Os Sentidos do Silêncio

     Há verdadeiro sentido no silêncio, pois é sempre no contraste que a possibilidade de existir se instaura. Quando guardamos o silêncio tornamos possível a qualquer momento a possibilidade da fala, do inquirir, do desejar as palavras. Mas, conquanto falemos, o símbolo duplo do universo humano sempre será recuperado por meio da retenção insuficiente de seu significado, tão insuficiente quanto parece ser o intuito de nos definirmos a partir de um texto. Por isso, dá-se que seremos sempre qualquer coisa que nunca dissermos. Contudo, sempre desejaremos interpretar e definir o mundo – daí o conflito da essência do sentido de nós mesmos.
     O pensamento se estrutura nas bases de um enunciado e o sistema da língua(gem) parece ser a forma de reter qualquer símbolo presente no espaço. A expressão humana na busca pela designação dos elementos é verdade desde o Éden, como podemos ver relatada no livro de Gênesis, no momento em que Adão nomeou os animais do jardim. Contudo, a apreensão da realidade feita por meio da linguagem, desde então, está atrasada em relação ao próprio ato criativo. A palavra reitera o homem em seu universo, mas não o instaura na história em funcionamento real e assim lhe estampa a verdade de que ele nada cria.
     Também depois da queda do homem edênico é apenas por meio da Palavra que o caminho eterno pode ser indicado, assim, a parole tanto presentifica algo que já se foi – podendo ser “recuperada” pela interpretação do símbolo – como presentifica igualmente qualquer idéia futura, qualquer projeto de sonho. Dentro dessa perspectiva a idéia do duplo constituído na linguagem não é apenas jogo de interpretações subjetivas, mas é parte do próprio sistema lingüístico e evidência contundente da perda humana dentro do universo infinito. Falar do desejo é presentificar algo que nunca de fato se obtém, instituindo pelo próprio ato da fala o atraso em relação ao mundo real e o fracasso da obtenção do desejo por vir.
     Invadidos pela reflexão desse tema não podemos deixar de nos questionar por que é, afinal, que falamos? E mesmo diante de modelos tão insatisfatórios – que são, na verdade, puros sistemas humanos – gozamos o prazer da fala. Não poderia ser que um produto humano fosse menos complexo e falível como é aquele que o origina, como também não pode ser que a linguagem fosse menos sonhadora em definir e expressar o completo, em interpretar o pleno. Por que é que como disse Paul Ricoeur (1977: 26): “onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar”?
     Lacan em palavras de muita profundidade expressou que “é porque dois seres não podem juntar-se que eles falam” (v. Milner, 1987: 62 apud Frota 2000, p. 64). O ser humano, no período da formação de seu ego, quando descobre que existe na solidão de uma constituição corpórea, percebe sua urgente necessidade de fala para buscar para si o ser que lhe era completo – uma só carne: o ventre da mãe – assim, o falar é fruto do trauma, da perda ou como preferem alguns, da eterna busca pelo estado perfeito de paz. A partir desse novo estágio de consciência o significar é a forma que o ser humano tem de definir a si mesmo, de se reencontrar consigo próprio, de “criar” alguém parecido com ele.
     A dialética envolvida na linguagem entre passado e futuro, e entre o único tempo verdadeiramente tangível, o presente, formam a famosa redução dialética, em que esse três tempos ocupam os espaços possíveis da concepção da fala e, por conseguinte, da concepção do mundo por meio dela.
     Assim a ideia do que somos e do que o mundo é, está baseada em todas as noções, concepções e leituras formadas até o último instante da vida que não seja o agora, bem como dos anseios que se nos apresentam quanto àquilo que está para se nos apresentar. No entanto, diante disso o único conhecimento que conseguimos do “real” é a fusão dessas nuanças, é a interpretação do passado que nos formou, com as expectativas que temos daquilo que devemos ser; e esse mecanismo deixa escapar essencialmente a totalidade do sentido da vida, da natureza das coisas. Contudo, no signo lingüístico e na tentativa de reinteirar a existência unificamos essas duas instâncias na própria cena enunciativa, onde do embate entre esses dois limites do real se forma a síntese revelada.
     Nessa célebre pirâmide temos uma discussão que tem sido assunto de frutíferas obras no mundo pós-moderno, a questão do Outro, da consciência outra que se apresenta para o eu a fim de formar o si mesmo, tendo o contraste como fonte originadora dessa possibilidade. O Outro é a demarcação do sujeito desconstruído, visto como elemento de uma reflexividade assujeitadora, tomando emprestada a existência daquele que é diferido e que, por isso, permite-nos saber aquilo que nos iguala, eis a plataforma fundamental da linguagem. Como diz Rosemary Arrojo (1993:104): “Qualquer ato de leitura se estrutura a partir de uma diferença, a partir do que se poderia chamar de um “modo de reflexividade inédito”, o processo “através do qual algo se volta sobre si mesmo””.
De acordo com essas leituras e com a essência da formação traumática de nossa fala o ser humano é espelho demarcador que impele sobre nós o discurso de que estamos sós, a deriva em uma massa social, precisando de um retorno ao eterno, ao momento talvez em que fossemos uma só carne e um só espírito, como no ventre da mãe, como no saudoso jardim do Éden.


O Eu Ideal freudiano a possibilidade criadora do ser

     Na criação a palavra usada por Deus criou a luz, as trevas e todos os elementos da Terra, entretanto, houve um momento em que a sinfonia do Criador encontrou uma longa pausa e reinou o silêncio. A formação do homem pelas Suas próprias mãos foi tão contemplativa, até que esse Lhe abrisse os olhos e visse que a consciência toda-poderosa que se lhe apresentava era de um Ser supremo e maior. Deus agora o leva para ver os objetos viventes que havia criado para que Adão lhes nomeasse, e como projeto dessa experiência fez com que o primeiro homem percebesse a união dos seres:

               E Adão pôs os nomes a todo o gado, e as aves dos céus, e a todo o animal                do campo; mas para o homem não se achava adjutora que estivesse como                diante dele. (Gênesis 1: 20)

É só depois que Deus forma a partir do homem a adjutora que Adão recebe o primeiro versículo na Bíblia que dá ao homem o espaço para declaração de uma fala em discurso direto, ele diz:

                    E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne:                esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada. Portanto deixará o                varão o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos                uma só carne. (Gênesis 1: 23-24) Grifo meu

     A verdadeira demarcação de identidade do primeiro pai surge quando ele vê aquela que foi feita a partir dele. Ela é ossos dos seus ossos, carne de sua carme; assim, a imagem do que lhe é diverso na verdade instaura a possibilidade de ver aquilo que é inerente ou mesmo “semelhante” ao eu. A necessidade da linguagem a partir daí é de fato o elemento que pode não apenas nomear objetos viventes no globo, mas definir a si mesmo a partir do outro. O verdadeiro projeto da criação só estaria terminado quando o ser humano pudesse se unir a uma consciência outra, tal como Deus é Um só, mesmo sendo triúno. A imagem e semelhança de Deus no homem não ocorreu no sentido físico (principalmente), ocorreu, contudo, quando o homem e a mulher se uniram em uma única carne, pois a verdade da natureza divina está em compartilhar a existência.
     Essa parece ter sido a primeira cena edipiana da história humana – se nos permitem usar a imagem –, o desejo de alcançar a plenitude dAquele que criava e em eliminar a tensão da solidão corpórea motivaram a Adão a desejar aquilo que realmente não estava em si mesmo. O que a primeira vista pode parecer uma blasfêmia à comunidade religiosa é, na verdade, o colorário do cristianismo, em que a verdadeira plenitude está na unidade entre eu e o meu semelhante (outro).
Falar, nessa esteira de nossas reflexões, é o ato pelo qual o homem pode definir o próprio caráter de ser e comunicar ao outro os ditames da própria existência. Ao aludirmos a cena edipiana não o fazemos por mera ilustração fortuita, pois :

               Como lembra Jane Gallop, na releitura que Lacan faz de Freud, a cena                edípica é precisamente um drama sobre a linguagem e, mais                especificamente, sobre a castração linguística, sobre a incapacidade de                controlar e possuir não apenas a mãe, mas também a linguagem, ambas já                possuídas e penetradas pelo pai e pelo mundo e, portanto, incapazes de                fornecer ao pequeno desejante a tão sonhada união total e exclusiva (pp.                50- 51). (Arrojo 1993, p.99)

     O falar é o não possuir, como já dissemos, o desejo. Mas aí instauramos a mola mestra dessa seção, pois como sabemos é também nessa cena da formação da personalidade que a teoria da Eu-Ideal freudiano (1923) se constrói. O outro é objeto da minha demarcação, porque ele é a própria possibilidade do meu eu. A harmonia do ventre materno, para sempre perdido no nascimento, pode se repetir no encontro da pessoa amada e na união total e exclusiva do relacionamento íntimo e da invocação de Adão quanto a sermos uma só carne.
     A figura do pai é a representação daquele que sabe tudo do mundo e a quem pertence todas as coisas, sobretudo, aquilo que de mais intenso desejamos; sua imposição que se interpõe entre nós e o objeto desejado é o estímulo necessário para nos identificarmos com seus atributos mais pessoais e sermos consistentemente a imagem do que ele é, pois ele possui aquilo que queremos.      Assim também a mãe, objeto de nosso desejo, é o mistério e o inatingível que ficou idealizado na formação de nosso ser, imprimindo em nossas mentes os caracteres que gostaríamos de atingir um dia. Aí forma-se o Eu-ideal – atributos identificados com o pai soberano e os sonhos idealizados com a mãe desejada –, esse é o estímulo que norteia toda a busca e “criação” humana.
     A fala é o canal único entre os homens que pode presentificar essa “ausência”, que pode recuperar o eu perdido na cena edípica e definir o sentido da vida, na busca da união; no entanto, ela não consolida o “real” da existência ou do sujeito.      Diante disso o amor é a possibilidade do silêncio, pois em seu coito dois seres podem, diferentemente do que pronunciou Lacan, unirem-se. Então a necessidade da fala se desfaz, pois é no ápice da união, quando os seres se sintetizam e há a fusão de seus corpos (assim como há na constituição física humana: todos nós somos o resultado da união entre dois seres), que o ventre se refaz, que o mistério se descobre, fazendo com que já não haja necessidade de inquirir, questionar o mundo para descobrir quem você é ou onde você está. E é nessa atividade apenas que o verdadeiro ato criativo se estabelece e podemos oferecer ao mundo a síntese de nossa essência (o filho), lançando sobre a esfera dos dizeres simbólicos a nossa tese do universo.

Considerações finais

     Por que falamos então, se parece que significamos muito mais no silêncio da união, do que no barulho de nossas palavras soltas? Nada pode parecer mais contundente que falemos para tolerar o parto insistente pelo qual passamos depois de nosso orgasmo. A “pequena morte” que enfrentamos, ou a ausência a que somos jogados quando temos que nos separar no mundo social.
     Isso posto a fala como diz Lacan ocorre de fato pela impossibilidade de união entre os seres, no entanto, poderíamos dizer de uma união ininterrupta. A restrição da visão do ser assume seu lugar tão logo o engajamento do amor sexual alcance seu clímax e acaba, com isso, reinstalando a consciência do abandono e de uma clausura tal que apenas a fala pode tratar de subverter.
     Fala-se para se resgatar a alma que se traumatiza quando percebe que existe em meio à existência. Para recuperar-se do abandono do mundo que nunca se sabe se lhe deixou o eu, ou se foi deixado por esse. Fala-se para unir a plenitude do cosmos no espírito, para presentificar futuro e passado. Para deixar de entender a certeza. Fala-se mais para ser um ente humano do que para entender a Humanidade. É a fala que impede a união, é o desejo da união que faz necessária a fala.
Se a fala é tudo isso, o silêncio é a certeza do símbolo, é o indício da plenitude universal entre os corpos, é o elemento mais criativo. É no silêncio que os seres humanos podem conceber e num profundo silêncio que todos nós fomos concebidos. Não podemos deixar de dizer que o real será tão real quanto nosso silêncio for capaz de absorvê-lo. À medida que o significarmos por meio de nosso dizer a realidade será a parcialidade de nosso saber sobre o mundo e nosso desejo de dividir o existir. Portanto cria-se à medida que cala-se.