Breve Estudo sobre Gota D’Água

Ao pensarmos a história da dramaturgia brasileira durante o período do governo militar nos deparamos com um forte engajamento político por parte dos escritores , que buscavam em seus trabalhos pensar com o público as mudanças necessárias no interior da sociedade. Praticamente, todos os dramaturgos se opunham à situação vigente e essa oposição aparecia através das metáforas utilizadas nas suas peças.

As situações apresentadas no teatro deveriam ser compreendidas como frutos de uma condição histórica determinada e passível de mudanças. Pensamento fundamental para o materialismo histórico que influenciou tanto alguns dos nossos autores teatrais quanto o crítico e ensaísta Anatol Rosenfeld, que conclui em seu livro Teatro Moderno que: “a desmistificação, a revelação de que as desgraças humanas não são eternas e sim históricas,” trazem o alcance do processo de sua superação(Rosenfeld,1985,p.170).

O que se buscava era o reconhecimento das condições da realidade através da representação e a consciência de que se poderia transformá-la. Esta era também a crença dos autores da peça Gota D’Água: Chico Buarque e Paulo Pontes.

A preocupação com o homem é o centro de parte da dramaturgia brasileira deste período de resistência (1964/1980). A intenção dos autores era mostrar em Gota D’Água uma classe subalterna encurralada, mas, solidária, dona de uma luz ao final do túnel que se refletia no espírito generoso da identidade de classe.

A idéia de que as pessoas devem unir as forças na luta contra a opressão aparece em uma destacada obra escrita anteriormente: “Eles não usam Black-Tie” de Guarnieri. Há, nessa peça, um sério conflito no interior da classe operária, entre pai e filho a respeito da postura política de ambos em relação à greve na fábrica em que trabalham. O proletariado é o protagonista no teatro brasileiro pela primeira vez através desta peça.

Inspirada na idéia de Oduvaldo Vianna Filho de transportar a tragédia grega Medéia de Eurípedes para um subúrbio moderno carioca, a peça Gota D’Água foi escrita em 1975 por Chico Buarque (1944- ) e Paulo Pontes (1940-1976) . O texto escapou do crivo da censura, alcançou os palcos em 1976 e foi composta principalmente no intuito de provocar inquietações a respeito da estrutura social brasileira do período.

O uso das canções e o intuito de provocar reflexões sobre a sociedade podem ser vistos como recursos do gênero épico, inseridos no texto. A rubrica indica que, ao final da apresentação, depois da morte trágica de Joana, as vozes de todos os integrantes passam a entoar o samba título da peça, as personagens principais se levantam e cantam também ; enquanto, ao fundo do palco, aparece projetada uma manchete de jornal sensacionalista sobre o crime.

Joana é a protagonista passional que, morbidamente, sacrifica os filhos e a si mesma, não por amor, mas, talvez por rebeldia diante da ausência de possibilidades. Em uma sociedade com desenfreada gana de lucros, individualismo e desigualdade, Joana se encaminha à total autodestruição, forma trágica encontrada por ela para dizer: basta! O alívio em seu percurso trágico foi a certeza de que conseguiu fazer sangrar aqueles que a oprimiram, porém, ao destruir os seus filhos e a sua paixão enterrou as suas próprias possibilidades de felicidade .

Joana, protagonista de Gota D´Água, tem como forma de resistência a auto-agressão , infanticídio e instinto suicida fazem parte do seu repertório. Mas , ela não traz a marca da universalidade , reflete uma classe econômica abandonada no crescente centro urbano e entregue aos desmandos do opressor , não tem poderes mágicos e nem é filha do Rei e neta do Sol , como Medéia, que ascende em direção aos seus ao final de sua tragédia.

Esse teatro de engajamento político, representado aqui por Gota DÁgua, buscava, basicamente, uma reflexão profunda sobre a ordem vigente e refletia, primordialmente, uma crença na capacidade da arte de provocar transformações significativas no interior da sociedade .

Posteriormente, já no final do governo militar, em 1983 , no prefácio de seu livro sobre Oduvaldo Vianna Filho, o intelectual e diretor de teatro, Fernando Peixoto , inspirado no filósofo Lukács, diminui o alcance das antigas pretensões e conclui, acertadamente, que “(...) o artista não faz modificações no campo político, nem no campo da economia ; faz modificações no campo dos valores existentes na sociedade, apresentando novos , fixando com profundidade a existência dos valores vigentes.” (Peixoto, 1983, p.11)

O período que antecedeu à produção desta obra teatral , o início dos anos sessenta, foi um momento de grande efervescência artística e cultural. Durante o governo João Goulart, tanto o cinema quanto o teatro e a música voltaram-se intensamente para a problemática das desigualdades sociais no Brasil.

O antropólogo Augusto Arantes afirma que, para grande parte dos intelectuais e artistas das classes médias brasileiras daquele momento histórico, a música, o teatro e as outras manifestações artísticas deveriam revelar as estratégias de sobrevivência e as concepções de vida das classes desfavorecidas, tais como: o carnaval, as simpatias, o samba e a seresta (Arantes,1981,p.13) .

Esta tentativa de buscar as referências das camadas populares, para criar uma identidade entre os diversos segmentos sociais, revelava uma luta pela hegemonia de um projeto cultural idealizado por jovens intelectuais e artistas atuantes no jogo político durante o governo militar. A concepção deste projeto cultural consistia em instruir “a consciência popular atrasada”, salvando as massas da alienação. (Arantes,1981,p.53)

Em suas “Notas sobre cultura popular”, este pensamento é denominado por Marilena Chauí de “autoritarismo vanguardista e iluminado”, pois defende a incapacidade do povo de se auto-gerenciar , sem o suporte cultural construído por aqueles que “optaram por ser povo ,só que mais povo do que o próprio povo”. (Chauí,1980)

Mas, por outro lado, existia por parte destes dramaturgos citados,um interesse em participar da superação das desigualdades no país e um olhar sensível que trouxe ao teatro deste momento uma identidade com as lutas cotidianas dos mais oprimidos, mesmo que idealizada. A tragédia Gota D’Água expõe uma reflexão sobre o processo que isolou as classes desfavorecidas do restante da sociedade, reduzindo a expressão do seu pensamento às manchetes sensacionalistas dos jornais .

Os valores do homem trabalhador surgiram em cena no final dos anos cinquenta através da peça Eles não usam Black-Tie, quando o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri mostra o proletário como a antítese do burguês brasileiro .E em Gota D´Água, aparece a figura do “self-made man” , Creonte , engendrada pelo espírito individualista, juntamente com a do jovem cooptado pelo clientelismo , Jasão .

Inspirado no Angelus Novus de Paul Klee , o Anjo da História do filósofo Walter Benjamim tem o rosto (os olhos e a boca dilatados ) voltados para trás , onde só percebe um amontoado de ruínas e suas asas abertas ao vento o arrastam para cima , o impelem para o futuro . Este futuro surge como tempestade e esta tempestade é o progresso. Em Jasão, a mitologia do progresso obscurece a percepção do passado, visto somente como ruínas, e o olhar sensível para aqueles que fizeram parte dele .

Em seu livro Cinema e História, o historiador francês Marc Ferro afirma que o importante é perceber através de uma obra de arte como se via o momento em que ela foi elaborada e distinguir as diversas vozes que falam através do trabalho artístico. O postulado do autor é de que a história dos fatos que não ocorreram, das frustrações, da ansiedade , da esperança e das crenças humanas faz parte do estudo da história . O imaginário do homem deve ser valorizado como parte fundamental da história .

Nietzsche afirma que a destruição total do passado é perigosa para a vida e para os próprios homens que deixam os seus rastros transformados apenas em ruínas. Segundo o filósofo: “(...) o homem só se torna homem quando (...) na névoa que o envolve, surge um raio de luz intensa e adquire a força de utilizar o que é passado , em função da vida , para transformar os acontecimentos em história.” (Nietzsche,2008,p.24)

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Vânia de Magalhães
Enviado por Vânia de Magalhães em 17/05/2009
Reeditado em 28/06/2010
Código do texto: T1599132
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