Relação sociocultural entre Ilíada e Odisseia, de Homero

As duas obras de Homero, a Ilíada (epopeia in meia res, ou seja, que tem início na metade) e a Odisseia, apresentam caráteres importantes que persuadem dois principais fundamentos, o prazer estético e os preceitos morais. Entretanto, a primeira obra trataria mais sobre o heroísmo tradicional (desejo de Aquiles em realizar atos de bravura a fim de não de ser esquecido pelo seu génos) e a segunda teria um tom mais dramático, irônico e imaginativo (Ulisses queria se tornar herói, mas enfrentava o dilema da imutabilidade para conseguir a perfeição e, que apesar de sua queda após tantas tentativas, consegue triunfar com a ajuda dos deuses do Olimpo).

No decorrer das obras, é possível ver a intensidade dos valores homéricos, sempre discorrendo sobre a excelência humana determinada pelo nascimento, ou seja, pelo génos (definição para araté); e também, por muitos cantos, discute-se sobre a timé, ou seja, a honra do herói e de seu clã, conceito que se originou da tensão entre o impulso individual e a pressão social, uma vez que as ações do homem homérico são interferidas divinamente, não há sensação de culpa, mas de vergonha devido ao seu destino não sofrer interferência; sendo que, na Ilíada, há sempre uma força ou um estado que atua na consciência humana: o áté, que seria influencia na absorção da razão por meio de três agentes, um deus, a moîra e a Erínia; e o menos, que é sempre ligada à coragem ou ira do homem do génos e modificada por um deus.

Embora haja muitas semelhanças entre as obras como, além do heroísmo e falarem dos mesmos deuses, “o espírito de nobreza, a amizade, o respeito à família e às tradições pátrias”, havia algumas diferenças: a relação homem-deus muda (na Ilíada, o homem não tem livre-arbítrio, sendo considerado um instrumento dos deuses); os deuses são mais tutelares, mais protetores, na Odisseia – na Ilíada, toda atividade psíquica, feita através da psyché, teria sido originada por uma intervenção divina -; e havia uma postura mais ética entre os deuses (imortais) e o homem (mortais).

Em toda a Ilíada, o mundo narrado sempre vai tratar tanto do plano divino quanto do plano humano, sempre colocando as ações destes em dependências dos deuses que sempre influenciam as suas ações, resultado da falta de conhecimento e interpretação do grego arcaico. Entretanto, a consequência de destino humano sempre vai estar ligada a um resultado natural, uma vez que os deuses não podem interferir no fim a que os homens são levados, mas apenas alterar as reações humanas. Há, tanto na Ilíada quanto na Odisseia, essa interferência divina, entretanto no segundo de forma mais atenuada e mais interpretativa pelos gregos. Ulisses (herói dos nóstos), por exemplo, recusa a imortalidade que lhe é oferecida pela ninfa Calipso (Canto V), e o destino humano é sempre ligado a três categorias: moîra (fatum), móros e aisa, categoria nas quais Zeus não pode mudar o efeito das coisas.

Nas duas obras, o sistema político é totalmente ligado à religião; todo rei é julgado e escolhido por Zeus, tornando-se seu represente na Terra – diz-se que toda justiça que ocorre no plano dos mortais tem intervenção divina. Assim, foram criadas, através da deusa Têmis – deusa da justiça -, diversas leis que foram passadas oralmente pelas gerações (sociedade ágrafa): lei da consanguinidade ou da hereditariedade (tanto física quanto moralmente, os erros ou as faltas eram passadas para as gerações posteriores); lei da palavra empenhada ou do juramento (um acordo era firmado oralmente, já que não havia escrita e, então, esse juramento era dissimulado por Zeus); a lei da retaliação, que dava direito a algum génos firmar uma guerra caso tivesse alguém de seu clã morto por outra pessoa de fora, ou seja, seria uma ofensa que geraria ofensa proporcionalmente ao do ofensor, do criminoso; e a lei da hospitalidade (que aparece tanto na Ilíada e na Odisseia, e com muita intensidade) trata o lar de forma sagrada, todo visitante que vai à casa de alguma pessoa também se torna sagrado e é recebido com festejos durante três dias.

Essas leis são muito trabalhadas nas obras, mas na Odisseia vêm com mais intensidade, principalmente, a lei da hospitalidade (que é consuetudinária) por discorrer em vários pontos a “representação da vida doméstica, entremeada de narrações de viagens e de aventuras maravilhosas” , como ocorre com Ulisses que tem desejo de voltar a sua terra natal após longos anos de busca.

Além disso, toda organização política é apresentada de forma igual na Odisseia e na Ilíada: a realeza (wánax ou ánax – rei, considerado soberano para administrar uma cidade superior); Conselho dos anciões – quando os génos estão no tempo de paz – ou de Basileis – quando estão em tempo de guerra; e a Assembleia geral (ágora), citada no Canto II, da Ilíada. A organização social é sempre dividida em três categorias nas duas obras: os génos, que são famílias ligadas por traços de consanguinidade; as fratrias, organizações ligadas por cultos religiosos pelo mesmo deus; e as tribos, que são o conjunto de génos em tempo de guerra e sempre com um herói (Aquiles na Ilíada, e Ulisses na Odisseia) que dava certa estima ao génos. E dentro dessas categorias, ainda uma subdivisão (classes sociais): os nobres, que são os wánax e basileis; os demiurgos, que são artesãos, médicos, arautos, aedos, etc.; e o thétes, que é a classe mais baixa, de homens comuns e livres, e que não possuíam apoio dos poderosos. Por exemplo, a autoridade das leis sempre foi posta a partir de um evento ritualístico, no qual o detentor da palavra teria sempre que segurar o cetro para falar, ou seja, apenas quem tivesse poder poderia se pronunciar – apenas a classe aristocrática. Portanto, sempre os mais poderosos tinham acesso às assembleias.

Tanto na Odisseia quanto na Ilíada, divide-se o enredo em micronarrativas (temas pequenos, como a psyché) e macronarrativas, que vem tratar de assuntos maiores como as reuniões nas assembleias e os assuntos sobre a guerra. Entretanto, esses dois elementos (micro e macro narrativas) estão ligadas a confecção do escudo de Aquiles por Hefesto. Este escudo, ao apresentar duas cidades (uma em paz e outra em guerra), ao retratar as atividades em ambas as cidades, pode ser considerado como a representação do próprio universo, “circundado pelo deus-rio Oceano”. Neste sentido a descrição deste objeto constitui uma micronarrativa (pois é apenas um episódio, mas que retrata o “mundo” homérico em sua totalidade) no interior da macronarrativa (os vinte e quatro Cantos com o relato da ação que enfoca a ira de Aquiles).

Em relação aos feitos heroicos na Ilíada, haverá vários heróis que sempre tentaram ganhar um espaço maior no génos, como Aquiles (que quer ganhar a glória) e Menelau (que luta pela honra); cujos deuses ajudam ora os troianos ora os gregos (caráter bélico do plano divino). Já na Odisseia, há um herói principal, Ulisses, que tenta retornar, por muitos anos, à Ítaca a fim de chegar à civilização e conquistar a glória.

Outro ponto importante que se possa destacar nessas duas obras é a posição feminina na sociedade grega. Na Ilíada, as mulheres eram sempre cativas, escravizadas, como foram Briseide, Criseide; já na Odisseia, eram sempre ligadas ao plano espiritual, como Circe (considerada maga, feiticeira); Calipso, que era uma ninfa imortal; Sereias, que seduziam pelo encanto.

Ricardo Miranda Filho
Enviado por Ricardo Miranda Filho em 05/05/2011
Reeditado em 20/09/2017
Código do texto: T2951429
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