pra ali, e tinha um senhor de paletó e gravata e com uma pasta presidente, e eu agradeço muito ele. Não sei quem é, não procurei conhecer. E começou a discutir com os guardas em meu favor: “Não, isso aí eu conheço. Isso é cultura!”. Falou na Bahia, tudo mais, e começou a discutir com os caras lá. E eu fiz a mesma coisa que os meus discípulos, atravessei a rua e fui embora, e ficou lá no meio da praça o berimbau, o pandeiro… Então foi o primeiro passo para ser reconhecido como mestre. Até então eu simplesmente organizava a roda, tinha eles, eles me seguiam para onde eu ia, às vezes até à pé, porque a gente não tinha verba. E um dos meus talentos era fazer camisa, calça. Eu fazia a calça o abadá, que não é esse que o pessoal chama hoje de abadá, é o abadá da capoeira mesmo”.

“Então eu quis homenagear o bairro, e aqui as cores do bairro são verde e branco. E eu querendo homenagear o bairro e Deus, essa era a minha idelogia. E eu coloquei as cores do abadá de verde, do bairro, com uma listra azul, que é o céu. A camiseta branca, dois berimbaus encaixados e o nome do grupo, Filhos da Bahia. Uma homenagem aos dois rapazes que me deram uma dica sobre a capoeira. E andando pela Presidente Vargas eu vi numa lojinha lá em exposição um livrozinho, ‘Capoeira Sem Mestre’. Na hora eu não tinha dinheiro, mas dei um jeito no outro dia de arrumar dinheiro e fui comprar esse livro lá, para ter mais conhecimentos sobre a capoeira, sobre os fundamentos de modo geral, a técnica, porque até então eu jogava da seguinte forma, a capoeira tem duas vertentes, a Angola, e a capoeira regional”.

CAPOEIRA DE ANGOLA E REGIONAL

“A capoeira de Angola a gente chama ela de mãe capoeira, foi a primeira capoeira que surgiu, e depois o mestre Bimba, na década de 40, transformou, aliás, ele não transformou, ele mesclou golpes de outras lutas na capoeira, que hoje em dia se chama Capoeira Regional. A capoeira de Angola eu digo até que ela é jogada mais no chão, mais lenta, devido a ela ter sido criada pelos escravos em senzalas. O camarada fala em senzala hoje em dia, o camarada pensa em um lugar alto, que colocavam os negros lá. Mas a senzala na realidade, era um buraquinho baixo onde se jogavam os camaradas lá como se fossem animais, entende? Então o camarada não poderia ficar de pé. Então eu creio que daí que tenha surgido a capoeira de Angola, porque não dá para jogar pelo alto, eles jogavam aqui mais embaixo. Esse é o meu pensar sobre de onde veio a capoeira de Angola”.

“A Regional não, a gente joga mais em cima, ela aqui de pé, golpes semelhantes de outras lutas, como karatê, jiu-jitsu, que só se transforma no nome, por exemplo o Martelo, que dão outro nome lá no karatê, a Chapa, que no jiu-jitsu é outro golpe lá, Meia-Lua, Armada, que é um golpe dado no ar, o pessoal do kung-fu usa muito esse golpe, até aquele Jean-Claude Van Damme, na maioria dos filmes dele, tem esse golpe. Então a capoeira regional tem essa mesclada de golpes que nós damos outros nomes. E a capoeira de Angola, sempre que se vai fazer uma abertura de roda, tem que se começar com a capoeira mãe, que é a de Angola. Um jogo lento, compassado, e tipo uma brincadeira de troca de golpes, a pessoa tem que soltar o golpe e puxar, não deixar bater no adversário, só pra mostrar que poderia bater, mas não bate. Então assim que é feita a capoeira de Angola. Um dá o golpe e depois puxa, o outro tem que se esquivar rápido. O que deu o golpe, sabe que poderia ter acertado, e o que vai receber o golpe, se ele conseguir se esquivar a tempo, ele sabe que não acertou. Então é sempre começada uma roda de capoeira com a capoeira de Angola, e depois para-se ou então sobe-se o ritmo pra Regional. Depois que está numa capoeira de Angola, os componentes que estão ficam sentados no chão enquanto os dois jogam aqui, saem, terminou, eles vêm no pé do berimbau, pedem a bênçao em pensamento e deixam a energia aqui no berimbau que é para quando os outros dois que vierem jogar, pegarem a energia e jogar, e não acontecer nada de ruim com ninguém. Depois que para a roda de Angola que vai se passar para a capoeira Regional, os componentes que ficam ao redor da roda se levantam. Aí é jogo rápido, golpes contundentes, e jogando mesmo para bater o adversário, ele tem que ter conhecimento para se esquivar. Se ele achar que não tem condição, ele pede para sair, dá a vaga pra outro. Basicamente, é isso que ocorre dentro de uma roda de capoeira. Começa com a Angola e depois passa para a Regional. Quando é uma apresentação mais ampla, o mestre que estiver ministrando a aula, se tiver conhecimentos de Maculelê, ele encerra com Maculelê. Maculelê é uma dança que se usa bastão ou até facão, para finalizar a roda. Mas tem que ter competência, porque fazer dança com facão, tem gente que já torou o dedo”.

OS FRUTOS DO ‘FILHOS DA BAHIA’

“Aqui em Belém eu sou o fundador do grupo Filhos da Bahia, que mais tarde se tornou, se tornou, não, os discípulos foram se preparando, e fundaram o grupo Senzala, em 1978. Era o ano em que eu estava parando um pouco na capoeira porque estava formando família e até me mudei aqui do bairro, fui morar no Jurunas, depois que voltamos pra cá. E eles deram prosseguimento com o grupo Senzala. Era uma série de rapazinhos, era o Mestre Pula-Pula, Mestre Naldo, e que deram sequência ao trabalho que eu vinha fazendo. Só que eles eram jovens, o mais velho era o Mestre João, que tinha 18. O resto tinha 14, 15 anos. E eles deram prosseguimento e de quando em quando eu vinha dar uma olhada neles, ficar como guardião desses meninos, porque o grupo estava se difundindo, e como tinham poucos grupos em Belém na época, os que tinham não queriam que nascessem novos. Então o que acontecia? Os camaradas que montavam outros grupos vinham para abafar, para acabar mesmo com o grupo Senzala. Então eu ficava atrás de uma touceira de pupunheira, com um banquinho, sentado lá, só observando, quando eles estavam jogando errado, só entre eles mesmos, eu ia lá e dizia “olha, é assim”, e voltava pra lá. Até porque o dono do terreiro, o ‘seu’ Nilson, cedeu o espaço, porque ele gostou de ver os meninos jogarem, levou pra dentro, comprou camisa, abadá pra eles, e quando aparecia uns camaradas formados, feitos, com 20, 25 anos, pra ir quebrar o grupo, ele dizia: “olha, mestre, fique de olho!”. Uma vez ele disse que apareceram dois camaradas e meteram o pé nos meninos, e eu falei, deixe comigo. E este ‘seu’ Nilton gostava muito de tomar um conhaque, vestia paletó e gravata para ir tomar conhaque num comércio que ficava a 15 metros do terreiro. E ele me chamava pra ficar lá, para reparar o terreiro. Aí quando terminava, botava a garrafa debaixo do braço e quando ia passando na roda, dizia: “ei, a de vocês é capoeira, mas a minha é essa daqui”.

“Eu ia para a touceira de pupunheira e lá ficava, mas não dava tempo, todo dia aparecia alguém para querer dar porrada nos meninos. E nesta época eu gostava de usar roupa preta. Quando aparecia alguém e começava a meter o pé nos meninos, e nem pediam permissão, já iam entrando e metendo o pé, eu esperava só ele ficar de costas, quando ele virava eu dava uma rasteira que ele nem sabia de onde tinha surgido, daí era peia, peia, até que o camarada cansava e eu dizia “olha, joga com mais calma aí com os meninos”. Aí pronto, chega ficava mansinho, mansinho. E na época eu era muito bom em capoeira, não temia ninguém, nem altura nem largura. Eu era destemido. Então sempre foi assim, o pessoal tentando acabar com o grupinho Senzala, não conseguiram, e ano passado o grupo fez 30 anos. Foi fundado em 29 de novembro de 1978. E anda com as suas próprias pernas. E eu fiquei assim só como um guardião. Só de uns anos pra cá que eu recebi um convite para compor a diretoria e até hoje sou um dos diretores de lá”.

“Durante todo este tempo aí foram feitas centenas, milhares de apresentações, SESC, SESI, Praça da República, em Belém, e também na Ilha de Marajó, tanto é que já tem descendentes do grupo em Cametá, em Marajó, por aí”.

DE UMA CAPOEIRA QUE NÃO SABE DE SUAS RAÍZES

“E falando nos meninos me lembrou até uma estória de uma vez, que tem gente que não conhece a gente. Um fato inusitado que aconteceu comigo no bairro da Cremação. E eu fui levar lá para um cara que mora na Cremação, e ele disse “mestre, espere aí um instantinho no bar que eu vou pegar o dinheiro e volto para lhe pagar”. Aí ele foi pra lá e demorou, e eu comprei uma cervejinha para matar o tempo. De repente se formou uma roda assim do nada, os meninos jogando, e eu achando que estavam fazendo uma homenagem pra mim. Eu pensei, né. E tinha um rapaz assim fortezinho, o líder deles, jogando lá e tudo mais, um jogo pesado, e de repente o berimbau afrouxou a corda que segura o arame, e não deu mais som, e o menino só jogou o berimbau que caiu lá para trás. O berimbau não quebrou, só afrouxou a corda. Aí eu peguei, ajeitei o berimbau, ajeitei a cabaça e comecei a tocar. Tinha dois berimbaus, contando com aquele. E eu comecei a tocar, acompanhando eles. E o rapaz fortezinho chegou pra mim e disse “ei barrigudo, sabe tocar, sabe jogar”, e saiu pro pau. Eu fui no pé do berimbau, fiz o sinal da cruz e saí pra jogar com o pequeno, e quando eu estava jogando ele vem de lá e me joga uma bufa. Eu continuei a jogar, lento, eu tenho um jeito diferente de jogar, um jeito maroto, o pessoal sempre diz que o meu jeito de jogar é diferente de qualquer outro, e quando eu vejo lá vem ele de novo com o mesmo passo, e dei [faz o gesto do golpe ‘telefone’]. Quando a gente acerta às vezes a pessoa perde a vista por uns momentos. Aí ele sentou lá no chão, eu peguei na mão dele, coloquei ele de lado, e comecei a chamar os meninos pra jogar. Aí os meninos vieram jogar lento, já todo mundo meio com medo, eu sabia que podia derrubar mas não derrubava, metia o pé na cara deles, mas puxava, mostrava que eu podia bater, mas não batia neles. Depois, a visão volta, eu já fiz isso com várias pessoas atrevidas. E voltou a visão dele, e eu chamei ele para jogar de novo, e ele já jogou macio que foi uma beleza. Quer dizer, são coisas que acontecem. Joguei mais um pouquinho com ele e depois voltei pro bar onde eu estava. Quando eu vejo, a roda toda parou para olhar, porque eles não sabiam, o menino veio com atrevimento e eu mostrei para ele que eu tenho conhecimento. E eu disse “podem continuar, eu vou só apreciar vocês daqui”. Eles continuaram jogando, e de vez em quando eles olhavam pra lá. Aí o meu cliente veio, me pagou, e eu fui embora. E ouço aquela voz: “ei, o senhor é baiano, é?”. Não, sou aqui mesmo, papa-chibé, aqui do Pará. Quer dizer, é um grupo mal formado. O mestre deles só ensinou a dar porrada, nem montar um berimbau sabiam, não sabiam nada de fundamento”.

HISTÓRIAS DA CAPOEIRA PARAENSE

“Geralmente eu sou convidado, todos os anos, por exemplo, um grupo aqui, todo fim do ano, fazem um batizado. É tipo como uma prova final para ver o que o menino aprendeu durante o ano. Então o primeiro cordel que ele pega é o cordel verde, o segundo é verde-amarelo, e assim por diante. E eu sou convidado geralmente para esses batizados. Inclusive agora eu vou mais assim, quando o mestre do grupo tem consideração por mim, e assim vai. Outros mestres, que passam 5, 10 anos para vir aqui em casa…”

“Porque uma vez eu fui num grupo de um rapaz que chamam Mestre Bimba para ele, o nome dele é Valdir, mas é que quando ele era pequeno, que vinha entrando aqui pelo saguão, a fisionomia era igual à do Mestre Bimba, já falecido. Aí eu disse que ele era parecido com o Bimba, e de lá pra cá pegou. Então eu fui num batizado deles, e tinha menino lá que nunca tinha me visto. Daí quando eu fui batizar lá um menino, um rapaz, assim de 18, 20 anos, e quando a gente vai batizar um aluno, não é questão de dar pancada, a gente dá uma rasteirinha, uma cabeçadazinha, e quando estes meninos vão pra festa do batizado eles levam pai, mãe, parente e tudo mais. E o menino jogando comigo lá me enchendo de ‘martelo’. E a gente como mestre, se bater no pequeno lá, a mãe, o pai, o parente lá não vai gostar, né. Mas quando eles batem na gente, o pessoal do grupo mesmo, da redondeza, batem palmas, gritam, olha, tá batendo no mestre… A gente fica numa encruzilhada, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Conclusão: este menino estava meio atrevido, e eu fiz a mesma coisa que eu fiz com esse que contei ainda agora. Soquei um ‘telefone’ nele. O menino caiu no chão e ficou, eu peguei ele, coloquei do lado, aí o mestre Bimba até parou a roda, e eu disse “não te preocupa que daqui a pouco o farol dele volta ao normal”. Foi, até que voltou. E ele botou outro pra jogar lá…”

“E quando a vista do menino lá voltou, o mestre Bimba parou a roda e disse: “olha, vocês quando estiverem jogando, não é para bater em mestre, porque o mestre tem mais conhecimento que vocês. Ele pode bater em vocês mas ele não usa dos artifícios que é para não machucar ninguém. Aí pronto. Depois, quando me chamaram de novo para batizar outro menino, a coisa já correu mais naturalmente. Esse ano que passou, lá no grupo Zambo Capoeira, do bairro Jurunas, aconteceu um fato praticamente idêntico a esse. Eu jogando com um rapaz do cordel mais alto que esse, já graduado, a mesma coisa, e eu me esquivando, e ele querendo me pegar, e o velhinho aqui ainda dá pro gasto. Quando ele vacilou, não teve jeito, uma cabeçada, ele caiu com as nádegas no chão, deu até um trabalho pro pessoal depois, tiveram que fazer massagem lá… Quando a gente derruba alguém, eu geralmente gosto de dar uma rasteirinha, pro menino cair, uma cabeçadinha sem muita maldade, só pra deslocar ele, mas esse estava jogando muito rápido, e eu me esquivando, quando ele vacilou eu só dei. Na velocidade que estava, ele se bateu. Aí depois, na entrega de cordel, eu fui lá, peguei na mão dele, tinha aquele gel de massagem, eu fiz massagem, tava lá a mãe dele, o pai dele, eu fui lá pedir desculpas, primeiro pra ele, depois pro pai e pra mãe, expliquei que era sequência do jogo, eu não tinha a intenção de machucar, e ele mesmo reconheceu que estava muito agressivo, querendo me bater, pra mostrar que estava bom”.

“Geralmente quando o jovem está aprendendo, que pega um cordel mais graduado, ele quer mostrar a técnica dele, quer superar o próprio mestre, mas às vezes ele perde a noção de que não deveria estar machucando os mestres. Eu prego sempre a seguinte coisa: treinar capoeira e preservar a integridade física do adversário. Só num caso de situação extrema que deve ser usada a capoeira para se defender, não para atacar”.

UM CAPOEIRA ATREVIDO NO CAMINHO DO MESTRE

“Inclusive uma vez lá no Guamá, eu e um amigo, nós tínhamos ido de um outro bairro lá pro Guamá. Só que de ônibus ia dar uma volta assim, aí o que fizemos? Fomos cortando, que ele conhecia lá as ruelazinhas e fomos cortando. Quando chegou no meio do caminho, ele convidou para tomar uma cerveja antes de seguir caminho. Chegamos lá e estávamos tomando uma cervejinha quando chegou um rapaz. Aliás ele já estava lá, num cantinho, tomando uma garrafa de pinga, sem camisa, cordão de caroço de tucumã… Aí quando o meu amigo viu, disse “ah, tu não é nada, esse aqui é que é, o meu amigo”. Eu disse “não faça isso, não faça isso que não dá certo”. Aí o cara tomava a pinga dele e jogava a capoeira dele lá no chão do bar e perguntava “o senhor é mestre mesmo?”, e eu dizia “não, rapaz, não tá vendo aí a barriga”. Mas quanto mais ele tomava a pinga, mais ele vinha, “tu é mestre mesmo? Eu tou desconfiado que tu é mestre”. “Não, eu não sou mestre, é brincadeira do meu amigo aqui”.

“Aí eu tomando uma cerveja e falando sobre o serviço, resolvi pedir uma dose de conhaque, e ele viu de lá, aí disse “o senhor é mestre, gosta de tomar uma bebida forte”. E realmente, todo mestre gosta de uma bebida forte. E eu “não, é brincadeira dele”. A gente usa da psicologia. A gente faz a pessoa crer que a gente não é nada, para depois demonstrar que nós somos alguma coisa. Até que ele acreditou que eu não era mestre. Ele já estava embriagado, e eu estava com uma camisa branca, rapaz. E meio bêbado ele chegou e colocou as patas sujas dele na minha camisa. “O senhor não é mestre coisa nenhuma!”, chega ficou a marca da mão dele na camisa. Aí eu mostrei que era mestre. Meti a mão no peito dele, abri a guarda dele, segurei ele por baixo, levantei ele no segundo andar e joguei em cima de uma grade de cerveja. Foi coisa rápida. Peguei uma garrafa e fiz menção de bater na cara dele, quando ele gritou: “Ai, Mestre!”. “Ah, tu já sabe que eu sou mestre, né”. Aí eu botei a garrafa no lugar, dei a mão pra ele e puxei. Ele não sabia nem como ele tinha caído na caixa, ficou todo marcado. “Mas o senhor é mestre mesmo, estava me enganando”.

“Conclusão: o camarada largou da cachaça dele e passou até a pagar cerveja pra mim. Aí ele dizia “mas o meu mestre não me ensinou isso aí que o senhor fez”, e sempre aquela questão, “o senhor é da Bahia?”. “Não, sou papa-chibé”. Ele perguntou se eu conhecia o mestre dele, o Mestre Marrom, e este Mestre Marrom um dia estava usufruindo do meu nome por aí. E ele não aprendeu comigo. Já já eu conto a história dele. Só que ele não é meu discípulo, ele é neto meu, é discípulo do finado Mestre Elias, aprendeu lá no Guamá, e não tem uma boa conduta como mestre de capoeira”.

SOBRE MESTRES E (NÃO-) MESTRES

“A história desse Marrom é o seguinte: aqui na Pedreira, um discípulo dele tinha um grupo de capoeira, e na época ele nem era mestre, era contramestre, mas pra mim ele nem é considerado como mestre. Então ele veio avaliar, num sábado, os pequenos para no domingo ser o batizado. E ele nem era mestre do grupo, o mestre do grupo era um outro rapaz. E quando eu fui lá, fiquei de fora, assim, dando uma olhada, dentro do colégio mas fora da roda, e eles avaliando lá. O que ele fez com o pequeno, ele deu uma Meia-Lua de chapa no peito do rapaz, que o rapaz caiu desmaiado no chão. Ele acertou na boca do estômago que eu até pensei que tinha matado o pequeno. E ele só jogou o menino pro lado e falou: “outro”. Aí eu entrei e falei “tu tá ficando maluco? Vê se ele tá ao menos vivo!”. Aí eu fui lá, tirei a minha camisa, enrolei, coloquei no pescoço dele pra deixar a traquéia livre, fiz uma fricção devagar no estômago dele, levantei a perna até o estômago dele, até o menino voltar. Quer dizer, se eu não estou ali, aquele pequeno era até capaz morrer e o cara só colocou de lado e chamou o outro. Como se fosse um saco velho, jogou pra lá. Aí eu dei uma esculhambada nele, e até resolvi sair pra não ver mais outra coisa desse tipo”.

“Quando foi no domingo, veio o batizado propriamente dito, o rapaz responsável pelo grupo, o Edinaldo, não estava, e era ele que estava avaliando. Aí eu perguntei se o Marrom ia ser batizado de mestre, e disseram que ia. E o batizado acontecendo, eu fui lá, batizei um, saí para dar um tempo, e quando terminou tudo, e ele viu que eu tinha saído, começou a falar umas coisas lá, que praticava capoeira a mais de vinte anos, que o mestre dele era o Mestre Ray, quer dizer, Mestre Mundico – é que eu tenho dois apelidos, meu nome é Raimundo, e Mundico e Ray vem de Raimundo. No carnaval eu sou conhecido como Mestre Ray, e na capoeira sou conhecido como Mestre Mundico – enfim, ele dizia que era meu discípulo, que praticava capoeira há vinte anos, e tinha lá uns cinco ou seis mestres, e ele queria que eles batizassem ele como mestre. E eu ia entrando, e quando vi ele falando que eu tinha ensinado ele, fui falando “ei, pode parar. Esse camarada aí não é meu discípulo, não. Quem for meu amigo não batize ele”. Só fui lá, disse isso e voltei lá pra frente”.

“Conclusão, na hora de fazerem a roda pra batizarem ele, ninguém foi. Aí ele pegou o cordel, amarrou na cintura e se botou como mestre. Eu vou batizar um cara desses que só falta matar os discípulos? É por isso que eu discordo de certas coisas, de certos mestres de capoeira, que não têm capacidade para estar no patamar de mestre”.

DA SABEDORIA POPULAR

Eu penso assim, claro que se a pessoa estudar mais, ela fica com a mente mais aberta, mas a pessoa aprende mais com a vivência, com a vida. A vida é um livro aberto e todo dia a gente está aprendendo alguma coisa. A pessoa nasce aprendendo e morre aprendendo. Eu digo até assim, que nada mais me surpreende nesse mundo. A gente aprende dia a dia, e tem mais: aprende tanto com os mais velhos quanto com os mais novos.

As melhores coisas que eu tenho aqui, quando eu vejo que o rapaz, mestre, contramestre, está fazendo um bom trabalho, eu dou pra ele. Por exemplo, eram duas pessoas que tinham o livro “A Saga de Mestre Bimba”. Era eu e o Mestre Romão. Aí um rapaz aqui, e eu não tinha nem lido todo o livro, eu tenho pouco tempo pra ler, leio um pedacinho, aí o rapaz chegou, “esse livro não tem aqui em Belém, me empresta ele?”. Eu nem li o livro, mas dei e disse “vai, leva o livro e lê que tem muita coisa de capoeira para aprender aqui”.

“Uma vez veio um rapaz aqui e disse que queria uma camisa da Senzala que fosse bem antiga, aí eu fui lá em cima olhar, ver se achava, e achei uma da década de oitenta. E era histórica a camisa que eu dei pra ele, eu contei pra ele. Os primeiros discos de vinil que existiram aqui em Belém, era uma coletânea, Eu Bahia, que eram quatro, e eu tinha dois de cada um, só porque eu vi em um comércio lá e arrematei. Tudo o que eu via de capoeira eu ia lá e arrematava. Os pequenos iam crescendo dentro da capoeira, “mestre, me dê um LP de som”. Conclusão, não fiquei com nenhum aí em casa. Esses que eu tenho, que já são CD, eu tinha uma grande quantidade deles, de mestres de fora, do Rio de Janeiro, Bahia, aí o pessoal chegava aqui em casa e era “mestre, me empreste um CD”, eu fazia melhor, “toma, leva pra ti”. Hoje em dia eu só tenho esses dois aí, e esses aí eu só tenho porque eu só tenho ele, só fizeram uma reserva dele, a não ser que o cara tire uma cópia, é esse aí e um outro que eu emprestei pra um menino, até hoje ele não devolveu mais, gostou tanto que não devolveu. Berimbau eu tinha uma infinidade aí, aí chegavam e diziam “mestre, eu não tenho berimbau”, eu dizia, “toma, leva esse”.

A HISTÓRIA DO BERIMBAU

“Veio aqui em Belém uma moça da universidade do Maranhão, daí eu passei um domingo conversando com ela, e enquanto isso eu fazendo umas três vergas dessas, e conversando, e uma amiga dela tirando fotos, e eu ensinando como fazer um berimbau. Peguei o galho, cortei a cuia-pitinga, porque a cabaça é aquela que dá no chão, no alto assim é a cuia-pitinga. E cortei, fui tirando a massa de dentro, fazendo o buraquinho, peguei a verga, lixei bem, cortei aqui em baixo, para encaixar o arame… Isso aqui tudo é história! Dentro daquelas quatro horas que ela ficou conversando comigo aqui, montei dois berimbaus, ela fez uma longa gravação comigo e ainda levou dois berimbaus para São Luís do Maranhão”.

“A história do berimbau é bonita e meio triste também. Porque quando o Marechal Deodoro da Fonseca passou a ser presidente do Brasil, ele começou a perseguir os negros. Porque os escravos foram libertados, entre aspas, pela Princesa Isabel. Eu não ponho como libertação, e tenho letras de música sobre isso aí também. Então os escravos ficaram livres, mas como eles viviam na fazenda, tinham como comer e beber. E quando eles passaram a ser livres, não tinham o seu auto sustento. O que aconteceu, eles passaram a roubar, a assaltar, usando o conhecimento que eles tinham, que era a capoeira. E o Marechal Deodoro da Fonseca decretou que todo negro que estivesse praticando capoeira iria para o pelourinho, quando não, seria enforcado e o membro dele seria cortado e colocado na boca para reprimir os outros. O que os negros faziam então? Faziam então os berimbaus, e existe na capoeira um toque de cavalaria que se dá e parece um trupé de cavalo. Então se fazia uma roda de capoeira, e quando o marechal mandava prender eles davam esse toque para quem estava na roda, que vinha chegando a cavalaria, que era a polícia da época, e todo mundo debandava, ou ficava disfarçando por ali, escondiam o berimbau. E quando a cavalaria já estava muito em cima, que não dava para eles correrem, o que acontecia? Esta parte aqui do berimbau onde encaixa o arame, eles botavam uma foice para degladiar com a cavalaria, que tinha vantagem de estar com a espada e em cima de um cavalo, e o negro assim podia degladiar com eles. Então essa parte aqui do berimbau é uma parte histórica. Muitos mestres de capoeira não tem conhecimento disso. Então sempre que eu vou dar palestra sobre capoeira, eu procuro explicar sobre isso pra professores e mestres de capoeira, para eles terem mais conhecimento, e não fazerem berimbau aleatoriamente”.

FLUXOS MUSICAIS

“Deixa eu botar aqui um CD de capoeira… Esse aqui não está só eu não, está eu e outros mestres. Isso foi um festival de música que nós fizemos na Escola Salesiana do Trabalho, onde foram escolhidos vários mestres para gravar um CD. Esse primeiro aí é o Mestre Valcir, é neto meu de capoeira. Eu sou mestre do Mestre João, ele ensinou para o Mestre Naldo, e o Naldo ensinou pro Mestre Valcir. É meu tataraneto. Ele estava até ano passado como presidente da Associação Senzala. Quando foi agora no mês de agosto, estava acabando o mandato dele, e nós indicamos outro rapaz, um que estava acompanhando de perto o trabalho da associação, o Márcio, que é contramestre, e todas as pessoas que estavam ali na assembléia levantaram o braço indicando que aceitavam a indicação dele. Outras pessoas foram escolhidas, até me indicaram também para ser presidente, mas abdiquei porque não tenho tempo”.

“Esse aí sou eu. Eu não tive nem tempo de gravar, passei correndo pelo estúdio. Cheguei lá e disse assim assim assim, porque eu também tenho conhecimento de estúdio, eu disse para colocar só o toque do berimbau, depois só os instrumentos, aí repete de novo, e eu cantei em cima da gravação. Eu sou um pouco bairrista, eu gosto de colocar nas músicas coisas sobre Belém, sobre o Pará, ou então falando sobre mulher. Dificilmente tem uma letra minha que não tenha um nome de mulher no meio”.

“(Associação de Capoeira Senzala, uma das mais tradicionais capoeiras de Belém).

Eu agora peço licença

Pois cheguei nesse momento

Hoje a Associação Senzala

Faz um grande movimento

O jogo de capoeira

É na ginga e no pé

Mas o jogo é mais bonito

Quando é jogo de mulher

E você que chegou de fora

À cidade de Belém

Vá ao Forte do Castelo

E à Catedral da Sé

Dê um pulo ao Ver-o-Peso

E ao Palácio Lauro Sodré

Não esqueça de visitar a Virgem

Nossa Senhora de Nazaré

E pra conhecer melhor

A cidade das mangueiras

Venha à Associação Senzala

Conhecer a capoeira

Ê, viva Belém!

A Cidade das Mangueiras

Clique aqui bara baixar e ouvir.

“E o pessoal gravava duas, três, quatro vezes e não conseguia, não ficava bom, e eu em menos de cinco minutos gravei a música e fui embora. Só deu tempo de gravar essa aqui. E ficou uma das melhores músicas. A questão é que o pessoal não tem o conhecimento de como fazer a gravação. Eu tenho centenas de letras de música de capoeira escritas. Todas elas têm um significado, foi um acontecimento. Uma vez eu gravei numa fita umas doze a quinze letras de música minha. Eu não tirei cópia, aí chegou um discípulo e pediu a fita, eu emprestei, e ele não devolveu”.

“Eu tenho tantas letras de música que às vezes o camarada chega aqui e diz, “Mestre, cante aquela música”, e eu digo, “qual?”. Se não me disser o título da letra da música eu não lembro assim de uma hora para a outra, eu tenho que pegar o caderno, pra ler. Eu tenho uma veia artística que eu faço letras de música do nada. Faço aleatoriamente. Esse grupo, lá no Jurunas, quando tem um batizado e eles me convidam, eu levo de presente uma letra de música. Eu fiz uma vez uma para as mulheres de lá que é mais ou menos assim:

“Quem nunca viu, vem ver

Se você não acredita que no samba ou capoeira

A mulherada aqui agita

Elas tocam berimbau, atabaque e agogô

Elas tocam pandeiro, reco-reco e catixi

Fazem jogo bonito, se você não acredita

Você tem que vir aqui”.

“As minhas letras são com rimas e versos, que eu faço questão de colocar. Eu fiz uma aqui para a primeira-dama, porque ela tem uma criação de beija-flor bem ali, criação que eu digo porque ela coloca uma água com açúcar e assim quando é duas horas dá um monte de beija-flor. Então eu criei uma assim:

“Beija-Flor!

Por que parou no ar?

Vem que eu quero te contar (Beija-Flor!)

Leva no bico essa rosa

Pra aquela loirinha prosa que está a me esperar

Beija-Flor!

Diga pra ela não chorar (Beija-Flor!)

É que eu não vou me demorar

Beija-Flor!

Tem duas coisas que eu gosto

Uma é a minha capoeira, e ela, que está no meu pensar”.

“Eu crio letras assim, e todas elas têm um endereço. Uma vez… É crime ofender as pessoas, chamá-las de negras e tudo mais, e eu estava na Praça da República, e eu acho que o cara lá queria o espaço do anfiteatro. Eu estava ajeitando lá pra fazer uma roda de capoeira e o cara queria botar outra coisa, estava até com uma caixa de som, só que eu tinha chegado primeiro, e o espaço é público, quem chega primeiro toma conta do espaço. E ele disse assim: “Esse negro tá aí tomando conta…”. E eu peguei e disse “olha, eu posso ser negro, mas sou ser humano, tenho arte e cultura, e vou demonstrar aqui”. Então eu criei uma letra de música sobre isso, que é”:

“Sou negro, seu moço, pois um negro eu sou

Você me chamou de negro, mas sou negro sim, senhor

Eu sou da raça negra, que construiu esta nação

No plantio dos canaviais, sob o chicote do patrão

Me orgulho de ser negro, de uma cultura sem igual

Da capoeira de Angola, e também da regional

Do Makulelê e do Candomblé, do Samba e muito mais

Pois eu sou negro, eu sou Arte

Sou Capoeira, sou Estandarte da cultura nacional”.

“Então geralmente tem uma direção as letras de minha música. Uma vez, há uns dois anos atrás, um grupo de capoeira mulher, era só mulheres, se reuniram neste mesmo lugar, na Praça da República para fazer uma roda de capoeira, e fizeram um convite a mim, para que eu estivesse lá presente. Depois que terminou tudo, todo mundo foi embora, tinham três caras que estavam tomando pinga lá atrás de umas árvores, e eu ia passando, e ouvi um dizer “Ah, essas mulheres aí pensam que são não-sei-o-quê, porque praticam capoeira, a gente pega uma mulher dessas e senta a mão”. E eu falei que eles não podiam fazer assim. O cara falou “O que tu vai querer?”, e eu respondi, jogando o chapéu pro lado, “Eu é que pergunto o que tu vai querer”, e comecei a gingar na frente dele. Aí ele veio aleatoriamente, dando soco. Deu soco, tá perdido. Mas eu não bati com muita força, só um martelozinho. Eu só empurrei, não bati com força, e ele caiu lá no meio das árvores. “Vocês querem alguma coisa?”, e eles, “Não, ele que quer aí, a gente não quer nada não”. E eu criei outra música em cima disso”:

“Não fale mal de mulher perto de mim

Não fale mal de mulher perto de mim

Cala a boca, meu amigo, que não quero ver teu fim

Cala a boca, meu amigo, que não quero ver teu fim

Não fale mal de mulher no berimbau

Não fale mal de mulher no berimbau

Cuidado, camarada, você pode se dar mal

Toma cuidado, camarada, você pode se dar mal

Não diga que a mulher não vale nada

Não diga que a mulher não vale nada

Você vai tomar rasteira, e quem sabe uma armada

Você vai tomar rasteira, ou quem sabe uma armada

Eu nasci de mulher eu tenho mulher minha filha é mulher minha neta é mulher e você o que é? É mulher”.

“Aí elas cantavam tudo em côro, “E você o que é? Sou mulher”. Eu gravei só um CD, que esse menino levou, e até agora não trouxe. Outra eu fiz pra minha filha, a Raylena, da capoeira também:

“Essa mulher é uma cobra

É venenosa, sorrateira

Na capoeira regional

Ela te pega na rasteira

É é é, é perigosa essa mulher

É é é, tem malícia no corpo e veneno no pé

É é é, é perigosa essa mulher

É é é, é filha de Ray e de Nazaré”.

“Eu tenho umas duas ou três peças teatrais que eu perdi, pegou água e perdeu tudinho. Mas elas estão gravadas aqui na mente. Fizemos a apresentação de uma delas no SESC da Doca de Souza Franco, apresentei lá e ficamos em primeiro lugar. A história é a história de um capoeira que atravessou para uma dessas ilhas que ficam aqui de canto com Belém. E chegando lá, como tem sempre festa noturna, ele se dirigiu pra beira da maré com a namorada dele. Nisso apareceu três elementos querendo tomar a namorada dele e assaltar. O primeiro puxou um pedaço de pau, isso tudo é a peça teatral, foi ensaiada até aqui neste quintal, e rapidamente o capoeira tomou o pedaço de pau e já acertou esse. O outro puxou um facão, ele deu uma tesoura, derrubou o cara e com a perna tirou e jogou pra longe o terçado. Quando o terceiro tentou puxar uma arma de fogo, ele desarmou, e o cara saía gritando assim meio que como uma palhaçada “Ele é doido!”, e aí sai todo mundo correndo do palco”.

“Livros, tenho dois pra escrever, duas estórias para escrever. Ainda não tive tempo, mas tá tudo aqui, encaixado. No dia que eu tivesse verba, não precisasse trabalhar o dia-a-dia, eu iria ficar só escrevendo. Um deles é até sobre um fato acontecido comigo. Era um tempo difícil, as coisas estavam meio difíceis aqui pra mim, e só tinha acho que água aí no fogo. Aí um rapaz ligou e disse pra eu ir lá buscar um dinheiro, e eu parti pra lá. Às nove da manhã, tomei um golinho de café, e parti. Eu só tinha uma passagem de ida. E quando chegou lá, o camarada tinha saído. Eu fiquei esperando, de nove horas até meio-dia. Meio-dia ele liga, dizendo que achava que eu não iria, e aproveitou pra viajar. Eu ainda perguntei do rapaz lá se tinha um dinheiro pra minha passagem de volta, mas ele não tinha. Aí eu me vi em palpos de aranha. Do outro lado da cidade, eu tomei um copo d`água e vim embora. Como eu tenho muitos conhecidos, eu vim cortando por dentro. Vim cortando, e resolvi ir na casa de um camarada que me devia 19 reais. Cheguei lá, ele disse que não tinha. Eu sabia que ele tinha, porque ele acabava de vender um aparelho de som grande. Mas nesse momento o cara tem que ter muita fé no Grande Mestre. Quando eu me dei conta que eu tenho muitos motoristas conhecidos, e resolvi seguir a pé o trajeto do ônibus, mas não passou nenhum motorista conhecido”.

“Andando a pé desde meio-dia, eu cheguei na Praça da República aos pedaços. Tu sabes aquele dia em que o sol dá e não deixa nenhuma sombra, aquele sol causticante. Eu fui pra debaixo de uma mangueira, pra ver se caía uma manga, pra matar a minha sede e a minha fome. Não caiu. Eu fui no chafariz ao menos lavar a cara, chegando lá não tinha água. E eu pensando o que foi que eu fiz pra estar sendo castigado dessa forma. Mas vim embora. Cheguei na Praça Brasil, e quando cheguei lá tinha um discípulo nosso que estava vendendo água de coco. Eu pedi um coco, que o negócio tava pegando, e ele disse que não podia dar, porque o patrão estava só de olho. “Nem uma pedra de gelo?”. Ele disse “Eu posso perder o emprego”. Eu já estava com a boca pregando, de tanta sede, mas disse que se já tinha atravessado metade da cidade, iria atravessar a outra metade. Andei uma linha, até que não dei mais conta de andar. Sentei na calçada, olhei pra trás e tinha uma janela aberta. Fui colocar a cara na janela pra pedir um copo de água, a mulher fechou a janela na minha cara. Aí eu não aguentei: as lágrimas desceram. Eu parei de novo, sentei, descansei um pouco, levantei e fui. Andei, andei, até que cheguei perto de casa. Quando avistei a frente aqui, estava já vendo estrelinhas. Isso já era umas quatro horas da tarde. Pensei: “não consegui nada, mas quando chegar em casa vou ter ao menos o calor da família”.

“Quando eu chego em casa, meu filho mais velho diz que tem um cara me esperando num carro. Eu já penso que é bronca. Eu dei uma parada, suspirei duas vezes pra vista voltar ao normal. Quando cheguei lá o cara disse: “O senhor é que é o Mestre Ray?”. “Sou eu mesmo”, respondi. “O senhor é que fabrica hélices?”. “Sim, sou eu mesmo”. “Então tá aqui uma relação, aqui o meu nome, telefone, e 500 reais de adiantamento pro senhor”. Eu precisava de um real para a passagem de ônibus, e depois de passar por essa saga, esse sofrimento imenso, tinha 500 reais me esperando aqui há mais de duas horas. Pra ver como são as provações divinas”.

“Esse é um dos fatos que aconteceu comigo que eu pretendo transformar num livro. Eu tenho muitas histórias pra contar… Mas o que era mesmo que vocês queriam saber?”

Os risos tomam conta. A esta altura, o pessoal do carnaval já está por lá, tocando um samba, esquentando para a festa que iria acontecer à tarde. Chega a dona Nazaré, a ‘Primeira-Dama’, com um delicioso refresco de manga, colhida minutos antes, e um tira-gosto. A barriga agradece, os afinados refestelam-se nas delícias da culinária paraense, ao som da turma do Bloco Chupicopico (Meninos Travessos), e assim a manhã vai cedendo espaço para a tarde, e a alegria toma conta do ambiente. Todo domingo é assim, na casa do Mestre Ray, mestre do carnaval, da capoeira, da vida ativa, que cria fluxos e engendra comunidades m

A POTÊNCIA ATIVA DE MESTRE RAY, DE BELÉM: DO CARNAVAL À CAPOEIRA, NA COMUNALIDADE-MUNDO

Fonte:

https://afinsophia.org/2009/02/24/a-potencia-ativa-de-mestre-ray-de-belem-do-carnaval-a-capoeira-na-comunalidade-mundo/