O ESPAÇO E O SUJEITO REGIONAL: imagens do sertão e do sertanejo na literatura e no cinema

O ESPAÇO E O SUJEITO REGIONAL: imagens do sertão e do sertanejo na literatura e no cinema

Ilza Ribeiro Gonçalves

Gilmei Francisco Fleck

Resumo:

O presente trabalho consiste em reflexões sobre a participação no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE (2009-2011), no qual se objetivou realizar, junto aos educandos do terceiro ano do Ensino Médio uma análise da obra literária brasileira Os Sertões (1975), de Euclides da Cunha que, em seu momento histórico, retratou as condições socioeconômicas e culturais da população de nosso país, valendo-se do viés da literatura. A obra selecionada foi relacionada ainda a outras tais como Belo Monte (1997), de José Rivair Macedo e Mário Maestri, A Guerra do Fim do Mundo (2008), de Mario Vargas Llosa que tratam da mesma temática e, também, com o cinema, com abordagens ao filme “Canudos” (1997), de Mario Rezende. A partir das comparações propostas buscou-se aproximar a leitura literária do cotidiano dos jovens que estão cursando o Ensino Médio, a fim de estabelecer uma nova relação destes com a leitura e, principalmente, com as possibilidades de relação entre a literatura e a realidade histórica. Dessa forma pensamos ser possível ampliar as chances dos alunos recriarem os sentidos expressos nos textos literários e assim ampliarem seu potencial criador e questionador da realidade; uma experiência vivenciada e que relatamos nesse texto.

1 Introdução

O ensino da literatura, na atualidade, pode apoiar-se nos pressupostos teóricos da Estética da Recepção, tomando-se como base, por exemplo, as colocações de Iser (1979) e Jauss (1979), e da Teoria do Efeito, segundo Bordini e Aguiar (1993), conforme expressam as DCEs (2008, p. 74). Estas teorias buscam formar um leitor que é visto como um sujeito ativo no processo de leitura, tendo voz em seu contexto, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de subjetividades que se expressa pela tríade obra/autor/leitor, por meio de uma interação que está presente na prática de leitura. A escola, portanto, deve trabalhar a literatura levando em conta a sua dimensão estética.

Trata-se, de fato, de uma experiência que envolve a relação entre o leitor e a obra, e nela a representação de mundo do autor que se confronta com a representação de mundo do leitor, no ato ao mesmo tempo solitário e dialógico da leitura (Eagleton,1983 p. 105). Aquele que lê amplia, desse modo, seu universo pessoal, além de ampliar também o universo da obra a partir da sua experiência cultural. Conforme se menciona no texto das Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental e Médio (2008, p. 58), o trabalho com a literatura em sala de aula conta com a importância que o processo de leitura representa na caminhada de aprendizagem do educando.

A literatura, vista como uma manifestação cultural, é um dos grandes monumentos humanos que guarda em si marcas e elementos que, organizados no fazer estético, representam os acontecimentos sociais ao longo dos tempos e, por isso, pode servir de “porta voz” de muitos saberes.

Segundo D’ávila (1964, p. 21), determinados acontecimentos, comportamentos, manifestações ideológicas, políticas, sociais e econômicas de tempos e espaços se enraízam profundamente no texto literário. Assim sendo, o estudo desse tipo de texto permite ao leitor observar essas peculiaridades do passado e relacioná-las com o presente, a fim de melhor comunicar-se ou interagir em seu meio de convívio. Então, a obra literária tem importância quando usada como uma espécie de jogo que simula os conflitos do mundo empírico e convida o leitor aos desafios do ato de ler. Ler literatura, nesse sentido, é imergir num universo imaginário organizado, carregado de pistas que o leitor deve seguir a fim de atribuir, dentro de seu universo existencial, um sentido peculiar.

Vê-se, pois, que a literatura é importante no currículo escolar: o cidadão, para exercer plenamente sua cidadania, precisa apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se usuário competente desse modo de uso da linguagem, mesmo que nunca vá escrever um livro, mas porque precisa ler e compreender muitos, de diferentes áreas, ao longo da vida. No contexto escolar, a questão da leitura, seja do texto literário ou não literário, exerce um papel crucial, uma vez que permite ao aprendiz observar comportamentos humanos aquém de seu tempo e, posteriormente, relacioná-los ao seu próprio contexto de vida. Além disso, também propicia a esse sujeito a chance de embasar-se em discursos já construídos ao longo da existência humana e, a partir desses, reinterpretar outros discursos que o cercam; interagir com eles e modificá-los, a fim de constituir-se como sujeito capaz de compreender e melhor conviver na sociedade da qual faz parte. A literatura, portanto, possibilita aproximar saberes ou vivências distanciadas pelo espaço ou pelo momento histórico. Então,

[...] quando a leitura é entendida como interlocução, tal qual outras atividades de linguagem, só que à distância, então, aqueles aspectos que diferenciam a interação oral da escrita e que permitem um enfoque que toma o texto apenas como um conjunto de palavras, passam a ter uma relevância menor. Tanto o texto oral, quanto o escrito são produtos de uma intencionalidade, são escritos por alguém, com alguma intenção de chegar aos outros para informar, persuadir influenciar, tal qual acontece quando falamos, evitaremos perder de vista o texto por causa das palavras que o veiculam. (KLEIMAN, 1996, p. 23).

É importante observar que a autora não nega as diferenças entre texto oral e escrito, mas nos leva a atentar para o tópico principal que é a questão da intencionalidade do ato comunicativo, isto é, por que se escreve? Para quem se escreve? Ao assumir a literatura a partir deste viés, os elementos que diferenciam a fala da escrita passam, então, a ser menos importantes. Deste modo, a literatura consegue ter sustentação própria para sua existência, ou seja, pode, no meio em que se constitui, fazer sentido para o sujeito que dela se apropria, uma vez que possui as mesmas capacidades interlocutivas de um texto oral, por exemplo. A diferença é que a literatura possui uma determinada distância entre autor e o leitor, pois, na maioria das vezes, esses dois sujeitos não ocupam o mesmo espaço social no mesmo momento histórico. É por isso que o estudo literário concomitante ao estudo histórico se faz necessário.

1.1 História e Literatura: construção de discursos

A relação entre a literatura e a história, segundo expressa Fleck (2005, p. 37), existe já desde a Antiguidade, desde os tempos mais longínquos de que se têm notícias, segundo testemunham isso as grandes epopeias. Essa relação pode ser sintetizada em três grandes períodos:

a) União: refere-se ao período da Antiguidade em que não havia separação entre as áreas. Segundo Mata Induráin (1995, p. 28), uma verdadeira consciência histórica ainda não existia naquele período, permitindo, pois, uma mescla entre a poesia e a verdade; fato que era perfeitamente aceitável na época.

b) Ruptura: ocorre na metade do século XIX, criando áreas diferentes: a literatura como arte e a história como ciência.

c) Inter-relações: após o período de estabelecimento das fronteiras entre história e literatura, passou-se a observar as fronteiras permeáveis que sempre existiram entre essas áreas, já que ambas, de acordo com Hutcheon (1991), Prieto (2003), White (1996), entre outros, são construtos de linguagem, discursos sobre o passado. Ambas interagem e se entrosam como formas de linguagem, segundo Nunes (1988, p. 11), e se interpenetram pelo manejo do tempo e pelas técnicas narrativas. Sob esta perspectiva é que concebemos as atuais relações entre a literatura e a história e é essa visão que perpassa as leituras que propomos do passado histórico pela ficção junto aos educandos do Ensino Médio.

Estar atento a essas conexões entre história e literatura contribui para a desconstrução de saberes cristalizados por um discurso hegemônico que sempre impôs sua versão dos eventos ocorridos ao longo de nossa história. Tratar dessa relação em sala de aula, hoje, faz-se necessário a fim de evidenciar que o discurso historiográfico é, da mesma forma como o ficcional, constituído a partir de signos linguísticos e interpretações destes. Portanto, o registro que temos do passado pela história é um discurso constituído por um determinado sujeito – ou grupo de sujeitos – influenciado pelas circunstâncias sócio históricas e culturais sob as quais sua tarefa foi realizada.

Diante desse fato, é, pois, lícito imaginar também outras tantas possíveis versões para os acontecimentos que formam parte do imaginário coletivo, já que o registro oficial destas ocorrências marcantes do passado foi efetuado – em se tratando da história da América, em especial –, a princípio, pelos representantes das metrópoles colonizadoras e, mais tarde, por um reduzido número de cidadãos pertencentes às classes que possuíam o poder dominante e esta teve condições de fazer prevalecer um discurso que foi construído segundo os ditames de seus interesses.

O discurso ficcional contemporâneo, entre outras práticas que possui, busca revelar as possibilidades de outras interpretações plausíveis do mundo real, a fim de legar ao homem a capacidade de melhor compreender a sociedade na qual está inserido, bem como, por meio da apropriação do conhecimento que revela a construção dos discursos, interagir com ela de forma mais consciente e crítica.

Portanto, é preciso levar para a sala de aula as novas concepções e entendimentos sobre a relação entre literatura e história na contemporaneidade. Pode-se, assim, abordar em sala de aula a questão de que por meio do texto literário é possível, hoje, encontrar outras leituras do passado, criadas a partir da imaginação, calcada nas possibilidades de registro dos fatos acontecidos por meio de perspectivas excluídas dos registros oficiais.

É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos por meio dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. Desse modo, as visões literárias do passado podem auxiliar o educando a ampliar seu espaço de imaginação e a exercer o direito de pensar em uma história construída não apenas sob a visão dos dominadores. O ensino da literatura pode, assim, contribuir de forma relevante para a formação da cidadania; para o exercício da liberdade com responsabilidade.

1.2 O romance histórico

O romance histórico é um tipo de romance que se utiliza da história e da ficção, a fim de reconstruir, ficticiamente, acontecimentos, costumes, personagens e fatos históricos. Alguns exemplos de romance histórico são: Ivanhoé (1819), de Walter Scott; Os Três Mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas; Guerra e Paz (1865), de Leon Tolstói, Eurico, o Presbítero (1878), de Alexandre Herculano, como cânones europeus. No Brasil temos, por ocasião do Romantismo, com José de Alencar: O Guarani (1857) e Iracema (1865); A retirada de Laguna (1867), de Visconde de Taunay e O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, entre outros. Já na contemporaneidade, podemos mencionar, como exemplos dessa narrativa híbrida, as obras; O Bruxo do Contestado (1996), de Godofredo de Oliveira Neto, Terra papagalli (1997); de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta; A Casa das Sete Mulheres (2002), de Maria Adelaide Amaral. Desmundo (2005), de Ana Miranda, além de muitos outros. Entre os textos híbridos de história e ficção mais importantes da contemporaneidade destacam-se as diferentes modalidades de romance histórico pela sua releitura crítica do passado, antes registrado apenas pelo discurso historiográfico. Promover, no âmbito escolar, a leitura e análise desse gênero literário contribui, de forma significativa, para desmistificar crenças em “verdades únicas” sobre os eventos do passado, já que essas podem adquirir diferentes perspectivas quando vistas de diferentes ângulos e extratos sociais (FLECK, 2006a).

De acordo com a concepção de Bakhtin (1981, p. 28), “a linguagem não é algo neutro que pode passar fácil e livremente para a propriedade particular das intenções do falante. [...]. Apropriar-se dela, forçá-la a se submeter às próprias intenções e inflexões é difícil e complicado”. Isso também acontece na compreensão da construção do discurso da história que, devido ao processo metodológico utilizado nessa construção, garante-lhe cientificidade e um tom de “veracidade” o qual é menos questionável que o discurso ficcional, artístico.

O romance histórico aparece, conforme expressa Fleck (2008), como palco de um dos mais significativos encontros entre literatura e história. Nele se gera uma espécie de “leitura de visões sobrepostas” (FLECK, 2006b), além de representar um dos mais polêmicos debates da pós-modernidade pelas atitudes questionadoras das verdades hegemônicas reelaboradas, de maneira mais contundente, especialmente, no chamado novo romance histórico latino-americano.

De acordo com esses registros,

[...] as profundas mudanças sofridas pela humanidade sempre encontraram na literatura um espaço de “convalescença” no qual crenças, valores, ideais, sonhos e frustrações foram tratados e retratados. Assim, o romance tornou-se um dos espaços mais importantes em que os anseios, sonhos, esperanças, desilusões e inconformidades passaram a ser expressos em sua mais íntima e profunda essência. À medida que algumas de suas vertentes iam definhando, outras, lenta, mas progressivamente, surgiam, num complexo e intrincado processo de auto renovação. Deste modo, as transformações históricas implicaram, naturalmente, alterações nas formas com que as ações humanas foram e ainda continuam sendo registradas e analisadas pela arte romanesca. A sensibilidade do escritor frente a tais alterações constitui o âmago mesmo do fazer literário, que só encontra o desejado respaldo do público-leitor quando o artista chega a atingir tal grau de intimidade com os sentimentos desencadeados pelas transformações históricas no homem, que as suas inconformidades e desejos latentes passam a ser os mesmos dos leitores que, pelas suas palavras, se reencontram na obra. (FLECK, 2005, p. 52).

O homem é inconformado por natureza, está sempre na busca de satisfazer suas necessidades de viver bem, fazer sua história e demarcar seu território. Por isso recria e deixa no seu fazer literário suas marcas; uma vez que sendo sujeito histórico é capaz de se mostrar, na obra, por meio de ações, atitudes, desejos de mudar o rumo de sua história, seus descendentes. Na literatura se podem comprovar as grandes transformações da humanidade, por meio de seus feitos, fatos históricos, lutas pela sobrevivência. Sendo assim, as transformações históricas implicam, naturalmente, na alteração das formas com as quais ações humanas são registradas. O homem vem sempre sendo seduzido pelas narrativas que, de maneira simbólica ou realista, direta ou indiretamente, falam-lhe da vida a ser vivida ou da própria condição humana. Assim, a literatura, ao se valer do ato de contar, perpetua a liberdade e procura manter a vida, especialmente porque se compromete de levar a fantasia, o sonho e o encanto da narrativa ao leitor.

1.3 Literatura e cinema na escola

O estudo sobre a relação do cinema com a literatura é um campo recente de investigação. As primeiras pesquisas datam da década de 60, do século passado, e centram-se na área da literatura comparada. Vieira-Silva (2009, p. 5), ao analisar as relações entre as duas artes, recorre a Gonçalves (2000), para mencionar que “a aproximação entre o texto literário e o texto fílmico estaria na capacidade idêntica de contar, de narrar uma história”. Guardadas as suas especificidades, tanto a literatura quanto o cinema se organizam em torno de um discurso que é manipulado por um narrador com função de organizar e combinar personagens que desenvolvam ações num determinado tempo e espaço.

Nas escritas de Vieira-Silva (2009, p. 05) há também a afirmação, apoiadas nos estudos de Johnson (1982) de que ambas as artes, produção fílmica e literatura, tomam os olhos como ponto de entrada na consciência ativa do observador, mas, de modo diferente: a literatura pela escrita, palavras que se combinam em frases, que apelam para a imaginação do leitor e o cinema por uma amplitude maior de recursos, planos que se combinam em sequência, que apelam para o sensorial.

Assim, ao aproximarmos literatura e cinema, encontraremos muitos pontos de contato entre estas duas atividades artísticas que têm como principal objetivo a intenção de “prender” o leitor/espectador pela maneira como ambas se desenvolvem: “o andamento da narrativa”. Nesses termos seria ingenuidade tentar estabelecer comparações qualitativas entre uma produção fílmica e a obra literária que lhe serviu de base, porque o texto literário se configura em uma obra e o filme, em outra. Na produção fílmica teríamos, portanto, uma leitura possível da obra literária que a motivou. Além disso, fica claro que não se deve valorizar uma em detrimento da outra.

O trabalho de análise da relação entre cinema e literatura, especialmente se estas obras de arte servem ao ensino, precisa levar em consideração que o resultado da produção fílmica é uma leitura que o adaptador, ou roteirista, ou diretor fez da obra literária e nunca a obra literária em si. Ou seja, a produção fílmica pode apresentar apenas um dos aspectos motivados pela obra literária e que o realizador da versão/leitura achou mais conveniente para ser mostrado naquele determinado momento, naquela determinada situação e daquela determinada maneira.

É necessário que o uso da produção fílmica em sala de aula, como um recurso pedagógico, seja visto como um artefato que possui ideologias políticas, morais, sociais e econômicas bem definidas e que atende a interesses particulares. Assim, se os espectadores, em especial os estudantes em formação, não tiverem orientações nesse sentido, aceitarão o que se mostra como a única possibilidade de verdade.

1.4 Leituras em prática – relato de experiência

As propostas de ações elaboradas ao longo da construção do projeto “O espaço e o sujeito regional: imagens do sertão e do sertanejo na literatura”, valeram-se da pesquisa bibliográfica para embasar processos metodológicos voltados à prática de leitura, às teorias que sustentam o ato de leitura em si, ao ensino de literatura na escola e, nesse contexto, às especificidades do texto literário, particularmente o gênero romance histórico ou textos híbridos de história e ficção. As atividades elaboradas foram pautadas nas instruções das Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para a terceira série do Ensino Médio (2008), que orientam o trabalho do professor, principalmente no que se refere ao entendimento do “discurso como prática social”. A busca, pela revisão bibliográfica, de conhecimentos básicos sobre Literatura Comparada, permitiu também utilizar outras linguagens, entre elas a cinematográfica, como material de leitura e referência ao assunto estudado.

O norte da implementação pedagógica desse projeto deu-se a partir de uma Unidade Didática, desenvolvida com base na abordagem ao Romance Histórico, com uma delimitação clara de promover o estudo de textos híbridos de história e ficção, além de cinematográficos que tratam da questão do conflito político ocorrido em Canudos (sertão da Bahia, 1896), a fim de subsidiar jovens e adultos para o domínio de competências de leituras e análises necessárias à formação de um leitor crítico, proporcionando-lhes o contato com perspectivas distintas daquelas postas pela historiografia oficial sobre o passado em questão. Buscou-se desenvolver atividades que promovessem a leitura da literatura, a qual versa sobre a história do nordeste brasileiro, especificamente as referências encontradas na obra Os Sertões (1975), de Euclides da Cunha, a fim de tornar possível o entendimento dos diferentes aspectos da realidade sócio histórica do nosso país. Esse material contemplou, ainda, a leitura dos romances Belo Monte (1997), de José Rivair Macedo e Mário Maestri; A Guerra do Fim do Mundo (2008), de Mario Vargas Llosa; e o filme “Canudos” (1997), de Mario Rezende, como meios de expandir os horizontes de leitura desse passado de nossa história.

A apresentação à direção, equipe pedagógica, aos alunos da Unidade Didática constituiu o início da implementação pedagógica. Cada aluno recebeu uma cópia do material para que pudesse realizar as atividades e participar ativamente das discussões. A partir daí, as leituras foram sendo feitas e as atividades propostas realizadas. Notou-se, porém, que à medida que as leituras exigiam intertextualidades com outros momentos históricos os alunos precisaram aprofundar as pesquisas e buscar leituras em hipertextos para que a compreensão atingisse um nível adequado às perspectivas formuladas. E foi extrapolando os limites dos textos apresentados que todas as atividades previstas na Unidade Didática foram realizadas pelos alunos.

A partir das leituras propostas, muitos debates acalorados sobre episódios recentes da história brasileira se deram, envolvendo questões das mais diversas, mas, principalmente, movimentos sociais, ocuparam espaço significativo das aulas de Língua Portuguesa e Literatura. Tornou-se interessante, nessa oportunidade, conduzir as atividades para a prática de produção de texto dissertativo/argumentativo, pautado em uma postura crítica frente aos problemas sociais apresentados. Essa atividade oportunizou ao aluno entrever as relações dialógicas presentes no texto, ao identificar a articulação das vozes que se materializam, apresentando as condições de produção. Em seguida, cada aluno leitor teve a oportunidade de escrever um comentário interpretativo/crítico sobre a obra de Euclides da Cunha, que confrontou posições e buscou sentido pelo exposto. Após essa atividade confeccionou-se um folder para ser entregue na Feira do Conhecimento, promovida pelo NRE de Cascavel sobre a obra Os Sertões (1975), de Euclides da Cunha, no Projeto “Viva Escola”.

Baseados nessas premissas buscou-se, ao promover a leitura de trechos dos romances supracitados, estabelecer uma comparação entre as obras apontadas, a fim de desconstruir verdades hegemônicas, ditadas pela memória historiográfica, que diz respeito a conflitos políticos ocorridos entre uma classe dominante e outra marginalizada. Fatos esses ocorridos no nordeste brasileiro, no final do século XIX, e que ingressaram na história oficial brasileira sob a denominação de “Guerra de Canudos”.

Esse trabalho contribuiu para uma melhor conscientização do educando quanto ao fato de que a identificação de condições sociais, culturais e familiares doentias desta classe marginalizada, bem como características comportamentais perniciosas daquela dominante, foram, e são, importantes para a construção da memória nacional no que concerne aos motivos, as implicações, os interesses políticos e a corrupção envolvida no espaço que existe entre a Proclamação da República e o conflito em Canudos, no final do século XIX.

É nesse espaço, suscetível a interpretações, leituras, questionamentos, análises de intenções discursivas que o estudo detalhado do gênero romance histórico fez-se necessário. Euclides da Cunha, na obra Os Sertões (1975), não apenas descreveu fatos históricos do conflito em Canudos, mas, sobretudo – ainda que partindo do paradigma da superioridade da civilização e de pressupostos oriundos do determinismo geográfico e racial que induziam a ver os sertanejos como subdesenvolvidos – procurou expressar-se como se fizesse parte daquela cultura sertaneja, isto é, um “bárbaro” entre os “bárbaros”, um “primitivo” entre os “primitivos e não apenas o representante de uma classe superior urbana. Essa capacidade de Euclides da Cunha em se posicionar como autor capaz de perceber as peculiaridades de seu personagem em foco (o sertanejo), justifica o estudo literário de obras como, Os Sertões (1975), de Euclides da Cunha, Belo Monte (1997), de José Rivair Macedo e Mário Maestri, A Guerra do Fim do Mundo (2008), pois se tratam de textos híbridos nos quais confluem a ficção e o passado histórico.

Tais textos literários podem fundamentar uma análise mais detalhada de o porquê da declaração na obra Os Sertões de que “O sertanejo é antes de tudo um forte” (CUNHA, 2006, p.146), ou ainda, o porquê da declaração de que “Canudos não se rendeu” (CUNHA, 2006, p. 597).

De acordo com a visão exposta por Silva (2001, p. 33), desde a época da Revolta de Canudos até os dias de hoje predomina a ideologia do argumento do fanatismo religioso e político e estereótipos classistas e racistas que projetam uma imagem negativa dos sertanejos e de seu líder, Antônio Conselheiro, como ‘bandidos’, ‘fanáticos’, ‘agressivos’. Ideologia esta utilizada para justificar o massacre de Belo Monte (sertão da Bahia) feito pelo exército brasileiro entre 1896 e 1897 como sendo esta uma comunidade monarquista.

A leitura dos trechos da obra Os Sertões (1975), de Euclides da Cunha permitiu, por exemplo, que o aluno observasse traços de variação discursiva por parte do autor, este teria chegado a Canudos com uma visão de povoado, bem como do povo, formada a partir de conceitos pré-estabelecidos por membros da classe dominante envolvida com a Proclamação da República. Paulatinamente, conforme o contato com Canudos se sucedia, percebe-se, que o próprio Euclides começa a perceber a manipulação política, a dizimação de um povo até então incapaz de compreender as particularidades políticas do sistema monarquista ou republicano (BALEZZI, 2008). Fato que pode ser confirmado, pois,

[...] Euclides da Cunha foi a Canudos como correspondente de guerra do jornal Estado de São Paulo. [...] Foi com muitas ideias pré-concebidas sobre o movimento de Conselheiro. Ouvia rumores de que o líder dos sertanejos imprecava contra a República e acreditava que o movimento era a manifestação de um bando de fanáticos monarquistas. Tal impressão dissolveu-se tão logo chegou ao local do conflito. O estado lamentável tanto do exército como principalmente, da combalida – ainda que perseverante – tropa de esfarrapados esqueléticos soldados de Conselheiro o aterrou. (BALEZZI, 2008, p. 35).

Em A guerra do fim do mundo (2008), no entanto, Mario Vargas Llosa elabora sua narrativa a partir da leitura da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, e, também, a partir dos dados coletados na época em que esteve na Bahia para estudar o movimento. O estudo da obra de Vargas Llosa permitiu, por exemplo, que o aluno, traçasse um paralelo entre as posições discursivas adotadas em ambos os textos. Vargas Llosa, devido ao fato de não ser brasileiro, pode escrever de forma mais detalhada a respeito do conflito em Canudos, uma vez que sua visão do movimento não teria sido influenciada pelo discurso da classe dominante contemporânea ao movimento, assim como aconteceu com Euclides.

Na obra Belo Monte (1997), os autores partem de uma perspectiva histórica, pois são historiadores. Por isso, o estudo de trechos dessa obra pode levar o aluno a perceber outra visão do conflito em Canudos que não mostrada nas duas obras anteriores, uma vez que Belo Monte (1997) foi escrito fora da pressão política que a obra Os Sertões sofreu, por exemplo, porém foi escrito em meio a outro contexto sócio histórico que é o auge dos conflitos pós-república, contexto este permeado de intenções políticas.

Por fim, o estudo de trechos do filme “Canudos” (1997), de Sérgio Rezende, levou o aluno a perceber que a produção cinematográfica é outra linguagem que, por sua vez, pode fazer seus próprios recortes do passado histórico e apresentar uma leitura dos eventos – retratados principalmente pela exploração das imagens e do som. Estas visões do passado, por sua vez, requerem, da mesma forma que a literária – construída a partir da exploração dos signos linguísticos – uma análise detalhada a fim de perceber, interpretar e interagir com os discursos contidos nele, já que também revelam a intenção de um autor produtor e se expressam por meio de diferentes perspectivas.

1.5 Considerações finais

Diante das novas ferramentas de comunicação, do predomínio do signo icônico, dos desafios que a literatura enfrenta no mundo contemporâneo, a escola precisa reavaliar as atividades que desenvolve para incentivar a leitura literária. Em decorrência das frequentes e rápidas mudanças contextuais, além das novas propostas curriculares, os professores sentem a necessidade de repensar constantemente sua prática pedagógica com base em algum suporte teórico-metodológico.

Para que isso aconteça, cada leitor deve buscar e encontrar seu próprio texto. A leitura deve ser entendida como um ato de liberdade, no qual as escolhas pessoais dos alunos leitores merecem ser valorizadas. Também é preciso que o professor desvincule a leitura literária de exercícios ou fichas para leitura; trabalhar a leitura literária no espaço cibernético para que seja possível estabelecer conexões intra e intertextuais; investir no ensino da literatura a partir de uma perspectiva inter semiótica, promovendo o diálogo entre literatura e outras artes.

A formação do leitor literário deve contribuir para a ampliação da autonomia intelectual e da perspectiva crítica dos alunos. Uma atitude interativa e questionadora diante do texto literário, capaz de levar ao conhecimento e à transformação, orienta a proposta de ensino e de aprendizagem. Sem considerar o sentido histórico do texto, sua função e valor no momento específico em que foi escrito, importa, sobretudo, seu interesse literário afinado com as demandas da vida contemporânea. Nesse sentido, é fundamental que os alunos possam atualizar os sentidos do texto.

É sabido que a literatura oferece imagens para que possamos nos reconhecer e conhecer os outros, por meio dos quais sempre aprendemos mais sobre nós mesmos. Na ação de delinear nossas identidades, escritas e inscritas em Língua Portuguesa, devemos estar atentos à complexidade relativa às relações de poder, aos embates políticos, às redes de sociabilidade, às mudanças sociais, miscigenação, aos deslocamentos geográficos, à diversidade sexual. Apenas na perspectiva de uma educação literária solidária, interessada em considerar o “discurso” do outro e dialogar efetivamente com ele, a cultura pode existir (FREIRE, 1993).

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Ilza Ribeiro Gonçalves
Enviado por Ilza Ribeiro Gonçalves em 29/06/2011
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