MEMÓRIA E HISTÓRIA NA ESTRUTURA DA OBRA DE BERNARDO ÉLIS

Quem conhece o país, quem tem viajado e estudado os usos e costumes da nossa população do interior, onde ainda se vê bem salientes os traços que distinguem e diferenciam a educação dos tempos coloniais da dos nossos dias, e, o que é mais, dos vícios e virtudes de então, poderá dizer qual o valor desse fluxo moral, quais as condições que nos legou todo esse passado (ALENCASTRE, 1979, p. 21).

A idéia aristotélica de que a literatura encerra mais filosofia e elevação do que a própria história (ARISTÓTELES, 1995 p. 28) nos faz pensar que seja mesmo tênue a linha que divide história e ficção. Muitos autores, principalmente aqueles que estiveram envolvidos com a proposta regionalista e que se revelaram profundamente comprometidos com os valores históricos, no desenvolvimento da literatura como “pintura da cor local”, nem sempre partiram para a elaboração ficcional sem antes empreenderem pesquisas, por meio das quais pretenderiam acentuar com maior veemência o caráter verossímil de suas narrativas. Daí a importância de alguns escritores terem saído a campo, coletando documentos e principalmente construindo registros baseados na oralidade. Nessas situações, a memória teria se apresentado como fonte de imortalidade e a valorização do relato oral, em muitos casos, importaria não apenas pelo testemunho, mas pela forma com que as pessoas revivenciam determinados fatos, permitindo a presença da imaginação acerca de algo que aconteceu ou que, desta ou daquela maneira, poderia ter acontecido (THOMPSON, 1992, p. 184).

Bernardo Élis foi um escritor da estirpe daqueles que se revelaram profundamente comprometidos com os valores históricos. O narrador desenvolvido em sua obra lembra-nos o prosador próprio da oralidade, o guardião da memória popular, cujas marcas deixadas na superfície das páginas revelam o grau de proximidade existente entre o narrador e a materialidade do narrado. Além disso, no conjunto de suas obras, encontram-se registros memoráveis como os lidos em Os enigmas de Bartolomeu Antônio Cordovil, obra que traz a biografia e as contribuições literárias de Antônio Lopes da Cruz, primeiro professor nomeado para Goiás no ano de 1787 (BRASIL, 1982, p. 72), célebre por ter sido, além de professor, o primeiro vate que a província conhecera. Na mesma linha, seguiram-se os relatos que compõem a obra Marechal Xavier Curado, criador do Exército Nacional, um tratado genealógico da família Curado, da qual o autor é parte, onde constam relatos de alguns eventos de relevância histórica.

No gênero romance, no ano de 1956, Bernardo Élis trouxe à luz O Tronco, livro que, de início, seria apenas uma pesquisa sociológica sobre a região fronteiriça da Bahia, tanto em seu aspecto geográfico como social (ELIS, 2000, p. 117). A motivação para que a história viesse a transformar-se em ficção brotaria das diversas entrevistas realizadas pelo autor envolvendo moradores e ex-moradores da região, sobre a participação destes em diversas lutas. Os relatos emocionaram o escritor a tal ponto que este se viu estimulado para transformar aquilo, que antes seria pesquisa científica, em um sólido romance. Por isso, o que conhecemos hoje das tramas desenvolvidas em O Tronco, segundo confidencia o próprio autor, em depoimento colhido pelo professor italiano Giovanni Ricciardi, da Università Degli Studi – relato editado postumamente pela Unicamp com o título A vida são as sobras – teriam tido como suportes os conflitos realistas que, transformados pelo pendor ficcionista do escritor, serviriam como forma de denunciar os modos de vida da população sertaneja, relegada ao descaso e ao completo abandono até meados do século passado. Portanto, o livro é antes um resgate da memória por meio da oralidade, uma tentativa de revelar ao país a existência de um mundo analfabeto e massacrado pela presença da arrogância do mais forte, representado pela figura do coronel, geralmente proprietário de grandes extensões de terra.

Contudo, o que mais impressiona na produção de Bernardo Élis diz respeito a sua obra inaugural. Na esteira de Tropas e boiadas, do também goiano Hugo de Carvalho Ramos, Ermos e Gerais é o livro com o qual Élis inicia sua vida literária e, assim, consolida a posição de Goiás no cenário ficcional brasileiro. No livro, o autor desenvolve enredos que revelam sua capacidade intuitiva; sua potencialidade em construir personagens a partir de um desenvolvido processo de inferência que vê o homem como resultado de um passado esquecido. Povoando um ambiente naturalista e, por isso, bastante verossímil, o homem que Bernardo Élis descreve está embrenhado na paisagem por condição de acarretamento. As figuras normalmente se apresentam como recriações de tipos sociais que o autor desenvolve para mostrá-las às regiões mais desenvolvidas do país, como se pretendesse, a partir daí, arrancar das profundezas do Lethe um mundo que, até então, estaria subtraído da memória do país. Ermos e Gerais, na condição de denúncia de um espaço decadente, habitado por seres igualmente degradados, apresenta-se de maneira insistente como a escrita que quer auxiliar a memória, pois a sociedade brasileira, há muito, não via nem se lembrava do estado que, depois dos auríferos dias de capitania, caiu in oblívius juntamente com a decadência do ciclo do ouro, atividade praticamente abandonada já no primeiro quartel do século XIX.

Os personagens dos contos bernardoelisianos são, portanto, herdeiros desse vazio secular. Como estariam, na concepção do autor, relegadas aos escombros da memória, escondidas na imagem do esquecimento, essas figuras teriam sido desenvolvidas não somente para que o homem recuperasse a imagem dos homens daquele tempo, mas a imagem das gerações descendentes, subtraídas da memória histórica e que – como habitantes das regiões ermas que, assim como os porões, as covas e os buracos, típicas paisagem letéicas, são espaços que simbolizam a ausência de Mnemósyne –, passaram a residir comodamente no esquecimento e este, por sua vez, como imagem, na própria memória (AGOSTINHO, 2001, p. 233). Na esteira de seus ascendentes, as figuras que Élis descreve também eram seres ignorados pela civilização moderna e, pela mesma forma que os antepassados, também habitavam os Ermos e os Gerais, localizados nos confins do estado. Ao recriá-los em sua prosa, é como se o autor juntasse – cogere – diante de nossos olhos aquilo que estaria disperso pelos campos vastos da memória, pois seria do ato de coligir – colligere – no espírito as imagens antes dispersas, que se formaria aquilo que propriamente se chama pensar – cogitare – e que dá vazão para a existência da obra. É, portanto, mais ou menos assim, nessa perspectiva agostiniana de memória e esquecimento, que caminha a produção de Bernardo Élis, como ars memoriae contra o tempus oblivionis.

A estrutura da obra bernardoelisiana, no que diz respeito a Ermos e Gerais, Caminhos e Descaminhos, Veranico de Janeiro, três livros de maior importância do gênero contos que nosso autor teria produzido, revela-nos um escritor que, pelo cogito, revisita o mito da “invenção da escrita”, a fim de reacender a crença de que o signo verbal teria, sim, o poder e a força para apoiar o homem em sua memória. Por meio da obra, tal qual a encarnação de Thoth , o escritor acredita ser capaz de tirar o homem do esquecimento do outro e de si mesmo. O pretexto de narrar conflitos de violência e de morte torna-se, pois, uma maneira de o escritor expor aos olhos do leitor um homem barbarizado pelas condições atribuídas ao meio; homem como produto de uma estrutura arcaica e como consequência da falta de investimentos que arrastou consigo o atraso social e cultural, principalmente para as regiões mais distantes onde predominavam a ruralização do modo de vida, a força bruta e a crendice.

No sentido de perceber a forma pela qual a escrita de Bernardo Élis estaria disposta a auxiliar na memória, devemos compreender que o autor, como profundo conhecedor de sua história, realiza com esta um permanente diálogo por meio de seus enredos. Na leitura de Ermos e Gerais, por exemplo, o leitor perceberá o grau de fidelidade na composição de cada acontecimento, porque o comportamento social dos personagens bernardoelisianos em muito corresponde com o comportamento daquela gente que por aqui ficou, depois de 1822, ano que demarca o fim do ciclo do ouro em Goiás. A obra transforma-se, então, numa espécie de monumento que se abre ao leitor, como os “palácios da memória onde estão os tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda a espécie” (ibidem, p. 224), o que nos possibilita o “contato” com cenas linguageiras marcadas pela expressividade coloquial, símbolo do narrador da oralidade, por sua vez, fiel depositário da memória da coletividade desse mundo analfabeto, nos dizeres de Élis, além de fornecer outras tantas informações nos campos da sociologia, da economia, do folclore, dos usos e costumes do povo caipira (ÉLIS, 2000, p. 114).

No tocante aos contos de Ermos e Gerais, a fim de comprovar a proximidade entre o dado histórico e o artefato ficcional, sublinhamos que os personagens que transitam pelas histórias recriadas por Bernardo Élis seriam resquícios daquela gente de outrora e que mais se assemelham, agora, a “sobras” de um mundo capitalista. A maioria de negros, mestiços, antigos escravos e negros forros, em meio a uma minoria branca que por cá ficou e se dedicou à prática pastoril e à agricultura de subsistência, com a decadência da mineração e sem condições de voltarem às suas origens, passaram a vagar pelas terras devolutas da província, vivendo na mais absoluta miséria. Bernardo Élis, por meio dessa alusão, nos traz à memória essa gente, pois seus personagens, assim como os que foram abandonados pela história convencional, são figuras alheias a qualquer perspectiva.

Há correspondência também na descrição dos vilarejos com aquilo que é descrito pela história convencional. Grande parte é de pequenos aglomerados de velhas casas abandonadas, antigos arraiais de maioria sem nomes, desabitados ou quase despovoados e que seriam reflexos da crise que, em outros tempos, teria fomentado a ruralização da vida e a regressão cultural porque, “sem meios de se manter nos núcleos urbanos, a população migrou para outras Capitanias ou se ruralizou, dispersando-se pelas terras [...] dos sertões, onde se dedicou à sobrevivência” (PALACIN et al, p. 98). Em decorrência disso, onde havia anteriormente vida urbana quase sempre surgia uma paisagem desoladora, resultando numa nova configuração do espaço “de uma população radicada quase exclusivamente nos centros urbanos [...] passa-se a uma dispersão atomizada da população pelos campos” (PALACIN, 1994, p.150). Daí, as cidades, onde anteriormente reinava o brilho e onde a vida era pulsante, passam a ser descritas pela história, já na segunda década do século XIX, como carcaças de civilização.

É bastante provável que os reflexos dessa paisagem de semelhança degradante, percebida pela história convencional, tenham inspirado Bernardo Élis na composição do conto A crueldade benéfica de Tambiú. A trama tem como ambientação o decadente e já esquecido arraial de Amaro Leite, outrora famoso e lembrado pelos períodos auríferos. O conto é marcado principalmente pela presença de um narrador profundamente irônico que, por meio de uma linguagem surrealista descreve o vilarejo em seu declínio como “uma povoação cadavérica do então anêmico sertão goiano”. Assim, ele nos oferece o desolador retrato de “uma meia dúzia de casas, arruinadas, tocaiando o tempo que relembravam [aqui se repete a idéia de buscar na memória desta vez acerca da imagem de espaços esquecidos] glórias mortas, tropel de bandeiras [e] a tristeza irônica das grandes taperas que mostravam o rico fastígio burguês, gordo e fácil daqueles tempos de Brasil curumim” (ELIS, 1987, p. 80). Mais ou menos desta mesma forma, repetem-se os ambientes das demais narrativas bernardoelisianas. E se por acaso o ambiente reconstruído na ficção não é um pequeno e anônimo vilarejo enfraquecido pela escassez do capital, é a imagem de seres habitando os recônditos dos campos bravios.

Nessa mesma linha de raciocínio, o leitor encontrará também certa similitude no que concerne às características dos personagens desenvolvidos por Bernardo Élis com aquelas que a história regional nos apresenta. A vida vadia e miserável a que se submetera o homem, na sua condição de sobra das minas da velha capitania, em muitos casos, traduziu numa verdadeira indianização de grupos isolados (PALACIN, 1994, p. 150). Os efeitos do abandono teriam acarretado em mudança de costumes daquela gente e a maioria dos homens, então, passou a viver na inatividade e na preguiça, pois

[...] os brancos [os poucos que por cá ficaram] não trabalhavam por tradição imemorial e privilégio de cor; os mulatos recém-saídos da escravidão, queriam gozar da nova liberdade e se diferenciar dos escravos seus antigos companheiros, aproximando da forma de vida de seus senhores na única coisa em que podiam imitá-los: a ociosidade. Trabalhavam, portanto, o indispensável para não morrer de fome. O mesmo faziam os negros forros; se, como faiscadores [catadores de fagulhas de ouro nas encostas dos córregos], num dia conseguiam o necessário para a alimentação da semana, descansavam o resto dos dias (ibidem, p. 151).

O modo de vida transcrito acima, que reflete bem o estado de prostração humana e a impotência social vivida pela maioria dos sertanejos, é algo fartamente percebido na leitura de diversas narrativas de Bernardo Élis. Nequinho, por exemplo, protagonista do já citado conto A crueldade benéfica de Tambiú, que vivia na região das antigas e degradadas minas de Amaro Leite, é descrito como um sujeito magro, de cara chupada, de um moreno encardido de papel chamuscado e que, além de tudo isso, segundo o narrador, seria “um tipo preguiçoso que vivia da difícil profissão de não fazer nada” (ELIS, 1987, p. 80). A carência de iniciativa é percebida também na imagem que o leitor recupera de Quelemente, de Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá, cuja impotência arrastaria a família “dos Anjos” para o seu triste fim, depois de 40 anos de renovados compromissos de desabitarem uma barranca do Rio Corumbá.

A história regional revela-nos, ainda, que o estado teria passado por um profundo marasmo econômico devido a carência de uma outra atividade que igualmente pudesse substituir a antiga prática exploratória das minas. A agricultura não teria sido levada a sério porque os habitantes do lugar seriam acentuadamente preguiçosos e trabalhavam apenas o limite para não morrerem de fome. Esses dados, que marcam certo determinismo por parte da história, não escapam aos olhos de Bernardo Élis que, a fim de recuperar com extrema fidelidade esse modus vivendi, elabora, então, a figura do velho Januário, de A mulher que comeu o amante, pois este, conforme nos oferece o narrador, vivia no limite da caça e de uma pequena roça improvisada. A cada ano, habitando às margens de um afluente do Santa Tereza, ao pé de montanhas azuis, “Januário derribava um taco daquele mato diabolicamente ameaçador e fazia sua rocinha. No mais era só armar mundéu para pegar quantos caititus, quantas pacas, quantos bichos quisesse” (ibidem, p. 74). O conto ilustra os dias monótonos vividos por Januário e sua amante Camélia que, naqueles “caixa-prego”, se relegaram a uma existência primitiva, onde passaram a vestir farrapos e a não comer sal. O que se estabelece na ficção em muito corresponde com a história, pois alguns relatos dão conta de que, à época, alguns agricultores teriam chegado a um tal estado de penúria que passavam meses comendo alimentos sem sal, por simplesmente não poderem comprá-lo (SAINT-HILAIRE, apud PALACIN et al, p. 122). A presença do elemento trágico na ficção bernardoelisiana dá-se, coincidente e curiosamente, pelo desejo de comer sal que do qual Camélia nutria-se, o que nos faz pensar que a obra não tenha sido apenas fruto da coincidência. A isso, somam-se, é claro, as condições de vida nas quais se encontravam os personagens, porque, durante toda a narrativa, fica visível outro grande desejo da mulher, que seria o de romper com os dias monótonos promovidos pela distância esquecida desse mundo profundamente degradado.

A questão da incontinência de alguns personagens, o trato com a figura feminina são coisas que, resguardadas as devidas proporções, aparecem concomitantemente na história e na ficção. No período decadente da capitania, as mulheres eram reduzidas praticamente ao papel de fêmeas (PALACIN et al. p. 190). Eram, portanto, mulheres grosseiras, sobre as quais não seria nenhuma novidade acrescentar que se tratasse de gente submissa e de pouca instrução, como são também as mulheres do universo bernardoelisiano. A estes argumentos emparelhamos alguns contos como Pai Norato, onde está bem visível esse caráter utilitário da figura feminina. Só para se ter uma noção, na narrativa, esta se dá a conhecer apenas pelo substantivo “mulher”. Vítima de assédio por parte do padrinho do marido, quando reclama, sua voz é algo inaudível aos ouvidos do esposo. E mesmo depois de ter o filho e o marido mortos, a mulher vê-se obrigada a manter relações com o assassino, por puro gesto de submissão social.

Com base nos exemplos da história de abuso contra criadas, cujos fatos ameaçam apagar-se da memória, Élis nos apresenta Joana de A Virgem Santíssima do quarto de Joana. A jovem engravida de Dedé – mais tarde doutor Dedé, filho do cel. Rufo – e, como prêmio, vê-se obrigada a casar com Bento. Este, por sua vez, era o coveiro da cidade, uma figura monstrenga que teria povoado sua assustadora infância, porque assim lhe dizia uma preta que lavava roupa para a casa do coronel:“– o coveiro come menino no sumitério”. O final da história é, a um só tempo, espantoso e desolador, pois a loucura e morte de Joana, diante do riso displicente de doutor Dedé, traz à memória a insignificância daquela existência. Ainda nessa mesma linha de sexo e violência, Bernardo Élis elabora o conto O caso inexplicável da orelha de Lolô, que relata a história de Branca, a prima libertina que Anízio trancafiara num porão até a morte como forma de puni-la por não lhe ter correspondido aos desejos. A descrição do narrador é de uma completa barbárie, pois Branca morre, seus restos são mantidos ali e visitados periodicamente por Anísio que a tudo revivia com certo prazer masoquista. O conto tem como temporalidade a noite e, como ambiente, o porão, que são imagens simbólicas, tempo e espaço do esquecimento.

Por último, não deveríamos esquecer do conto A enxada, porque nada nos parece mais tributário da história do que a condição indigente de Supriano, mulher e filho, frutos do esquecimento social e humano. Piano era negro e, por essa razão, levava uma vida de opressão, fato que o privava de possuir bens. Isso, aliás, teria contribuído para que ele, no decorrer de sua existência miserável, contraísse dívidas “impagáveis” junto ao delegado da região, porque, com este, assim dizia o narrador, “ninguém era homem de acertar contas” (ELIS, 1987, p. 40). E como o delegado, por sua vez, possuía uma dívida contraída junto ao Capitão Elpídio Chaveiro, com o propósito de quitá-la, entregou a seu serviço o negro Piano, a fim de que este lhe preparasse uma roça. Neste acerto, ambas as contas pareciam liquidadas, caso não surgisse pelo caminho o fatídico problema de Piano não possuir enxada para realizar o serviço, nem ter como contar com providência de alguém que pudesse oferecer-lhe a ferramenta como empréstimo. O fato, que provocou uma extensa peregrinação, acabou determinando o fim do personagem, quando este concluía o plantio utilizando como enxada a própria mão, que “tafulhava” contra o chão molhado, “desimportando de rasgar as carnes e partir os ossos do punho” (Ibidem, p. 57). Piano era, pois, um ser invisível à história.

No entremeio dos diversos discursos reverberados pela leitura de A enxada, está a crítica desferida contra o estado de atraso em que viviam as pessoas dos ermos goianos, pois estas se viam assoladas pela rudeza, primitivismo, ignorância, doenças, isolamento social, coisas que contribuíam para a perda da memória, porque o homem bernardoelisiano, de fato, compõe esse universo esquecido pela civilização brasileira contemporânea (ELIS, 2000, p. 114). Entretanto, o diálogo estabelecido pela ficção e a relação deste com a história convencional rasga os véus descortinando o passado e se articula por meio de um discurso profundamente irônico, porque, muito embora a história desse conta de que o negro, em outros tempos, tivesse ganhado sua liberdade, a condição de Supriano, naquele momento, era reveladora de uma realidade bastante adversa. Naqueles dias de miséria, em que o capital escassamente circulava por aquelas bandas, o negro fora, para seu triste fim, impiedosamente convertido em moeda de troca, numa prática comum entre os senhores endividados do período escravocrata.

No arremate de nossa compreensão sobre as contribuições de Bernardo Élis para os estudos históricos, ou em situações proporcionalmente inversas, gostaríamos de relembrar o que está escrito ainda nas primeiras páginas deste estudo. O que normalmente se vê na produção bernardoelisiana, sobretudo em relação à consagrada trilogia de contos Ermos e Gerais, Caminhos e Descaminhos, Veranico de Janeiro, é, pelo resgate da memória, uma tentativa de se encenar à sociedade aquilo que a natureza produziu, quase em silêncio, em mais de um século de esquecimento, num ambiente aparentemente refratário à existência do homem comedido e disciplinado. A arrogância, o atraso, a violência, a pobreza descomedida, a letargia, o homem inculto seriam, pois, acarretamentos desse mundo esquecido. Neste sentido, a obra consagra-se, portanto, como fruto da experiência mnemônica, que pretende cumprir a finalidade de provocar no homem a reminiscência das coisas ausentes, porque se de Lethe provém o esquecimento, alethéia não seria outra coisa senão a conservação da memória (PLATÃO, 2004, p. 44). Neste raciocínio, teimar no esquecimento, histórico e literário, seria, então para o homem, o infeliz abandono da verdade que provém do conhecimento, porque o esquecimento constitui para a alma o erro essencial, a sua própria enfermidade, já que não seria nada mais que a ignorância (VERNANT, 1973, p.82). Neste sentido, a arte de Bernardo Élis pretenderia nos fazer recordar, porque provém da recordação a interação entre as coisas do tempo presente e as coisas do tempo passado. Seria, portanto, da parte do autor, uma tentativa de ligar passado e presente, compondo esse vazio secular. Desta maneira, o presente aparece reconstruído na obra em função do passado, da mesma forma que o passado estaria explicado em função do presente que o autor recria e nos oferece no plano da ficção.

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