os silenciamentos em 15 cenas de descobriento do

OS SILÊNCIAMENTOS EM 15 CENAS DE DESCOBRIMENTO

Hosana Santos

Joseane Nunes

Rubenalva Sousa1

RESUMO

Este estudo tem o objetivo de discutir algumas questões implícitas no conto de Fernando Bonassi 15 Cenas de Descobrimento de Brasis, no qual ele traça um panorama histórico do surgimento da nação brasileira até a contemporaneidade. Procedemos à análise de acordo com a perspectiva do autor Ingo Voese sobre a Análise do Discurso na teoria dos ditos e os não ditos em um texto.

PALAVRAS-CHAVES: 15 Cenas de Descobrimento de Brasis, Análise do Discurso, Ditos e Não Ditos

INTRODUÇÃO

15 Cenas de Descobrimento de Brasis é um conto literário do escritor Fernando Bonassi, um dos nomes que fazem parte da geração dos anos 90, período em que sua obra ganhou notoriedade e projeção. Nasceu em São Paulo no bairro da Moca destaca-se por adotar um caráter versátil em suas narrativas com trabalhos na área literária e audiovisual, o autor é formado em cinema pela USP.

Com este caráter inovador na escrita Bonassi chama atenção de pesquisadores como Silva Fernandes que fez o seguinte comentário.

As constantes passagens do jornalismo, para o romance e o conto minimalista, com estágio nos roteiros de cinema perceptíveis na prática de Bonassi, por exemplo, parecem prova que outros recente são avessos a modelos rígidos e preferem experimentar muitas vias no interior dos processos criativos a que estão ligados [...]

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1Graduando em Letras Vernáculas 4º Semestre na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Nesse sentido Bonassi continua um bom exemplo, especialmente no estilo seco e contundente dos contos curtos híbridos de drama e narrativa... (ITAUCULTURAL apud FERNANDES, 2008).

Este conto foi publicado no livro Passaporte e posteriormente no antológico Cem Melhores Contos do Brasil do Século organizado por Ítalo Moriconi. A narrativa está dividida em quinze microcontos, característica de um novo modelo literário ascendente, assim como a marca da intertextualidade, cada um dos microcontos possui títulos próprios que ganham sentido através da leitura em que é montado o cenário da narrativa sugerida pelo autor, é o Brasil em processo de descobrimento.

Nesse texto percebe-se de imediato uma ressalva ao descobrimento do Brasil, como o próprio título indica. Essa narrativa é voltada para objetivos bem determinados com histórias de cunho crítico sobre a sociedade brasileira, fazendo um panorama histórico desde o descobrimento até os dias atuais. Além de ser escritor, Bonassi atua em áreas como a dramaturgia sendo diretor e roteirista, seu contato com outros campos do conhecimento pode ter influenciado na escolha do tema e na constituição dos quadros de Brasis apresentados no conto.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Análise do Discurso é uma linha de estudo francesa baseada nos princípios baktinianos, sua proposta de análise concebe a linguagem como heterogênea, ou seja,

[...] O discurso é tecido a partir do discurso do outro, que é o exterior constitutivo “o já dito” sobre qualquer discurso se constrói. Isso quer dizer que o discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos. Todos são, portanto, “atravessados”, “ocupados”, “habitados” pelo discurso do outro. (AUTHIER, apud FIORIN 2001 p129).

Nesta perspectiva de análise do discurso o autor Ingo Voese desenvolveu um método de análise fundamentando-se principalmente nas ideias de Bakhtin a respeito da polifonia e do dialogismo. Ao explanar seus fundamentos ele afirma que há uma espécie de redundância no discurso, ou seja, [...] “O enunciante, sempre, ao tentar utilizar os recursos mais apropriados para que o discurso possibilite as melhores condições de mediação, torna-se repetitivo quer seja no uso dos recursos expressivos, quer seja na inclusão de vozes de outros indivíduos” (VOESE, 2004, p. 110).

Assim nos baseamos nas idéias de Bakhtin sobre o discurso, bem como no método desenvolvido por Voese tratando sobre o dito e o não dito, o modo de enunciação e a compreensão discursiva para procedermos a análise do conto mencionado.

ANÁLISE

O Dito E O Não Dito

Nesta narrativa de Bonassi podemos verificar o dito através do próprio tema: o descobrimento do Brasil, em que o autor trabalha com assuntos presentes em nossa sociedade tais como: violência, religião, sexualidade, estética, o jogo das espertezas, entre outros. Satírico 15 Cenas de Descobrimento de Brasis é uma crítica áspera a formação da nação brasileira, nesse conjunto os assuntos formam um retrato do Brasil e do brasileiro.

O autor constrói o conto como um mosaico, usa vários textos para retratar criticamente a realidade do país. Percebe-se também que esta narrativa não obedece a uma linearidade textual, quer dizer, não encontramos a estrutura clássica início, meio e fim isso porque a sequência mencionada em encontra-se em cada cena narrada. O conto é uma complicação de diferentes aspectos da cultura brasileira, em que Bonassi utilizando-se do processo dialógico, analisado a partir da concepção bakthiniana sobre o processo de construção do texto, que tem por base textos acabados explicitando a relação entre os discursos como modo de funcionamento e construção da linguagem que é o dialogismo.

Segundo (FARACO apud FIORIN, 2006. p170) [...] “O dialogismo é tanto convergência, quanto divergência é tanto acordo, quanto desacordo é tanto adesão, quanto recusa, é tanto complemento quanto embate”. Dessa maneira entende-se que no contexto da relação dialógica os textos se vinculam com outros textos que podem ou não concordar com tema abordado, assim Bonassi faz uso deste recurso linguístico para elaborar seu texto com recortes de textos existentes à parte do seu.

No plano do dito verifica-se que Bonassi inicia o conto com a típica historia do surgimento do homem, cooptando para o seu texto elementos Pré-históricos e da Idade Média “primeiro surgiu o homem [...] e se fez o fogo, as especiarias, a roupa, a espada e o dever...” (BONASSI, 2001, p.604). Ao abordar as questões históricas num contexto geral percebe-se também elementos não explícitos, ou seja, os não ditos, o autor nos mostra as descobertas e a evolução do homem e no decorrer do texto ao tratar especificamente da sociedade brasileira constrói seu texto com a apresentação de personagens que valorizam a cultural ideia de se dá bem a qualquer custo para sobreviver, prejudicando ou não quem está ao seu redor.

No título da cena 02 “Turismo Ecológico” identifica-se que o dito está relacionado com a idéia de o lugar de que se fala ser uma rota de passeio, já o texto dessa cena nos remete a carta de Pero Vaz de Caminha, narrando o descobrimento do Brasil “Os missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhe dava vergonha...” (Idem, p.604) neste trecho percebemos através do não dito que há uma imposição da cultura estrangeira, pois os nativos viviam tranquilamente sem se preocuparem se estavam nus ou não, porque este era o costume de sua cultura. No trecho seguinte da mesma cena está presente outro tema que o autor critica [...] “lhes arranjaram empregos nos hotéis da floresta [...] exemplar [...] negócio não fosse o fato das índias começarem a deitar-se com hóspedes...” (Id, p.605).

Ao descrever a mulher indígena Bonassi mostra características que a distancia daquelas retratadas por autores da segunda geração do Romantismo, como José de Alencar na obra Iracema em que o autor retrata a índia como pura, singela, exaltada e heroína de sua tribo “Iracema a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna...” (ALENCAR, 1985. p14) percebe-se a negação do que é dito no texto de Alencar através do texto de Bonassi, pois ao descreverem as mulheres indígenas os autores abordam vieses diferentes, ainda no plano do não dito o texto de Bonassi, mostra o inicio das práticas sexuais entre os nativos e os colonizadores apontando a sensualidade e a sexualidade e porque não dizer práticas de prostituição que o autor critica mais claramente na cena seguinte.

Na cena 04 o índio Wilson Patachó atua como aliciador sexual, vendendo suas filhas para os caminhoneiros como se fossem mercadorias. É possível verificar este tema também na cena 06 em que o marido [...] “gasta em cerveja tudo o que sua mulher ganha durante a noite...” (Id, p.606), mas já de uma maneira diferenciada, pois aqui se retrata aquele individuo que não trabalha e sustenta o vício da bebida através da prostituição da própria esposa. Em todas as cenas em que a mulher é citada aparece como uma figura pouco valorizada, como se vê na cena 07 intitulada “Uma Praga” mostrando a imagem da mulher totalmente descaracterizada ressaltando só os pontos negativos de sua estética.

Até a cena 08 o autor nos mostra várias faces do índio: ingênuo, aproveitador, sem caráter e critica a desorganização cultural, nessa descrição do indígena trazida por Bonassi podemos observar o distanciamento da figura nacionalista que fora tantas vezes

explicitado nas obras românticas como no indica o seguinte trecho de O Guarani.

Então o selvagem, distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrava de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras. (ALENCAR, 1984. p23).

Nesse trecho o autor romântico apresenta o índio como herói, que luta bravamente contra os perigos para salvar sua tribo em contradição o autor contemporâneo apresenta uma figura totalmente sem escrúpulos.

Na cena 09 constrói a figura nacional parodiando a Canção do Exílio do poeta romântico Gonçalves Dias em que o autor explora através de seus versos a melodia, a métrica e ritmos variados como nesta primeira estrofe.

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá. (DIAS, 1994, p. 27).

Dias exalta a beleza da terra natal numa valorização extrema da pátria através do sentimentalismo. De forma contrária Bonassi traz um estilo narrativo. “Minha terra tem campos de futebol onde os cadáveres amanhecem emborcados...” (Id. p.607) Apresenta o futebol, símbolo da representação contemporânea do Brasil, entretanto, não descreve uma bela paisagem e sim a violência que está submersa na população do país. Observa-se a negação do que está no texto de Gonçalves Dias em relação ao texto de Bonassi, que parodia a Canção do Exílio como forma de criticar o crescimento da violência.

Desse modo constata-se conforme as explicações de Voese a importância do “cotejo de recortes dos textos tem o objetivo de caracterizar diferentes modos de interpretar um tema...” (VOESE, 2004. PP. 116, 117).

É possível analisar a questão do exílio, pois o autor romântico descreve com saudosismo uma terra que ele está distante. O exílio retratado por Bonassi pode ser associado à prisão contemporânea, pois vivemos cercados em nossos lares por muros e grades para nos protegermos dos perigos, presos em liberdade para fugirmos da violência. Neste caso pode-se falar de intertextualidade, porque o texto de Gonçalves Dias tem uma existência à parte do texto de Bonassi “É só nesses casos que se deve falar de intertextualidade não somente entre duas “posturas de sentido”, mas também entre duas modalidades linguísticas” (FIORIN, 2006, p.184). Observa-se entre os textos citados, a materialização dos estilos diferenciados dos autores de movimentos literários distintos, pois tratam do mesmo tema, mas de maneira diferente, as interpretações apontam “silenciamentos que, por sua vez, num movimento de retorno ao texto, poderão esclarecer certas questões que ainda permanecem sem respostas...” (VOESE, 2004, p.117).

As análises das cenas seguintes serão enfatizados os não ditos que estão presentes nas mesmas. Nas cenas 10 e 11 o autor descreve o misticismo e sincretismo religioso, ainda na cena 11 verifica-se a introdução da cultura estrangeira, pois o titulo “Dia das bruxas” nos remete ao Hallowen festa da cultura americana que foi introduzida no Brasil, observa-se a invasão cultural, pois os brasileiros aderiram a uma comemoração de outra nação.

Na cena posterior Bonassi retrata vários aspectos desta construção da identidade de Brasil destacando o consumismo exacerbado que permeia a sociedade capitalista. Considerando-se que o dialogismo é a apropriação do discurso do outro para elaborar seu, o autor constrói o seu texto baseado em outros existentes em que se dá a concretização da relação intertextual.

Na cena 13 o autor traz uma reflexão do período da Ditadura Militar em que houve todo um processo de censura, exílio principalmente dos artistas que criticavam a postura do Estado e todos os horrores deste período negro em nossa história.

.Na sequência critica a violência, as drogas apontando em seu discurso a propensão dos jovens a desviar-se dos caminhos “supostamente correto” e seguirem para os caminhos ilícitos, tema que foi abordado também na cena 05. “Quando os quatros combinaram, o quinto já estava morto...” (BONASSI, 2001, p.605) mostrando a violência que está presente nas esferas sociais “dois em cada três brasileiros já fumaram maconha...” (Id, p.608). Assim o autor ilustra o triste quadro em que está inserido grande parte dos jovens brasileiros, pelos números apresentados supõe-se que há uma enorme facilidade no acesso a esse tipo de entorpecente.

A última cena retrata a massificação da mídia, a destruição do meio ambiente pelo próprio homem, o extermínio da sua própria convivência, mostra uma cultura de maus tratos bem como a busca de algo para se firmar, para confiar, ou seja, a fé [...] “há os que procuram um Moisés que lhes empurrem...” (Id, p.609) apontando mais uma das características presentes na sociedade brasileira que é a religiosidade. Na composição dessa cena pode-se perceber o caos em que a nação brasileira está imersa [...] “especialistas estão desorientados que não exista mão humana nessa desgraça.” (Id, Ibdem, p. 609) nota-se que após ter destruído o que a natureza lhe oferecera o homem encontra-se sem saída, sem saber o que fazer da sua vida, restando-lhe apenas o futuro incerto.

O texto de Bonassi é rico em linguagens, tratando desta pluralidade da identidade no sentido de nação destacando-se por criar outros textos de forma critica e irônica através de cada cena refletindo todo o processo do dialogismo presente nas reflexões de Bakhtin.

Quanto ao modo de enunciação o autor trabalha com a polifonia em que podemos observar a presença de outras vozes atuando no processo dialógico do seu discurso. Como menciona Voese (2004, p. 107) “à apropriação das vozes ou enunciado dos outros, enquanto transformação pode ser observada na enunciação, pois ela revela como os ditos dos outros foram incorporados...” sendo esta uma das definições características da polifonia.

Dessa forma percebe-se que há outras vozes sociais inseridas no texto, por exemplo, na cena 02 as palavras: missionários, Ave Maria, nos remete ao discurso religioso, em outras cenas palavras de origem indígena como Juruna, Patachó; nomes de armas como, HK, AR15, M21, 45, 38, sirenes, camburões que fazem parte da linguagem policial e Shell, BUSINESS HEADLINES, Malboro palavras de origem estrangeira inseridas no cotidiano nacional, identifica-se o uso da linguagem de outro lugar social que não está relacionado ao campo literário, ou seja, o autor utiliza da linguagem do cinema para fazer a divisão do texto como cenas, estas foram enumeradas de 1 a 15.

Verificamos que a estrutura do texto é do gênero literário (conto), entretanto, como foi mencionado anteriormente não segue uma linearidade tradicional. Há uma predominância do coloquialismo com frases curtas, é uma linguagem simples que no decorrer da narrativa apresenta-se de forma bruta e obscena, mas apesar do autor utilizar uma linguagem informal o texto não é de fácil entendimento, pois será preciso ter um bom conhecimento sobre a história do Brasil para compreendê-lo. Há uma crítica social em cada conto o que revela a ideologia do autor, pois, ele conviveu com o período considerado o lado negro da nossa história que foi a Ditadura Militar e isto se verifica na cena intitulada (1964) demonstrando forte conotação política criticando a postura dos governantes da época. Assim com estilo inovador de narrar Bonassi apresenta personagens que não compreendem o contexto situacional em que estão inseridos reduzindo-os ao seu lugar de origem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

15 Cenas de descobrimento de Brasis é uma obra hibrida, Bonassi aborda de forma irônica os problemas pelos quais passou a sociedade brasileira no seu processo de construção da nação. Ao abordar esses temas pretendeu mostrar todo seu caráter ideológico é possível notar ao longo do seu discurso a concretização de sua ideologia, através do sentido das palavras, não é fácil perceber seus sentidos é necessária uma compreensão profunda de todos os temas discutidos na narrativa.

Através dessa materialização da linguagem o autor apresenta personagens e fatos fictícios que se assemelham a verdadeira realidade do Brasil. A escolha dos temas abordados demonstra o poder de organização do autor ao retratar de forma crítica as mazelas que compõem a sociedade brasileira, como uma forma de desmistificar as maravilhas pregadas culturalmente em relação ao descobrimento do Brasil e a formação da sua nação.

REFÊRENCIAS

ALENCAR, José de Iracema: Lenda do Ceará. São Paulo. Ática, 1985.

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo. Ática. 1984.

BRAIT. Beth (org). Bakthin: Outros Conceitos Chaves. In: FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e Intertextualidade. São Paulo. Contexto, 2006.

HTTP://www.itaucultural.org.br/.

MORICONI, Ítalo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Rio de Janeiro. Objetiva, 2001.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poemas de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro. Ediouro, 1994.

VOESE, Ingo. Análise do Discurso e o Ensino de Língua Portuguesa. São Paulo. Cortez, 2004.

josy nunes
Enviado por josy nunes em 13/08/2010
Código do texto: T2436106
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