A Estrutura do Purgatório

O Purgatório é o segundo livro da Divina Comédia de Dante Alighieri e representa o processo de purificação dentro da missão outorgada pelo escritor a si mesmo de levar a mensagem correta de Deus aos homens através da literatura. Por meio da visão teocêntrica que engendrava uma concepção vertical de mundo, tendo Deus como a cabeça, o alto e o inatingível e o Diabo como os pés, a poeira, o subterrâneo, Dante desenha a imagem do Purgatório como uma montanha terrestre com função de escada que levaria o ser até o céu - paraíso. Uma imagem no mínimo nova em um mundo dividido entre polaridades estanques e extremas, na qual o Purgatório se coloca como o centro, trazendo para a Idade Média um equilíbrio que não existe até então. Pois o reino do obscuro sempre foi associado com o subterrâneo e o céu com a morada dos deuses, enquanto o Purgatório não tinha até Dante uma imagem e uma forma específica, tendo se consolidado teoricamente com Santo Agostinho e São Tomás de Aquino e sua época e na literatura com o próprio Dante.

Para Dante, o Purgatório é uma montanha que está separada do mundo habitado, do mundo dos vivos, por um imenso oceano agitado e cheio de tempestades que afundam as embarcações que tentam se aproximar. A montanha fica em uma ilha e para ter o direito de escalá-la é preciso se arrepender dos pecados antes de morrer. Ao final dela, em seu cume, há o Paraíso, com sua porta estreita e fechada em volta de chamas e trancada com duas chaves, o qual está sendo guardado por um anjo armado com uma espada. E da mesma maneira que o Inferno, o Purgatório também é dividido em círculos de acordo com pecado cometido. Aqui se mantém a hierarquia dada pela gravidade da falta, com um diferencial em relação ao Inferno: o ser faltoso no Purgatório tem a chance de mudar de círculo, tornar-se mais leve, subir degraus, evoluir-se com o objetivo de chegar à porta do Paraíso.

O Purgatório tem nove círculos para a purgação. Sete são reservados para os pecados capitais e dois para a entrada do Paraíso defendida pelo anjo. Cada escalada, quer dizer, cada subida, representa uma superação do espaço e do tempo, os quais no Inferno são infinitos. Enquanto o tempo do sofrimento no Purgatório é quase eterno, mas não dura para sempre porque o objetivo da dor aqui não é punição apenas, mas antes de tudo a purificação da alma. Não importa a duração da pena ou da expiação, a alma suporta a carga que lhe foi imposta com resignação porque sabe que ali, no Purgatório, há um tempo determinado para tudo e o paraíso como recompensa. Para entrar no céu, a alma precisa estar pura. Para a doutrina católica veiculada na Idade Média, não existe pureza interior sem renúncia das coisas do mundo, e essa renúncia não é conseguida sem lágrimas e sem tormento. As lágrimas representam mais que o líquido que sai da dor, elas representam a limpeza do ser através dos olhos, porque são os olhos o espelho e o portal do espírito, assim acreditaram-se muitos povos antigos.

Cada círculo tem sua entrada protegida por um anjo que abençoa a alma que galga mais um degrau. Não é por acaso que essa ascensão ao paraíso tem a forma de uma montanha, basta lembrar que é na montanha, o Monte Sinai, que Moisés estabelece uma nova aliança com Deus e recebe os dez mandamentos, enquanto é em uma montanha que Jesus prega as suas palavras e os seus ensinamentos, o Monte das Oliveiras. A figura da montanha traz em si a união entre o céu e a terra (aqui o subterrâneo), entre o alto e o baixo, entre o corpo e o espírito, entre o paraíso e o inferno. Por esta razão, a viagem pelo Purgatório é marcada pela astronomia e medida pela posição do Sol, da Lua e das estrelas anunciando a presença do céu - paraíso, contudo, sem deixar de anunciar também a distância quase infinita deste em relação àquele que se encontra em sua base. No primeiro canto, o qual será analisado logo a seguir, há a imagem de quatro estrelas e um pólo e dos raios do Sol em outro trazendo para o Purgatório, feixes de luz do Paraíso em meio à escuridão saída das profundezas do Inferno.

Os cantos no Purgatório estão estruturados de acordo com as dez divisões ou círculos em que Dante organizou os terraços de purgação, tendo a gravidade dos pecados a serem pagos objetivando a hierarquia em que as divisões ou círculos se sucedem. Duas divisões se situam fora da montanha e é chamado de Ante – Purgatório. Ao adentrar os portões, os outros círculos vão se corresponder aos setes pecados capitais, enquanto a última divisão é o próprio Paraíso Terrestre:

Montanha do Purgatório

No desenho da montanha do Purgatório há uma escala ascendente ligando o obscuro das profundezas da terra que é o Inferno, o qual é uma montanha virada de cabeça para baixo, ao topo da montanha onde fica o Paraíso – lugar da ascensão plena do espírito e por isso feito de luzes e espelhos. O Inferno, lugar de sombras, tem a configuração do horror e do abismo, dentro de seus círculos a punição não tem fim e a eternidade é estabelecida no sofrimento, uma prisão perpétua não só para a alma, mas também para o corpo, porque o pecado faz a alma carregar toda matéria e tem carne e peso, o que aumenta a dor da alma que nele se encerra.

Para ganhar o Purgatório é preciso arrepender-se em vida, o pecador que não teve tempo para isso vai para o Inferno e de lá não poderá sair, pagará suas faltas eternamente. Enquanto quem se arrependeu, mesmo minutos antes de morrer, tem o direito a escalar a montanha do Purgatório, onde não deixa de haver penas, mas aqui o sentido é de purgação e purificação e não mais de punição simplesmente. A subida da montanha do Purgatório que é o caminho da expurgação, diferente das expirações do Inferno, tem começo, meio e fim, por essa razão o ser que está para subi-la paga suas penas com alegria, suporta a dor porque sabe que alcançará a recompensa, mesmo que essa demore duas vidas terrestres, o destino final para quem se encontra em sua base é chegar a seu topo, isto é, ao Paraíso.

É interessante observar que dentro de uma concepção dualística e dicotômica de mundo, pautada na tensão entre forças opostas como: o bem e o mal, entre o material e o espiritual, entre a sombra e luz, terra e céu, noite e dia, bem e mal, o Purgatório aparece como o caminho da conciliação – o meio, o intermediário, o gradual, onde se mistura todas as polaridades formando um cenário mais inteiro e mais corpóreo, mais real. Uma concepção sem dúvida nova para a época, emergida em polaridades de modo extremamente intenso, pois é na Idade Média que se estabelece as dicotomias para justificar a separação entre corpo e espírito, entre razão e coração, entre natureza e cultura e desta maneira institui-se a noção de pecador e dor associado à carne. Com isso, a Igreja ganha o domínio total da vida e do destino das pessoas na Idade Média e se Deus é o senhor de todas as coisas, ela se torna a cabeça de Deus na Terra pronta para olhar e julgar a obra de cada pessoa. Nada passaria despercebido, o ser humano já seria pecador assim que nascesse por descender de Eva ( aquela que provou o fruto do bem e do mal,ou seja, as duas faces da realidade que é o conhecimento) e em seu corpo já estaria maculado o pecado original.

A redenção e a salvação para o ser humano estariam no momento em que este conseguisse se livrar do seu corpo, ou através da morte se tornando espírito puro ou através da mente racionalizando os sentimentos e ações. O pensamento cartesiano nada mais é do que fruto de toda essa concepção na Idade Média, porque sentir e tocar se tornam ações sujas e contaminadas. Não é por acaso que Dante ao retratar os pecadores no Inferno os coloque presos no lodo, na merda, em árvores, troncos, raízes, de cabeça para baixo, com a boca costurada, com chagas ou carregando pesadas capas de chumbos e com peles, porque é essa ligação da alma com o corpo que a leva a uma expiação terrível sem chance de se salvar – o corpo pesa, dói e se arde, enquanto no Purgatório à medida que a alma ganha um degrau para o céu ela se torna cada vez mais leve até se transformar em espírito puro, energia viva no Paraíso. Na linguagem isso s materializa pelo constante uso do passato remoto no Inferno, o passado representa um enorme peso, é o tempo mais material que existe carregando as cenas, já no Purgatório tem-se o passato remoto, mas também o future e o presente e ao mesclar os tempos, o escritor mescla-se realidades e ascende para novas possibilidades que é a redenção prometida no Paraíso.

“E canterò di quel secondo regno

Dove l’ umano spirito si purga

E di salire AL ciel diventa degno”

Ilustração de Gustavo Doré – A chegada de Dante no Purgatório.

O Primeiro Canto, Poesia e Anunciação

O Canto I do Purgatório inicia-se com a saída de Dante e Virgílio do Inferno para o ante Purgatório, ou mar astral e o primeiro impacto na paisagem é com a dolce color d’ oriental zaffiro, dando um aspecto mais luminoso e ameno em contraste com as cores quentes e escuras do Inferno. O mar astral emana uma luz azul que lembra uma pedra preciosa que reflete a limpidez do infinito “Che s’accoglieva nel sereno aspetto/Del mezzo, puro infino al primo giro”( ALIGUIERI, 2009 p.13) isto é, a cor mais clara e amena refletida por todo ambiente anuncia no ante Purgatório não só o novo caminho como o resplandecer da salvação posta no céu – Paraíso.

Mas o grande diferencial do início deste canto com os outros do Inferno é o aparecimento da subjetividade do poeta voltada para a linguagem da poesia. Este início do Purgatório se posiciona ao contrário da maioria das passagens do Inferno, onde o eu lírico se confunde coma a presença do poeta como narrador-personagem em sua missão de transmitir a grande mensagem e os acontecimentos dos cantos. Como exemplo, destaque-se o começo do livro do Inferno, no qual o poeta se coloca já dentro de uma selva escura no meio do caminho da vida na primeira estrofe “Nel mezzo Del cammin di nostra vita/mi ritrovai per uma selva oscura” (ALIGHIERI, 2009 p. 25), enquanto na segunda ele se direciona ao leitor tratando o seu texto como narrativa “AH! Quanto a dir qual era è cosa dura/ esta selva selvaggia e aspra e forte” (ALIGHIERI, 2009 p. 25). Já no começo do Canto I do Purgatório, Dante expressa que a partir deste é que ressurgiria a morta poesia voltando a escrita do canto para a própria linguagem, em uma reflexão metalingüística enquanto o poeta abre um espaço novo para subjetividade e o lírico na Comédia:

Por correr miglior acque alza Le vele

Omai La navicella Del mio ingegno

Che lascia dietro a sé mar si crudele;

E canterò di quel secondo regno

Dove l’umano spirito si purga

E di salire al ciel diventa degno

Ma qui La morta poesì resurga,

O sante Muse, poi Che vostro sono;

E qui Caliopè alquanto surga,

Seguinto Il mio canto com quel suono

Di cui Le Piche misere sentiro

Lo colpo tal, Che disperar perdono

(ALIGHIERI, Purgatório 2009 p. 13)

No trecho acima, o qual registra as quatro estrofes do início do Canto I do Purgatório, expressa a concepção do que é poesia que vigorava desde a Grécia Antiga e que permeia a construção da Divina Comédia por Dante. No nascedouro da literatura clássica, o verso era a técnica reconhecidamente padrão para transmitir as narrativas e para o teatro, sendo a Epopéia, Tragédia e Comédia gêneros altamente valorizados enquanto a poesia lírica era desconsiderada por não tratar de questões universais e nobres e sim de sentimentos e emoções pessoais. Por essa razão, escrever em verso necessariamente não significava escrever poesia da maneira como se entende a poesia moderna, mas principalmente narrar acontecimentos e feitos grandiosos. O lírico era imaginado como um poder emanado das musas para o poeta, mas desde que Platão expulsou os poetas da República, a poesia lírica ganhou o status de gênero menor. Platão expulsou os poetas por conceber que estes faziam uma imitação de um real que era real, mas uma cópia imperfeita, uma representação do real verdadeiro. Essa divisão do espaço mental e físico em duas realidades; uma verdadeira e ideal, a qual o ser humano não tem acesso a não ser pela sua cópia imperfeita, que é o mundo a sua volta, fundamentou o Cristianismo que se utilizou da metafísica para instituir o porvir para depois da morte, o qual estaria prometido e encontrado no Céu- Paraíso.

Por ter bebido na literatura clássica e na concepção metafísica de mundo, Dante expressa no Canto I que a morta poesia, que é aqui oriunda da Musa Calíope, é no Purgatório ressuscitada. Porque para o escritor não se poderia extrair alguma coisa de lírico ou belo do Inferno, lá a linguagem seria altamente contaminada pelo próprio sofrimento dos penitentes e suas fatalidades, não havendo como de acontecimentos tão horrendos fazer poesia pura. Para o escritor italiano, apenas do Purgatório em diante é que o lírico seria possível, no momento em que as almas ali passariam as penas com o objetivo de se purificarem e chegar ao céu – paraíso, sendo um fato altamente esperançoso e belo, mesmo que penoso e melancólico. Por trazer a esperança novamente ao ser – humano, é que o Purgatório inspiraria o poeta a vazar de si sua subjetividade. Claro que se trata de uma visão do poeta e não significa que não se encontra no Inferno passagens extremamente poéticas no sentido lírico.

Em relação às imagens traçadas neste Canto, após a chegada de Dante e Virgilio ao mar astral do Purgatório a primeira cena que os envolve, além da cor safira do mar, é a visão do Universo, do céu estrelado, mais exatamente quatro estrelas no pólo de sua direção, enquanto no pólo oposto aparece um velho de barca branca com a face iluminada pelos raios do sol. Este velho indicado pelo escritor como Catão de Útica, legislador romano, tem vários significados, ele representa tanto a sabedoria quanto o profeta, vale lembrar-se de Matusalém Medieval ou do Oráculo de Delfos da Literatura Grega, e sua receptividade quanto sua presença tem a função de anunciar o Céu, isto é, o Paraíso antes perdido pelo pecado original. Enquanto a construção imagética da passagem do velho neste canto se dialoga com os primeiros versículos do Apocalipse. Como exemplo, abaixo o trecho da passagem do velho de barbas brancas na Divina Comédia na integra para ser comparado com o do Apocalipse :

I’ mi volsi a man destra, e puosi mente

A l’altro pólo, e vidi quattro stelle

Non viste mai fuor ch’ a La prima gente.

Goder pareva l’ cil di lor ifammelle;

Oh settentrional vedovo sito,

Poi Che privato se di mirar quelle!

Com’ io da loro sguardo fui partito,

Um poço me volgendo a l’ altro pólo,

Là onde l Carro già sparito,

Vidi preso di me un veglio solo,

Degno de itant reverenza in vista,

Che piú non dèe a padre alcun figliuolo.

Lunga La barba e di pel bianco mista

Portava, a’ suoi capelli simigliante,

De’ quai cadeva al petto doppia lista.

Li raggi de Le quattro luci sante

Fregiavan si La sua faccia di lume,

Ch’ io l’ vedea come l’ sol fosse davante.

Lo duca mio allor mi diè di piglio,

E com parole e con mani e con cenni

Reverenti mi fé Le gambe e l’ ciglio.

(ALIGHIERI, 2009 p. 14 e15)

Apocalipse

9. Eu, João, que também sou vosso irmão e companheiro na aflição, e no Reino, e na paciência de Jesus Cristo, estava na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e pelo testemunho de Jesus Cristo.

12. E virei – me para ver quem falava comigo. E virando – me, vi sete castiçais de ouro;

13. e, no meio dos sete castiçais, um semelhante ao Filho do Homem, vestido até aos pés de uma veste comprida e cingido pelo peito com um cinto de ouro.

14. E a sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve, e os olhos, como chama de fogo;

15. e os seus pés, semelhantes a latão reluzente, como se tivesse sido refinado numa fornalha; e a sua voz, como a voz de muitas águas.

16. e ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandece.

E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: eu sou o Primeiro e o Último.

(BIBLIA SAGRADA, 197)

O fato de o escritor florentino ter bebido na Bíblia e exatamente no Apocalipse para engendrar o primeiro Canto do Purgatório, realça o sentido do Inferno como o fim total, o Apocalipse em sua interpretação evolutiva e linear. Mas a cena acima se realiza no Canto I do Purgatório condizente com o primeiro título do livro escrito por João, o qual recebeu a missão de escrever o Apocalipse como uma revelação divina igualmente à visão de missão que Dante se viu imbuído. Contudo, o Apocalipse não é simplesmente o fim, mas é a destruição da ordem estabelecida para desta destruição nascer outra ordem, isto é, do fim de tudo e do mundo volta-se a um novo início e o ser e a vida podem recomeçar. Neste sentido, se o Inferno é o abismo final, o Purgatório que parece também o fim traz em si a possibilidade de um novo caminho, é a ressurreição do espírito através da transformação daquilo que se era para aos poucos encontrar-se com aquilo que deveria ser. O espírito se purifica e se renova a cada escalada da montanha para subir no cume e entrar no Céu, há uma morte positiva, uma morte que é na verdade uma passagem, enquanto no Inferno morre-se na dor a todo instante sem nenhuma chance de retorno ou de salvação.

O simbolismo do retorno e da ressurreição está em todo Canto, tanto é que ao sair do Inferno, Dante não é mais o mesmo. Apesar de ser apenas um expectador do sofrimento alheio, esse sofrimento toca o escritor profundamente e o transtorna de tal maneira que o seu rosto ganha os contornos da dor, um rosto transfigurado que demonstra uma alma em profunda angústia. O renascimento do próprio Dante é anunciado por Catão, o qual depois de abordá-lo, em meio à luz do Sol e de quatro estrelas, perguntando que fazias ali um corpo vivo, e em seguida contando a sua história, pede para o poeta lavar o rosto e limpar as lágrimas trazidas do abismo – inferno:

Va dunque, e fa Che tu costui ricinghe

D’ un giunco schietto e Che li lavi l’ viso,

Si ch’ ogne sucidume quindi stinghe.

Che non si converria, l’ occhio sorpriso

D’ alcuna nebbia, andar dinanzi al primo

Ministro, ch’ è di quei di paradiso.

( ALIGHIERI, 2009 p. 16)

O ato de limpar as lágrimas se transforma em um ritual de purificação e não é por acaso que o ditado popular diz que as lágrimas lavam os olhos e que os olhos são a porta e o espelho da alma. Através dos olhos se chega ao íntimo do ser e por esta razão, chorar é expurgar alguma coisa que atormenta por dentro, enquanto o rosto transporta para si a dor humana de existir. Pede-se para Dante limpar as lágrimas do rosto trazidas do Inferno, as angústias vinda do abismo, para que ele siga de modo mais ameno a subida da montanha do Purgatório, retornando para o início da humanidade que se figura na imagem do Céu – Paraíso como o próprio Jardim do Éden; o paraíso perdido. Encontra-se no livro do Apocalipse uma passagem emblemática de como lavar o rosto e limpar as lágrimas não só significam a renovação e a purificação, mas principalmente o anúncio de um novo tempo e de um novo paraíso prometido por Deus:

21. E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.

4. E Deus limpará de seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas.

(BIBLÌA SAGRADA, Apocalipse, capítulo 21 vers. 1 e 4)

Desta maneira, a limpeza das lágrimas no rosto de Dante é o anúncio dentro do Purgatório do Paraíso Perdido, juntamente com as quatro estrelas e os raios do Sol que se vê, mas que não se pode alcançar, isto é, do Céu Paraíso onde somente a almas extremamente purificadas e lavadas durante o caminho – montanhas poderão chegar.

E o junco ao final do Canto, que Dante arranca com suas mãos, traz o sentido da nova aliança, porque ao ser arrancado cresce novamente e cresce no deserto, dando vida para aquilo que antes era morto, era o nada. Neste sentido a anunciação do paraíso perpassa todo Canto I do Purgatório e pode ser considerada a função deste livro: anunciar e preparar o espírito para a sua chegada ao Paraíso no plano narrativo, enquanto prepara o leitor através de símbolos para o livro mais abstrato e hermético de toda a Divina, que é o Paraíso.

Referências Bibliográficas

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Trad. Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Ateliê, 2009.

BIBLIA SAGRADA, tradução: João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil,1995.

Adrienne Kátia Savazoni Morelato
Enviado por Adrienne Kátia Savazoni Morelato em 14/08/2011
Código do texto: T3158996