GINGA NA "BELLE ÉPOQUE"

GINGA NA "BELLE ÉPOQUE"

Em plena "belle époque" a capoeira ganhava um espaço nobre, aparecendo na mais cara e graficamente sofisticada revista da época. o artigo "A Capoeira", assinado pelo escritor simbolista Lima Campos, contava com ilustrações de caricaturista Calisto Cordeiro (1877-1957) ou KALIXTO. Surpreende que o relato de Lima Campos, ao invés de desabonar a "luta", trata de inserí-la no melhor de nossas tradições brasileiras e recompor um quadro em que o capoeirista deixa de ser um elemento perigoso, pertencente a maltas sanguinárias, para se tornar um símbolo unificador da nação. Afinal, não podemos nos esquecer de que os capoeiras trabalharam por longo como "capangas" de políticos, especialmente em épocas de eleições.

Mais do que meramente ilustrar o artigo, as imagens criadas por Kalixto formulam uma narrativa em paralelo.Permanecem não só atuais estilisticamente, mas também se transformaram em referência para o estudo da capoeira ao registrar em detalhes os movimentos e os nomes dos golpes utilizados.

Em seu texto, Lima Campos compara a capoeira a outras lutas populares, como o jiu-jitsu japonês e o boxe inglês. Conclui ue, de todas, a mais temível é a Capoeira, caracterizada pela excelência dos golpes de defesa. Em seguida, o escritor revela seu verdadeiro objetivo: transformar a capoeira em um símbolo de um Brasil mestiço. A capoeira "nasce" nas páginas da "KOSMOS" como uma luta de libertação e resistência ao inimigo comum, o português dominador, e como a mistura ideal das três raças conformadoras da nossa nacionalidade.

Se os grupos de capoeiras praticamente desaparecem no início da República devido à repressão do chefe de polícia, Sampaio Ferraz, a visão idealizada da capoeira irá avançar pelas primeiras décadas do século XX. Os intelectuais desse período almejavam recuperar a capoeira para o mundo dos "esportes" e da busca de uma identidade cultural que abarcasse os elementos da cultura negra e mestiça anteriormente renegada.

Apesar de os historiadores ainda divergirem sobre as origens, alguns fatos são indiscutíveis. A capoeira escrava vincula-se notadamente ao espaço urbano, em especial ao Rio de Janeiro do século XIX. Já nos tempos de D. João VI, documentos policiais comprovam a prática da capoeiragem por escravos ou libertos. Dessa mesma época datam os primeiros registros de maltas de capoeira que serviam como espaço de proteção, sociabilidade e exercício de uma prática cultural. Este exercício confere à capoeira seu caráter lúdico, em que a dança e a música ocupam papel fundamental. Como se vê, a fala de Lima Campos está muito mais próxima de uma origem mítica do que comprovadamente documental.

Menos preocupado com o contexto histórico do jogo, Kalixto recria os golpes e as gírias dos capoeiras que remetem diretamente à cultura e ao cotidiano da sobrevivência nas ruas. O trabalho de Kalixto não retoma somente um Passado distante, mas insere, em meio às avenidas e aos cafés do afrancesado Rio de Janeiro, o corpo e a fala dos negros.

O primeiro quadro nos mostra dois capoeiras representando os Nagôas e os Guaiamus, dois grandes grupos de capoeiras no Rio do século XIX. Os Nagôas, que dominavam a periferia da cidade, eram reconhecidos pela cinta branca sobreposta à vermelha, ambas enroladas no chapéu que traziam com a aba baixa. Os Guaiamus usavam a cinta vermelha sobre a branca, o chapéu com a aba elevada na frente e ocupavam o Centro da cidade. Estes detalhes revelam que o caricaturista conhecia intimamente os sinais de identificação dos capoeiras. Já nos primeiros registros policiais do século XIX, era costume anotar o tipo e a cor do chapéu e das fitas que o capoeira portava para depois identificá-los. Não por acaso, Kalixto era também um exímio capoeirista, formado nas rodas da Cidade Nova. Ou seja, a capoeira, que para muitos intelectuais daquele período fazia parte do passado da cidade, nas imagens de Kalixto aparece em todo o seu vigor, demonstrando a importância, ainda que em menor escala, dessa prática no início do século XX.

Cada um dos cinco quadros seguintes identifica um golpe da capoeira e suas denominações: "Peneiração", "Cocada", "Calço ou Rasteira", "Lamparina" e "Meter o Andante" (sapato). Destaca-se nos traços elegantes do caricaturista a imagem do capoeira negro, ágil e veloz, usando terno branco e "andantes" (sapatos) pretos. Abaixo de cada quadro, segue também uma pequena narrativa em primeira pessoa que simula a fala de um capoeira contando a aventura que vivera durante um "samba", termo que designava as festas em que houvesse dança.

Esse recurso ficcional criado por Kalixto permite ao leitor não só acompanhar o desenvolvimento da "briga", mas também serve para que o caricaturista apresente as gírias utilizadas pelos capoeiras. "Com pouco vi um cabra peneirando na minha frente, dancei de velho. O tipo era bom! Sambou e entrou no cateretê comigo." Pela ginga do desafiante, passo básico da capoeira, o narrador percebe a qualidade do oponente, fato que valoriza também sua futura vitória.

Nos desenhos, o corpo , os trajes e o discurso do capoeira compõem um todo que, ao contrário da idéia defendida por Lima Campos, tem por objetivo o ataque ao desafiante, e não apenas a defesa. Isto mostra, justamente, a singularidade e a importância do trabalho aqui desenvolvido por Kalixto. Ele não procura domesticar ou apagar a violência do jogo. Pelo contrário, ele mergulha no universo fechado dos capoeiras para registrá-lo com maior veracidade. Estão presentes a navalha e a bengala, usadas como armas mortais; o olhar agressivo ou a expressão de dor resultante de um golpe como a "cocada"; os códigos de linguagem e, igualmente, a alegria final do capoeira que "volta pro samba garganteando" a vitória.

Fundamental é não nos esquecermos onde estas imagens estão sendo veiculadas. Afinal, capoeiras, malandros e outros personagens do "povo"eram uma constante em periódicos como "O Malho". O instigante é pensar como Kalixto consegue, malandramente, inserir suas caricaturas em meio às páginas de papel "couché" da "Kosmos". Se a revista pode ser entendida como uma representação da "belle époque", o jogo produzido pelo texto com as caricaturas pode ser visto como a introdução da fala marginalizada no palco da cidade. Como lidar com este capoeira? Tornando-a dócil, como faz a escrita de Lima Campos, ou trazendo para os periódicos o corpo e a linguagem transgressora das ruas, como nos mostra Kalixto?

As recistas e os jornais tornam-se, simbolicamente, territórios tão importantes a serem ocupados quanto as áreas do Rio de Janeiro. Kalixto demonstra que é possível promover a inclusão dos grupos excluídos da cidade remodelada pela administração do prefeito Pereira Passos (1902-1906) em espaços tão improváveis como a "Kosmos". Para isso, como outros caricaturistas da época, ele lançou mão da observação da vida nas ruas, da ironia e, acima de tudo, da destreza da perna.

(OBS: texto de GIOVANNA DEALTRY, professora da PUC, in... "REVISTA DE HISTÓRIA DA BN - Biblioteca Nacional", rev. nº 53, ano 5, fev./2010, pags 62 a 67)