O ESPELHO DA ALMA

Meu espelho é um espectador atento, não interfere, não opina e às vezes nem me encara. Agora mesmo eu tramitei sem me dar conta, entre o ponderável e o jocoso, e ele nem mudou sua expressão, melhor assim, entendo como uma licença para fazer isso. Não tenho nem um compromisso performático com a escrita ou mesmo com narrativas enfadonhas, essa é a vantagem de conversar com um reflexo de mim mesmo, que embora não me diga nada, me observa atentamente fazendo com que escreva sem parar e não me prenda a meias verdades, forma ou a temas definidos. É como se saísse para caminhar por uma longa avenida e observasse acontecimentos inusitados em cada esquina e parasse para registrá-los a cada passagem, não haveria muito nexo no contexto como livro, mas tudo haver com essa real impermanência. Minha perigosa persuasão à impermanência abre um portal de relatividade com corredores de mil portas por onde entram e saem informações tornando tudo perfeitamente aceitável dependendo do nível de consciência que me encontro.

Se eu consegui uma visão aberta sujeita a relatividade recorrente, ou se me encontro hoje em uma condição de maior discernimento, agrego a obrigação de entender e tentar guinchar os desavisados, pelo menos os mais próximos. Agora se culturalmente a convicção se sobrepõe a verdades escancaradas, acima de argumentações lógicas, realmente aí há de se detectar uma forte tendência a estupidez sobre os qual pouco pode ser feito, pois embora haja uma relatividade em tudo em que se toca ou existe não se pode fazer um cadáver levantar e sair andando por aí com sua consciência restabelecida, isso até já foi feito, mas foi na época em que se acreditava e com outro nome.

Transito temeroso entre a crença e o seu revés, o ateísmo não me é de todo desconfortável, trago comigo referências sublimes de autores cuja corrente abraçaram, mas que insistiram em fazer o bem, mantendo seus nomes ligados diretamente a lutas de classes e realizações altruístas. Mantenho amizade irrestrita com alguém que se alinha a esse pensamento e devo dizer que o admiro pelo desprendimento contrariando a tese de materialidade em sua conduta e ainda reforçando seu caráter forte e benevolente simplesmente por não ter um Deus a temer, fazendo o que faz pelo simples comando de sua consciência, talvez ele já tenha conseguido acesso a um ponto mental que muitos religiosos reservaram para acondicionar seus preconceitos e retaliações. Ele só não sabe, mas seu coração é habitado.

Algumas vezes nos estendemos em discussões que entram pela madrugada, mas que não leva a lugar algum, apenas porque a concepção é outra, mas sem nenhuma intenção de mudar-lhe a essência. Não me parece coerente não aceitar verdades tão pujantes. Já o agnosticismo segue uma tendência mais ampla quando diz acreditar sim, porém em tons de cinza, não vê o homem assumindo o controle de um conhecimento, cujo teor para ele não foi totalmente revelado, ou seja, não podemos ter o conhecimento absoluto sobre determinado tema, simplesmente por nos ser inacessível. Isso me parece coesivo. Apesar dos “ismos”.

A mente humana é uma máquina fantástica, capaz de criar um universo próprio, esquizofrênico ou procurar defesas que possam garantir sua longevidade. Já parei pra pensar se tudo que acreditamos não é só uma criação ou recriação, um déjàvu, um parêntese de auto-preservação mental. Já imaginaram se a maior criação da mente humana não teria sido as leis naturais e o temor a punição, só assim ela ganharia longevidade, já que sem um Deus para temer não faria sentido não matar, roubar, apropriar-se indevidamente. A mente tenta reafirmar sua posição de eternidade para não permitir que o pensamento livre admita e conclua que a criação humana seja um fator exclusivamente genético ou fisiológico e que a concepção traz num só pacote o bruto e o sutil, corpo e mente que comanda tudo, inclusive os subterfúgios de sobrevivência como a implantação e o repetitivo reflexo de Deus em todos os níveis de consciência.

A mente mais privilegiada “geneticamente” impõe seu domínio e suga sua sobrevivência das mentes fragilizadas por suas próprias imposições, inclusive doutrinárias, quando na verdade já fora concebida essencialmente determinada e definida com seu prazo de validade estabelecido e jogada num campo de especulações onde os mais hábeis conseguem uma sobrevida, mas que também se esvai com o corpo deteriorado e sua completa diluição.

É temeroso esse modo de pensar assim não é? Esse é um conceito materialista, mas que se não acreditarmos realmente em um passo além de tudo, acaba por fazer todo sentido. A cultura do medo, por exemplo, ratifica sua necessidade de existir, se o diabo não fosse tão cultuado e se tornasse tão importante, não precisaríamos de Deus. É preciso cultuar o antagonismo, o vilão faz e reforça a existência do mocinho. Bem e mal, silêncio e som e assim voltamos aos paradoxos. Sem levarmos também em consideração o fato de que podemos estar sendo neste exato momento vítimas de um processo esquizofrênico coletivo onde a realidade é o sonho.

Anderson Du Valle
Enviado por Anderson Du Valle em 05/05/2011
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