As Academias de Sião

Em uma primeira leitura, As Academias de Sião nos remete àquilo que podemos chamar de Mito de Fundação, isto é, mitos que representam os princípios masculinos e femininos que, na ancestralidade, muitas vezes, eram representados pela bissexualidade ou androgenia.

Em Sião, antigo Reino da Península da Indochina, no Golfo de Sião, existiam homens femininos e mulheres masculinas. As quatro academias existentes na região resolveram estudar o enigma. Uma delas considerou que esta “anomalia” era uma questão de “corpos errados”. As outras três entidades discordavam da opinião da primeira, segundo eles, a alma era neutra e nada tinha a ver o contraste exterior.

As discordâncias entre os acadêmicos foi o estopim para uma verdadeira guerra: “veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e finalmente a pancada” (página192). Os integrantes da academia sexual elaboraram um plano “subversivo”. Atacaram os outros acadêmicos, deixando um rastro de trinta e oito mortos, elevando U-Tong ao poder, toda comunidade ficou receosa, só uma pessoa aprovara tal façanha: Kinnara, a concubina que tinha uma alma máscula. A moça era amante do Rei, portador de uma alma feminina.

Kinnara sugere ao rei uma “transmigração das almas”, proposta aceita pelo soberano e vivida pelos dois durante seis meses. Esta “transmigração de almas”, esta duplicidade, é um apontamento de tema recorrente na “poética” de Machado. O aspecto mítico do duplo apresenta inúmeros significados. Talvez, o que mais se enquadre nesse conto Machadiano seja o que Pierre Brunel, no Dicionário de Mitos, designa como:

A idéia da dualidade da pessoa humana- masculino/feminino, homem/animal, espírito/carne, vida/morte- revela uma crença na metamorfose (até mesmo na metempsicose) que implica uma certa idéia do homem como responsável pelo seu destino (página 262).

Em As Academias de Sião, encontra-se no mínimo, dois antagonismos sobressalentes: masculino/feminino e alma/carne. O conto é bastante enigmático, abre ao leitor a possibilidade de várias interpretações. Dentre tantas, há a questão da ambição humana, dos jogos de poder, da traição, da mentira, da hipocrisia e, até mesmo, da homossexualidade.

Sem forçar a barra, mas apenas apelando para certos recursos que a literatura utiliza, destaca-se o uso forte da alegoria neste conto. Vale lembrar que uma das funções da alegoria é atrair o leitor, provocando-o a descobrir um sentido oculto que não se entrega de imediato, mas exige esforço à descoberta (Sanseverino).

Sobre esse recurso alegórico na obra Machadiana, vale a citação do ensaio A Poética do Irrealizável, ou do Princípio da Corrosão, do professor Antonio Sanseverino:

[...]Assim, nesses dois momentos de sua obra, crítica literária e poesia, encontramos uma tensão entre a necessidade de verossimilhança e a expressão alegórica. No primeiro Machado segue a tradição realista de apego ao particular e de adequação da palavra à realidade. A suficiência dessa forma literária construiria a identidade da personagem, com uma ação adequada ao seu caráter. Na alegoria, em oposição, a imagem se desprende do sentido literal e imediato, para se tornar ilustração de um conceito, em que a figura importa por sua capacidade de representar a abstração (página120).

Esse jogo imagético é muito contundente em As Academias de Sião. Fora a grande alegoria da alma feminina e masculina, há outras que nos proporcionam interpretações bem cabíveis.

A primeira alegoria presente no texto é a dos vaga-lumes que se denominavam como “pensamentos sublimes”, que traziam consigo “toda sabedoria do universo”. Esses vaga-lumes acabam por se fixar no espaço, tornando-se a Via-Láctea. Essa alegoria serve para representar a ascensão do pensamento. Se há pensamento elevado, consequentemente, há homens que questionam, há os que se conformam, há os que param, há os que querem mudanças...

Não seria então As Academias de Sião uma alegoria para se questionar e ilustrar as frentes de pensamento e os homens que fazem parte delas? É bom lembrar, aqui, a passagem do diálogo do Rei Kalaphangko com os integrantes da academia, na ausência de U-Tong. Neste trecho fica evidente a hipocrisia, a falsidade dos intelectuais e uma provável ignorância de tais acadêmicos:

[...]Referindo-se a U-Tong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como parecia; mas vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo e incapaz de aprender nada (página 198).

Em outra ocasião, o Rei Kalaphangko chama apenas o diretor da Academia, U-Tong, para saber a opinião dele sobre os outros integrantes da entidade. U-Tong relata:

-Real senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao sol e à lua. Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol cobriram mais singulares pulhas do que esses treze... compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria digno de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente... (página 198).

Tal foi o espanto do Rei, que passou a chamar os integrantes da academia, separadamente, para obter maior expressão. Tanto em conjunto, quanto individualmente, os integrantes da Academia não diferiam em suas opiniões.

No fim da história, o Rei e Kinnara desfazem a magia, desfazem a metamorfose, cada alma foi devolvida ao corpo anterior. Ao longe, escutam um canto, aproximava-se a eles uma barca com quatorze membros da academia, incluindo U-Tong. Eles entoavam a seguinte canção:

Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo! (página 199).

Machado chama a atenção, através de linguagem alegórica, para uma mediocridade aos que se auto-intitulam os donos do saber. Não seria esse um momento de ironia de Machado? Sobre isso, Sanseverino escreve:

[...] Machado trabalha no paradoxo, na construção de uma situação impossível em termos lógicos. Assim, ele se utiliza da alegoria, pois retoma a historicidade do sentido e o caráter mediato da interpretação, isto é, da atribuição de sentido para a imagem. Ele se utiliza dela a partir de uma postura irônica (página 130).

Por último, é necessário falar sobre o narrador de As Academias de Sião. Este é tipicamente machadiano, que em tom imperativo, no inicio do conto, convida o leitor a escutá-lo. O leitor vai adentrando na narrativa, até “esbarrar numa quebra”, por sinal, magnífica. É o momento que o narrador mostra, quase sem modéstia, quem detém o pensamento elevado. Lê-se:

[...] mas vede aqui a minha audácia. O poeta (Dante) manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar os três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados continuam a falar e a viver juntos- coisa evidentemente mais dantesca, em que me pese a modéstia (página195).

Ora, ora, o narrador refere-se a Dante, a Ovídio e Lucano e alinha-se a esses escritores,além de se colocar ao lado deles, se vê superior: a metamorfose ocorrida em sua história é superior aos dos outros; os seus personagens, pelo menos, continuam a viver juntos. Arrisco dizer, modestamente, que o narrador “incorpora” a alegoria que propõe ao leitor. Mas isto é uma outra história...

Silvia da Rocha Andrade
Enviado por Silvia da Rocha Andrade em 17/07/2011
Código do texto: T3101359